Em 1967, seis anos depois do início da guerra em Angola, a PIDE/DGS começou a recrutar novos membros entre algumas etnias africanas com o objetivo de integrá-los num novo grupo paramilitar autóctone, criado nesse ano pelo inspetor Óscar Cardoso, que tinha então sido transferido para Angola. Esse grupo ficaria conhecido como os “Flechas”.
O emprego de grupos autóctones em ações de combate contra insurgentes independentistas não era uma novidade. Porém, ao contrário de grupos semelhantes criados por ingleses, franceses ou sul-africanos, os “Flechas” atuavam na dependência direta dos serviços secretos da PIDE/DGS. Com a sua criação em 1967 procurou-se, acima de tudo, melhorar a capacidade de recolha de informações estratégicas, operacionais e táticas, tentando desenvolver ações encobertas e clandestinas de combate aos grupos insurgentes, que ganhavam cada vez mais terreno em Angola.
Os “Flechas” eram constituídos principalmente por bosquímanos, um povo que habitava a parte sul de África há vários séculos e que se dedicava à caça e à recoleção. Foi o próprio Óscar Cardoso que lhes escolheu o nome, por utilizarem arcos e flechas envenenadas para caçarem. A grande vantagem de formar um grupo de bosquímanos estava no seu conhecimento do território africano — conseguiam permanecer vários dias destacados em território hostil, alimentando-se do que a natureza lhes dava, perseguindo pistas e seguindo o rasto de insurgentes.
Uma vez encontrados os acampamentos dos independentistas, bastava conduzirem ações de vigília para obterem mais informações e esperarem para fazer uma emboscada. A ordem era que capturassem os opositores e os levassem para serem interrogados. Porém, isso raramente acontecia — na maioria das vezes, os “Flechas” acabavam por matar os insurgentes durante os confrontos. As informações recolhidas no acampamento eram depois entregues a elementos da PIDE/DGS para serem analisadas.
Esta realidade da guerra angolana, desconhecida de muitos portugueses, é o tema do livro Os Flechas: A tropa secreta da PIDE/DGS na Guerra de Angola, de Fernando Cavaleiro Ângelo, chefe da Divisão de Informações do Comando Naval e diretor do Centro de Análise e Gestão de Dados Operacionais, o primeiro publicado em Portugal sobre os “Flechas”. Baseando-se em documentos, fontes históricas inéditas e recorrendo ao testemunho em primeira mão de Óscar Cardoso, Cavaleiro Ângelo procurou descrever o impacto deste grupo paramilitar no contexto angolano e internacional.
O livro, editado pela Casa das Letras, chega às livrarias na segunda-feira, 27 de fevereiro. Antes, mostramos-lhe um excerto do capítulo 3 — “Flechas como ‘exército secreto da PIDE/DGS”–, em que o autor relata o surgimento do grupo:
“Os Flechas nasceram na região do Cuando-Cubango, propagaram-se à vila de Gago Coutinho (Lumbala Nguimbo) e, na fase final do conflito, chegaram à região de Luanda, Luso (Luena) e Caxito, onde assumiram um carácter especial por serem aí antigos insurgentes do MPLA capturados pelas tropas portuguesas. Devido ao sucesso obtido, mormente no Leste de Angola (onde o nome Flechas já causava alguma intimidação nos insurgentes, pois a sua atuação resultara no desmantelamento de entrepostos, rotas logísticas e acampamentos, e também em inúmeras emboscadas infligidas particularmente no interior do refúgio zambiano), o recrutamento de novos Flechas foi estendido a outros grupos étnicos que não os originais bosquímanos. Com efeito, o número de bosquímanos não chegava para se ter uma presença substancial nas diversas frentes de combate.
Na fase final da guerra de Angola, quase todas as subdelegações da PIDE/DGS em áreas afetadas pela atividade insurgente tinham os seus próprios Flechas. Torna-se, por isso, difícil perceber se o sucesso se deveu ao uso de bosquímanos, ou se foi o próprio conceito de «exército privado» liderado exclusivamente pela PIDE/DGS que fez a diferença.
Na fase inicial, os Flechas bosquímanos efetuavam as suas missões sempre sozinhos. Não gostavam da companhia dos brancos, pois o cheiro da pasta de dentes e da pomada da barba, para além de interferir com o seu apurado olfato, permitia que os insurgentes os detetassem a distâncias apreciáveis, se o vento estivesse de feição. Adicionalmente, a sua marcha era deveras atrasada pelo ritmo lento dos brancos e o ruído que estes provocavam ouvia-se a léguas. Alimentavam-se de raízes, carochas, insetos, frutos e animais, e negavam as rações de combate. Na única ocasião em que lhes foram fornecidas rações de combate, os bosquímanos comeram literalmente tudo de uma vez. Nem os plásticos que protegiam alguns alimentos se safaram. Chegou-se, então, à conclusão de que seria mais profícuo manter os hábitos tradicionais dos bosquímanos intocados. A mudança de hábitos e tradições podia ser prejudicial ao desempenho dos Flechas, pois a sua ocidentalização anularia o lado primitivo que tanta vantagem lhes concedia sobre os brancos e os negros bantos.
Numa fase posterior, havia pelo menos um elemento da PIDE/DGS que acompanhava, por rotina, os Flechas no decorrer das suas missões, tanto para efeitos de coordenação e direção como para coadjuvar na recolha de informações. Algumas missões eram conduzidas com tropas portuguesas e elementos da PIDE/DGS, e outras exclusivamente levadas a cabo pelos próprios Flechas, tais como operações de reconhecimento, vigilância e encobertas, muitas vezes durando mais de 15 dias.
Nenhum grupo de Flechas excedia os 30 elementos e todos operavam, na maioria das vezes, em áreas onde estavam familiarizados com os dialetos e o terreno. No seu primeiro ano de existência, os Flechas atingiram os 600 elementos, subindo o número para cerca dos mil em 1974. Entre 1968 e 1971, nas diversas subdelegações da PIDE/DGS, chegou-se ao número de 489 Flechas na Zona Militar Leste, 255 na Zona Militar Sul e perto de 158 na Zona Militar Norte. Não sendo já a maioria desses Flechas bosquímanos, a sua maior concentração localizava-se na Frente Leste, com as suas principais áreas de operação em torno das cidades de Carmona (Uíge), Caxito, Gago Coutinho (Moxico) e Serpa Pinto (Menongue).
No período compreendido entre 1970 e 1973, a maioria das operações executadas pelos Flechas teve como área de atuação a Zona Militar Leste, num total de 119 missões, das quais 88 ocorreram em 1972. Esse ano acabou por representar um marco na luta contra os insurgentes do MPLA, fruto das roturas internas no próprio movimento, do desmantelamento de toda a estrutura logística proveniente da Zâmbia, das ações dos Flechas e do esforço coordenado entre os militares, a PIDE/DGS e os congéneres vizinhos da Rodésia e África do Sul. As outras zonas militares tinham números muito abaixo desses: a Zona Militar Norte contava com 50 missões, a Zona Militar Sul com 33 e a Zona Militar Centro somente com quatro. Em termos de grupos insurgentes, o MPLA era o principal alvo dos Flechas, com um total de 54 missões registadas, seguido da FNLA com nove e da UNITA com duas. Na Frente Leste, a zona de guerra mais ativa em Angola, os Flechas capturaram 46 insurgentes, mataram mais de 134, apreenderam largas quantidades de armas, munições e documentos extremamente importantes, bem como libertaram muita da população que se encontrava refém dos grupos insurgentes.
Um dos maiores obstáculos ao processo de recolha de informações da PIDE/DGS era a proliferação de línguas faladas em Angola, um número que atingiria os 15 dialetos. Para as fontes humanas que andavam no terreno com a missão de recolha de informações era vital a compreensão exata das mensagens, sob o risco de estas serem deturpadas e indevidamente enquadradas na realidade da situação. Os intérpretes eram, portanto, o elo. Em Angola, os missionários protestantes e católicos eram os únicos capazes de comunicar com os bosquímanos e outros grupos étnicos, e muitos deles terão sido agentes a soldo de outros serviços de informações estrangeiros.
Muitas das informações recolhidas por esses espiões seriam usadas para pressionar Portugal na arena internacional. Para evitar a situação, a PIDE/DGS planeou diversos ataques clandestinos de tropas auxiliares nativas fardadas com uniformes de insurgentes, para se livrar dos alegados espiões sem qualquer exposição mediá- tica que desencadeasse um incidente diplomático com os países mandantes. Alguns missionários protestantes seriam agentes a trabalhar para serviços de informações norte-americanos, britânicos e franceses. Numa das missões em Catota, localidade perto de Serpa Pinto (Menongue), um missionário acabou por ser identificado como espião da agência de espionagem norte-americana CIA, após a interceção e análise de correspondência diversa. Existiu igualmente a suspeita de que colaborasse também com a UNESCO.
O missionário escreveu diversas cartas para os Estados Unidos da América com uma descrição exaustiva da situação interna em Angola, com informação sobre as tendências e motivações da população, as atividades e desenvolvimentos operacionais, as localizações das tropas portuguesas e insurgentes, os ataques ocorridos e a avaliação dos efeitos das diversas manobras militares entre as partes beligerantes, entre outros dados pertinentes. A redação desses relatórios de informações foi percecionada pela PIDE/DGS como um ato hostil à presença portuguesa em Angola, o que desencadeou o planeamento de um ataque direto para incutir medo ao missionário. A tarefa foi entregue aos Flechas, que usariam uniformes da UNITA, para deixar a ideia de que se tratava de um ato de vandalismo perpetrado por um grupo insurgente. A ação de intimidação, além de implicar a UNITA, teve o resultado esperado sobre os alegados espiões.
Estávamos em meados de 1970, numa noite abrasadora com índices de humidade bastante altos e um céu coberto de estrelas cintilantes. O plano era os Flechas deslocarem-se pela calada da noite, entrarem na casa do missionário e provocarem alguns estragos para lhe provocarem um susto que lhe permanecesse para sempre gravado na memória. E lá foram por entre os arbustos, movimentando-se de forma cautelosa e silenciosa, como felinos à procura de presas, não emitindo qualquer ruído que acordasse o alvo. A entrada na casa deu-se de forma cautelosa, não fosse estar alguém por detrás da porta. Num ápice imobilizaram o missionário, tapando-lhe a boca para que não gritasse, e começaram as tropelias destruidoras dentro da residência. Nem as bebidas escaparam à onda de destruição. O missionário terá mudado a sua perceção da presença portuguesa em África. O efeito desejado foi, aparentemente, alcan- çado e os volumes de correspondência, bem como a natureza das missivas, alteraram-se radicalmente.
Noutra missão com contornos semelhantes, desta feita numa localidade chamada de Xamavera, no Cuando-Cubango, a PIDE/DGS ordenou os Flechas, novamente trajados como insurgentes, que atacassem uma congregação de frades franceses denominada Irmãos do Nosso Senhor Jesus Cristo. Eram suspeitos de providenciar alimentação aos insurgentes e, cumulativamente, operar em prol dos serviços secretos franceses, a SEDEC (Service de documentation extérieure et de contre-espionnage). O modus operandi foi em tudo idêntico, mas, alegadamente, com mais contacto físico com os irmãos. Desse ataque de surpresa resultou a retirada dos frades de Angola, o que satisfez o objetivo da PIDE/DGS de impedir que os missionários informassem países que pudessem interferir, de forma direta ou indireta, no desenrolar das operações portuguesas contra os insurgentes.
O número de missões atribuídas aos Flechas em Angola durante o ano de 1972 é, per se, demonstrativo da importância dessa «tropa secreta» da PIDE/DGS: 128 missões conjuntas com o exército e 316 atuando de forma autónoma. Além de excelentes fontes de informações, os Flechas mostravam uma «elevada eficiência operacional». Assim provam as diversas condecorações e louvores que os Flechas acumularam durante um período de três anos. Foram agraciados com 14 Cruzes de Guerra e 11 louvores do governador-geral de Angola, o que é deveras representativo da eficiência e eficácia das suas operações militares e de recolha de informações em apoio das atividades de contrainsurgência das tropas portuguesas.
Foram, igualmente, reconhecidos pelas SADF com a condecoração Honoris Crux, pela sua lealdade e bravura no combate ao movimento insurgente independentista SWAPO, depois da independência de Angola em 1974. O sul-africano Delville Linford reconheceu a excelência dos Flechas bosquímanos na arte da recolha de evidências e provas, ações de reconhecimento e vigilância, pese embora não fossem capazes de interpretar ou contextualizar as informações que obtinham.
Os Flechas possuíam, definitivamente, um sexto sentido que lhes permitia antecipar o perigo e saber, assim que entravam numa área, se o inimigo lá estava ou não. Tratar-se-ia de uma combinação de experiência com profundo conhecimento da natureza do inimigo. O tenente-coronel Ron Reid-Daly, comandante dos Selous Scouts na Rodésia, considerou-os os melhores soldados indígenas que alguma vez conhecera durante a sua comissão de serviço em África. Reid-Daly possuía uma enorme experiência na arte da guerrilha não só na Rodésia, mas também na Malásia, durante a sua missão no Special Air Service (SAS) britânico, tropa especial de comandos temidos em todos os teatros operacionais em que participaram. Um elogio vindo desse temível guerreiro era um sinal inequívoco de qualidade.”