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O Papa Francisco nomeou no início de agosto seis mulheres para o Conselho para a Economia do Vaticano, organismo criado em 2014 para supervisionar as atividades financeiras da Santa Sé e que até agora era constituído exclusivamente por homens. A nomeação das seis especialistas enquadra-se numa reforma quase completa daquele organismo — numa altura em que a opacidade nas finanças do Vaticano volta a estar sob escrutínio —, mas está a ser olhada sobretudo como um dos contributos mais decisivos dos últimos anos para o aumento da importância das mulheres na estrutura hierárquica católica, dominada quase em absoluto por homens. Quem defende a igualdade de oportunidades dentro da Igreja aplaude, mas diz que não chega.
O Conselho para a Economia sofreu uma reestruturação quase total — dos 15 membros, só dois se mantêm do mandato anterior: o cardeal alemão Reinhard Marx, que coordena o grupo, e o cardeal sul-africano Wilfred Napier. Os estatutos do organismo são claros: dos 15 membros, oito têm de ser bispos ou cardeais e sete têm de ser especialistas de várias nacionalidades. Esta regra institucionaliza o desequilíbrio à partida, fazendo com que a maioria dos membros do conselho seja sempre composta por homens. Porém, nos últimos seis anos, também os especialistas nomeados foram sempre do sexo masculino. Agora, o Papa Francisco pôs em prática o seu apelo recorrente ao reforço do papel das mulheres dentro da Igreja e escolheu seis mulheres.
Do organismo fazem agora parte Charlotte Kreuter-Kirchhof e Marija Kolak (da Alemanha), María Osácar Garaicoechea e Eva Castillo Sanz (de Espanha) e Ruth Kelly e Leslie Ferrar (do Reino Unido). As seis são especialistas reconhecidas em várias áreas da economia e finanças. Em declarações ao National Catholic Reporter, Ruth Kelly sublinhou a importância da escolha de seis mulheres: “É maravilhoso ver o compromisso do Papa na promoção das mulheres para cargos de tomada de decisão no Vaticano”. Ao mesmo jornal, o cardeal norte-americano Joseph Tobin, um dos cardeais nomeados para o conselho, disse que a nomeação de seis mulheres reflete “o esforço do Papa Francisco para assegurar maiores oportunidades para as mulheres colocarem os seus dons ao serviço da Igreja”.
“O talento nada tem a ver com o género”
Contudo, uma regra permanece inalterada: na Igreja Católica, as mulheres continuam a estar excluídas do sacerdócio. A doutrina católica, consolidada ao longo dos últimos dois milénios, manteve-se clara na recusa de ordenar mulheres como sacerdotes. Aliás, a hierarquia católica afirma mesmo não ter poder para alterar essa realidade, que diz derivar diretamente da decisão de Jesus Cristo de escolher apenas homens para seus apóstolos, a quem teria confiado, na Última Ceia, a tarefa de celebrar a missa. Para aprofundar o fosso entre homens e mulheres, quase todos os cargos de liderança na hierarquia católica, embora não tenham uma relação direta com as características próprias de um sacerdote, estão reservados aos padres, bispos e cardeais.
Basta olhar para o caso português. Entre os 17 secretariados e comissões que fazem parte da estrutura da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), 14 são liderados por homens e três por mulheres. Eugénia Quaresma é uma das três mulheres com cargos de liderança numa estrutura da Igreja Católica em Portugal: é diretora do Secretariado Nacional da Pastoral da Mobilidade Humana, o organismo dentro da CEP responsável por questões como as migrações e os refugiados. Nomeada em 2014, foi a primeira leiga e a primeira mulher a dirigir o departamento. “O talento nada tem a ver com o género”, diz Eugénia Quaresma ao Observador. “O Papa Francisco quer mostrar o verdadeiro rosto da Igreja, que não é só o Papa e os bispos. Há um grande espaço para o laicado e para o laicado no feminino.”
A portuguesa reconhece, porém, que a Igreja está longe da verdadeira igualdade de oportunidades entre homens e mulheres. “Quando vou a reuniões com outros diretores das migrações das conferências episcopais de outros países, são muito poucas as mulheres nesses cargos”, diz Eugénia Quaresma, admitindo que a impossibilidade de acederem ao sacerdócio aliada à existência de cargos reservados a bispos limita definitivamente o poder de decisão das mulheres na Igreja. “Talvez cheguemos lá, mas é preciso passar por estes passos”, diz, referindo-se às nomeações de mulheres para cargos intermédios pelo Papa Francisco. “É uma visão muito pessoal. Talvez cheguemos lá um dia, mas é um caminho gradual.”
No caso português, Eugénia Quaresma sabe que o máximo a que uma mulher pode aspirar na hierarquia católica é a direção de um secretariado. “Não tenho memória de que tenham ido além disso, neste momento é esse o limite”, explica. Acima, estão as comissões episcopais, que como o nome indica são sempre lideradas por um bispo. “O máximo que pode acontecer é ser secretária de uma comissão”, acrescenta a portuguesa. Ainda assim, Eugénia Quaresma destaca o caminho que se tem feito e que mostra “que a Igreja não se fecha só no episcopado, mas nos diferentes carismas”.
“No início houve algum constrangimento, mas acima de tudo senti abertura”, lembra Eugénia Quaresma, que chegou à liderança daquele secretariado para suceder a um sacerdote e entrar num mundo de homens. “Lembro-me de ter perguntado como foi a nomeação e os ecos que tive foram de que os bispos foram favoráveis à minha nomeação”, recorda a responsável. “Havia assuntos que eram só reservados entre padres e bispos e que começaram a ser partilhados comigo. Aquilo que sentimos em relação ao mundo do clero é que é como se fosse corporativo. Quando entra um leigo, é uma novidade. Têm de conhecer, sentir que podem abrir-se e confiar. Houve uma evolução da postura. Se havia alguém que estivesse mais reticente, foi forçado a aceitar.”
Cada vez mais mulheres em cargos intermédios
A nomeação de seis mulheres como especialistas no Conselho para a Economia é apenas o capítulo mais recente de uma sucessão de nomeações no feminino levadas a cabo pelo Papa Francisco ao longo do seu pontificado. O Papa argentino tem destacado que o papel das mulheres na Igreja tem de ser mais do que apenas “funcional” e que a instituição só tem a ganhar com a inclusão de vozes femininas nos órgãos de decisão da hierarquia católica — e tem sido o primeiro a dar o exemplo.
Em dezembro de 2016, Francisco nomeou pela primeira vez uma mulher como diretora dos Museus do Vaticano. A italiana Barbara Jatta, historiadora da arte e professora da Universidade de Nápoles, tornou-se na primeira mulher a assumir a direção de um dos museus mais visitados do mundo e, quando assumiu o cargo, em janeiro de 2017, tornou-se na mulher com o cargo mais elevado na hierarquia do Vaticano. Um ano depois, já eram muitas as mudanças implementadas por ela.
No ano seguinte, o Papa Francisco voltou a inovar quando nomeou duas mulheres italianas como subsecretárias no Dicastério para o Laicado, a Família e a Vida. Gabriella Gambino e Linda Ghisoni, especialistas reconhecidas nas áreas da bioética e da filosofia, já trabalhavam para o Vaticano havia vários anos, mas a promoção elevou-as aos lugares mais altos ocupados por mulheres nas estruturas dirigentes da Igreja Católica a nível global.
Em julho de 2019, Bergoglio tomou uma das decisões mais marcantes neste âmbito — não apenas pelo número de nomeações, mas também pelo facto de parecer tão óbvia —, ao escolher sete mulheres (seis superioras de congregações e uma leiga consagrada) para integrarem, como membros de pleno direito, a Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica. Trata-se do organismo responsável por supervisionar as congregações religiosas de todo o mundo, mas, até ao verão de 2019, sempre tinha sido composta exclusivamente por homens — apesar de as mulheres representarem a maioria dos membros das congregações. Basta olhar as estatísticas mais recentes da Conferência Episcopal Portuguesa para perceber que, para cerca de mil homens em congregações religiosas (a maioria padres), havia perto de 4.500 freiras.
Já este ano, em janeiro, o Papa Francisco nomeou pela primeira vez uma mulher para ocupar um cargo diplomático no Vaticano. Trata-se da italiana Francesca Di Giovanni, que foi escolhida para o cargo de subscretária da Secção de Relações com os Estados da Secretaria de Estado da Santa Sé — o organismo que funciona como Ministério dos Negócios Estrangeiros do Vaticano e cujo líder, o cardeal secretário de Estado, é considerado o número dois da hierarquia católica.
Para Eugénia Quaresma, estes passos têm sido decisivos no reforço do lugar da mulher na Igreja. “Não é só uma questão de palavras. O Papa Francisco dá o exemplo a partir do Vaticano e isso é inspirador”, diz a portuguesa. Contudo, todas as mulheres nomeadas por Francisco para a hierarquia da Igreja ocupam, no máximo, lugares intermédios: os cargos de topo continuam reservados aos bispos e cardeais. Esses, por agora, vão continuar a ser homens.
Doutrina sobre ordenação de mulheres mantém-se
Em novembro de 2016, o Papa Francisco deixou claro que a possibilidade de as mulheres serem ordenadas padres não está em cima da mesa. O momento em que o disse não podia ser mais simbólico: naquele mês, Bergoglio deslocou-se à Suécia para participar na abertura do ano comemorativo do 500.º aniversário da Reforma Protestante (que se assinalou formalmente a 31 de outubro de 2017, dia em que Martinho Lutero afixou as suas 95 teses no castelo de Wittenberg). Na Suécia, encontrou-se com Antje Jackelén, arcebispa primaz da Igreja Luterana da Suécia. A fotografia do abraço entre o líder católico e a arcebispa levantou a questão inevitável na habitual conferência de imprensa a bordo do avião papal, no regresso a Roma.
“Sobre a ordenação das mulheres, a última palavra, clara, é a de São João Paulo II, e ela permanece”, respondeu Francisco. O Papa referia-se à carta apostólica Ordinatio Sacerdotalis, publicada pelo Papa polaco em 1994. Nesse documento, João Paulo II estabelece que a Igreja não tem autoridade para permitir a ordenação de mulheres e garante que “esta sentença deve ser considerada como definitiva por todos os fiéis da Igreja”. Nesse documento, João Paulo II cita uma declaração aprovada pelo Papa Paulo VI em 1976, na qual são definidos os argumentos para a exclusão das mulheres.
A Igreja argumenta com a tradição, que sempre reservou o sacerdócio para os homens; com o exemplo de Jesus Cristo, que só escolheu apóstolos homens; com as ações desses apóstolos, que também só escolheram homens para lhes suceder; com o “valor permanente” das atitudes de Jesus Cristo em relação à Igreja atual; com a identificação dos padres com Jesus (ou seja, como Jesus era homem, só os homens podem agir em seu nome); e ainda com o facto de o sacerdócio ser uma escolha de Deus e não da Igreja.
Como a Amazónia pode desencadear a revolução na Igreja Católica (de que já se fala há seis anos)
A questão voltou a ser levantada no ano passado, a propósito do Sínodo da Amazónia. Na reunião dos bispos católicos foi discutido o caso especial da região da Amazónia, onde um número muito reduzido de padres tem a seu cargo extensos territórios, o que faz com que muitas comunidades cristãs passem meses sem ter missas e outros sacramentos. No fim da reunião, surgiram dois pedidos com potencial para revolucionar definitivamente a doutrina católica: um mais direto, para abrir uma exceção para a ordenação sacerdotal de homens casados na Amazónia, e um mais tímido, para estudar a melhor forma de acolher na estrutura eclesiástica o papel de liderança das mulheres em muitas comunidades da Amazónia.
O Papa Francisco acabaria por não aceder aos pedidos, deixando para já de fora a hipótese de ordenar homens casados e mulheres. No documento em que explicou a sua decisão, Francisco explicou que quer que o reforço da presença das mulheres na Igreja se faça pela via da redução da importância do clero e não pelo acesso delas ao sacerdócio. É preciso evitar “restringir o entendimento da Igreja às suas estruturas funcionais”, disse Francisco, sublinhando que “tal reducionismo levar-nos-ia a acreditar que as mulheres só teriam um status mais elevado e uma maior participação na Igreja se fossem admitidas às Ordens Sagradas”.
“Mas essa abordagem, na verdade, iria restringir a nossa visão e levar-nos-ia a clericalizar as mulheres, diminuindo o grande valor daquilo que elas já realizaram e, subtilmente, tornando o seu contributo indispensável menos eficaz”, argumentou Bergoglio. “Durante séculos, as mulheres mantiveram a Igreja viva nesses lugares através da sua notável devoção e fé profunda”, acrescentou, salientando a “presença de mulheres fortes e generosas que, sem dúvida, foram chamadas e incentivadas pelo Espírito Santo, batizaram, ensinaram, rezaram e atuaram como missionárias”.
Hierarquia católica é “bastante misógina”
Estes argumentos não convencem quem considera que não existirá uma verdadeira igualdade de oportunidades enquanto as mulheres não puderem desempenhar as mesmas funções que os homens dentro da Igreja Católica. Em todo o mundo, vários movimentos e organizações, como a Women’s Ordination Conference, a Women’s Ordination Worldwide ou o We Are Church têm-se empenhado na luta pela ordenação das mulheres na Igreja Católica Romana. Em Portugal, existe um ramo nacional do último, o movimento Nós Somos Igreja. O primeiro pedido é simples: a igualdade de todos os crentes, eliminando a cultura do clericalismo e o fosso entre homens e mulheres.
“O Papa Francisco gostaria de fazer mais, mas há muitas dificuldades dentro do Vaticano, dentro da hierarquia. A hierarquia católica é, infelizmente, bastante misógina”, diz ao Observador Maria João Sande Lemos, que faz parte do núcleo central do movimento em Portugal. “Vê-se que ele tem uma mentalidade mais aberta, mas aquilo é uma estrutura poderosa e ele não quererá criar uma cisão”, acrescenta, reconhecendo que estas nomeações são um primeiro passo num caminho que deve conduzir à ordenação das mulheres.
“Assim como João Paulo II disse que não podia ser, que o assunto estava encerrado, também de haver um Papa que pode dizer que o assunto seja descerrado. Somos todos batizados e temos direito a todos os sacramentos, mas há um proibido às mulheres?”, questiona. “Não me parece justo.”
Para Maria João Sande Lemos, “a ordenação das mulheres é uma questão de direitos humanos” comparável ao alargamento do direito de voto. “A Igreja Católica foi a única organização em que isso não foi feito ainda. Há um grupo maioritário dentro da Igreja, que são as mulheres, que é discriminado. Não nos podem recusar um dos sacramentos. Eu não quero ser ordenada, mas há dezenas de mulheres que seriam excelentes sacerdotes”, afirma, destacando que na Igreja primitiva “as mulheres tinham um papel relevante, como se lê nas cartas de São Paulo, que diziam que as primeiras igrejas domésticas eram nas casas das mulheres”.
Olhando com “muito bons olhos” as sucessivas nomeações de mulheres para cargos relevantes na hierarquia católica, Maria João Sande Lemos salienta que não são suficientes. “Gosto imenso do Papa Francisco. Tem sido uma lufada de ar fresco e vai tentando dar pequenos passos com prudência, mas não colmata a falta terrível da hierarquia”, afirma, apelando a que se olhem outros exemplos vindos do mundo cristão, como a Comunhão Anglicana. “Veja a aceitação dos sacerdotes anglicanos casados e com família e que se convertem ao catolicismo. Isto pode acontecer, mas as mulheres não podem ser ordenadas?”, questiona, apontando o exemplo do padre Saul de Sousa, um sacerdote anglicano casado que se converteu à Igreja Católica, que morreu em 2009. “Era padre das Mercês, uma comunidade muito conservadora, era estimadíssimo pelas pessoas, e a mulher fazia parte da comunidade”, lembra.
Na Comunhão Anglicana, além de os padres poderem ser casados, as mulheres também podem ser ordenadas sacerdotisas. É do universo anglicano que chegam vários dos argumentos teológicos a favor da ordenação das mulheres. Num texto publicado no ano passado, a teóloga anglicana Dorothy Ann Lee critica a “idolatria da masculinidade” subjacente às regras da Igreja Católica sobre a ordenação.
“Os opositores à ordenação das mulheres argumentam que, na Última Ceia, Jesus ordenou 12 homens como apóstolos e nenhuma mulher. Na tradição subsequente da Igreja, dizem, as mulheres nunca foram padres e ordená-las agora levaria a Igreja a contradizer a sua própria tradição”, escreveu Ann Lee. “Porém, há um conjunto de argumentos, dentro do quadro teológico da própria Igreja, fortemente a favor da ordenação de mulheres. No nível mais básico, a Igreja batiza tanto as mulheres como os homens; não há barreira de género no batismo. Isto tem implicações enormes.”
“No batismo”, continua a teóloga, “uma pessoa recebe algo da identidade do Cristo ressuscitado. Ele ou ela pertencem, agora, a Cristo de uma forma única. Não só estão comprometidos a viver como Cristo uma vida de amor e justiça, mas também estão capacitados a representar Cristo no serviço aos outros. Porém, supostamente, é só no altar que elas não são capazes de representar Cristo.”
“Jesus não era apenas homem, mas também judeu. Aos padres na Igreja Católica não se exige que sejam judeus, mas podem representar Cristo a partir de muitos contextos étnicos e culturais”, destaca Ann Lee. “A masculinidade, por outras palavras, recebeu um peso significativamente maior do que todas as outras diferenças sociais e culturais, incluindo a feminilidade. Neste aspeto, esta crença representa uma idolatria da masculinidade”, acrescenta a teóloga, defendendo que identificação com Cristo não deve ser feita pela masculinidade, mas pela humanidade.