Os cemitérios sobrelotados de Manaus obrigaram a decretar a abertura de valas comuns para enterrar as vítimas de Covid-19. A notícia sobre a capital do estado do Amazonas, no Brasil, é recente, mas em tudo semelhante ao que se assistiu em abril na mesma cidade. Com uma diferença fundamental, no entanto: nos primeiros 21 dias de janeiro, Manaus fez tantos enterros de vítimas de Covid-19 (1.333), com infeção confirmada antes da morte, como durante todo o ano de 2020 (1.285), reporta a CNN Brasil. A força da segunda vaga apanhou a região desprevenida, e até os especialistas, uns e outros convencidos de que a população estava protegida pela imunidade de grupo. O que correu mal então?
A imunidade de grupo pode não ter sido alcançada como se julgava ou ter desaparecido entretanto. O vírus pode ter evoluído de forma a escapar-se ao sistema imunitário ou ter-se tornado mais eficaz a causar a infeção. Ou todas estas hipóteses juntas, como descreve uma equipa multinacional liderada por Ester Sabino, investigadora no Instituto de Medicina Tropical da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, num comentário publicado na revista científica The Lancet.
A evolução do vírus, o surgimento de mutações que lhe conferem vantagens e a disseminação de novas variantes é das questões que mais preocupações levantam, não só na região, mas também no resto do Brasil e a nível internacional. A variante P.1, que terá surgido durante a segunda vaga em Manaus, já viajou para fora do país — foi detetada, inicialmente, no Japão — e já motivou o encerramento das ligações aéreas com vários países. Dentro do Brasil, os estados de São Paulo, Piauí, Santa Catarina, Paraná, Ceará, Acre e Mato Grosso do Sul, já a confirmaram ou aguardam investigação de casos suspeitos.
“Com certeza já está circulando por todo o Brasil. Não é possível que tenham achado em outros continentes e não tenha chegado a outros estados”, disse o epidemiologista Jesem Orellana, do Instituto Leônidas & Maria Deane (ILMD/Fiocruz Amazónia), à BBC Brasil.
Entre as mutações presentes nesta variante estão a N501Y (Nelly), que faz com que o vírus se ligue mais facilmente às células humanas para as invadir, e a E484K (Erik), que permite ao vírus escapar-se aos anticorpos neutralizantes, quer tenham sido desenvolvidos depois de uma infeção natural ou depois da vacinação contra a Covid-19. E é neste Erik que se centram as grandes preocupações e dúvidas, a de se saber se por causa dele o vírus pode infetar quem já foi infetado ou vacinado e, por isso, devia estar imune. “Determinar a eficácia das vacinas contra a Covid-19 nas variantes da linhagem P.1 e noutras variantes com potencial para se escaparem ao sistema imunitário é crucial”, escreveu a equipa de Ester Sabino.
A imunidade de grupo que pode nunca ter existido
O primeiro caso registado do novo coronavírus no Amazonas foi detetado no dia 13 de março de 2020: uma mulher de 39 anos que voltou de Londres infetada e recorreu a um hospital particular. Nas primeiras semanas, a infeção era registada sobretudo entre as classes sociais mais abastadas que traziam o coronavírus de outros países ou de outros pontos do Brasil. Nessa altura, 57% dos internamentos por doenças respiratórias localizavam-se em hospitais particulares de Manaus, noticiou a BBC Brasil. Depois, a situação inverteu-se, os estratos sociais mais desfavorecidos passaram a ser os mais afetados.
Uma vez atingido o pico, no final de maio, o número de novos casos começou a cair a partir de junho. Em setembro, a equipa de Ester Sabino estimou que cerca de 66% da população de Manaus teria sido infetada com o vírus e não 2% como apontavam os dados oficiais, conforme publicado na plataforma medRxiv, antes de a publicação ser revista por cientistas independentes. Os resultados diziam assim que cerca de 1,5 milhões de habitantes num total de 2,2 milhões teriam sido contagiados. Se o limite para se definir a imunidade de grupo for 67%, Manaus estava bem encaminhada.
Mais tarde, numa publicação da Science, a mesma equipa estimou que em outubro a imunidade já seria de 76% da população. Mas também foi Ester Sabino que indicou, na recente publicação da The Lancet, que a imunidade de grupo adquirida durante a primeira onda terá sido sobrestimada — tal como, aliás, já tinha sido alertado por investigadores independentes.
Assim, a população poderá ter ficado abaixo do limiar de 67% até dezembro de 2020, quando se iniciou a segunda vaga. A equipa considera, no entanto, que seria de esperar que houvesse um nível de imunidade suficientemente grande para não se verificar um surto tão grande como o que a cidade agora enfrenta.
A segunda vaga chegou depois de os anticorpos partirem
Para os grupos mais carenciados, deixar de trabalhar ou evitar os transportes públicos, nunca foi uma opção. Por isso, foram os mais atingidos no início da pandemia. Mas com a diminuição do número de infeções e mortes, as medidas restritivas também abrandaram e, a partir de agosto, o aumento de novos casos de infeção começou a verificar-se entre as classes sociais mais altas, que tinham estado mais protegidas, em casa, durante a primeira vaga, mas que aproveitaram o abrandamento das medidas para voltarem aos convívios de grupo, reporta a BBC Brasil.
Logo nessa altura, o epidemiologista Jesem Orellana, do Instituto Leônidas & Maria Deane (ILMD/Fiocruz Amazônia), defendeu o confinamento como a única forma de controlar a disseminação do vírus numa potencial segunda vaga. Wilson Lima, governador do estado do Amazonas, descartou totalmente essa hipótese. E a verdade é que, mesmo com o relaxamento das medidas, com o distanciamento social ou uso de máscara, o número de internamentos manteve-se relativamente baixo até novembro. Mas a partir de dezembro subiu em flecha, muito além do que tinha acontecido na primeira vaga.
Em dezembro, mesmo a imunidade adquirida por aqueles que estiveram infetados na primeira vaga, podia já estar a diminuir, como referem os autores do artigo da The Lancet. A análise do sangue de doadores mostra uma quebra na quantidade de anticorpos — embora se deva referir que a imunidade não depende exclusivamente dos anticorpos, mas também das células B e T. “Um estudo com profissionais de saúde no Reino Unido mostrou que a reinfeção com SARS-CoV-2 é pouco frequente nos seis meses após a primeira infeção”, escrevem os autores. Em Manaus, no entanto, as primeiras infeções tinham acontecido há mais tempo, sete a oito meses antes do ressurgimento em janeiro de 2021.
São precisos mais dados sobre a nova variante
Não só a cidade de Manaus — e o estado do Amazonas — rejeitou o confinamento em setembro e outubro, como sugeriu Jesem Orellana, como ainda lhe juntou as eleições municipais e as festas de final de ano, com grandes aglomerações e poucas preocupações, reportou a BBC Brasil. Os médicos ouvidos pelo jornal relatavam, em meados de janeiro, um tipo de internamentos diferente: doentes mais jovens e famílias inteiras, como se o vírus se comportasse de maneira distinta.
O conhecimento científico ainda não é suficiente para afirmar tanto, mas começam a reunir-se as primeiras evidências de que isso esteja a acontecer. São os tais vírus que escapam à resposta imunitária que os doentes tinham desenvolvido anteriormente ou que têm uma capacidade maior para se transmitirem entre pessoas, como disse a equipa de Ester Sabino.
Só em Manaus já foram detetadas duas novas variantes, P.1 e P.2, que adquiriram a mutação Erik (E484K) de forma independente uma da outra e foram capazes de reinfetar pessoas que já tinham estado infetadas com o coronavírus antes. A mutação Erik mostrou em ensaios de laboratório ser capaz de escapar aos anticorpos de pessoas convalescentes (que recuperaram da infeção).
Uma equipa de investigadores britânicos e brasileiros, coordenada por Nuno Faria do Imperial College de Londres, verificou que a variante P.1 circulava em Manaus, pelo menos, desde dezembro. A variante foi encontrada em 13 de 31 amostras recolhidas entre 15 e 23 de dezembro, mas em nenhuma dos 26 genomas disponíveis publicamente colhidos na cidade entre março e novembro, conforme escreveram num artigo publicado no fórum de discussão Virological, e que ainda não foi revisto por cientistas independentes.
A variante P.1, em particular, tem 10 mutações no gene que encerra o código para a produção da proteína spike — a que dá o aspeto (e o nome) coroado ao vírus e que funciona como a chave que lhe abre a porta das células humanas. Entre as mutações estão Erik, também encontrada na variante sul-africana, e Nelly, presente nas variantes sul-africana e britânica.
A equipa de Nuno Faria reconhece as limitações de um estudo com muito poucas amostras, por isso destaca a importância de se apostar na sequenciação genética dos vírus da região (leitura dos genes dos SARS-CoV-2 detetados) para “investigar a frequência da nova variante ao longo do tempo, estimar em que data surgiu e inferir a taxa de crescimento na população”.