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HUGO AMARAL/OBSERVADOR

HUGO AMARAL/OBSERVADOR

Pastorinhos de Fátima. "Estava de olho neste milagre há quatro anos"

É a "advogada de defesa" a lutar pela canonização dos pastorinhos e uma das principais figuras de Fátima. Em entrevista, a irmã Ângela Coelho diz que a visita do Papa foi "o sprint final" no trabalho.

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O Vaticano aprovou esta quinta-feira o milagre que conduzirá à canonização dos pastorinhos de Fátima, Francisco e Jacinta Marto. Tudo se conjuga, agora, para que a canonização aconteça durante este ano, em que se assinalam os cem anos das aparições de Fátima. Mas há décadas que a canonização destas crianças era um objetivo — da Igreja, do Santuário e dos milhares de peregrinos devotos dos pastorinhos que visitam anualmente o Santuário.

Agora, o feito deve-se em grande parte à irmã Ângela Coelho, a mulher que ao longo dos últimos anos tem estado à frente da causa de canonização das duas crianças. Religiosa da Aliança de Santa Maria e médica de profissão, a irmã Ângela Coelho descreve-se como uma “advogada de defesa” dos pastorinhos e da Irmã Lúcia. O objetivo? Provar que levaram uma vida santa e que devem ser oficialmente considerados, pela Igreja Católica, modelos de vida para os cristãos. E garante que já andava “de olho” neste milagre há pelo menos quatro anos.

Natural de Baião, no Porto, esta religiosa de 46 anos assumiu em 2012 a liderança da Postulação de Francisco e Jacinta Marto, a instituição que desde a década de 50 promove a canonização das duas crianças. Desde essa altura, conta, recebeu centenas de cartas e emails a relatar presumíveis milagres que pudessem contribuir para a canonização dos pastorinhos. Cinco dessas histórias foram analisadas profundamente, envolveram viagens, entrevistas, recolha de relatórios médicos e avaliação por especialistas. Quatro chumbaram — não tinham matéria suficiente para serem considerados milagres. Um — uma cura de uma criança brasileira cujos detalhes ainda não são conhecidos — passou nas sucessivas comissões de análise, foi aprovado e vai agora conduzir à canonização de Francisco e de Jacinta.

A cerca de dois meses do 13 de maio — dia em que o Papa Francisco estará em Fátima para celebrar o centenário das aparições, a irmã Ângela Coelho recebeu o Observador no escritório da Postulação, a poucas dezenas de metros do recinto do Santuário de Fátima. Em entrevista, a postuladora explica ao detalhe a investigação que conduziu à aprovação do milagre, recorda os casos que ficaram pelo caminho e conta a história que a levou à causa da canonização, passando pelas urgências do Hospital de Leiria. Pelo meio, garante que não foi a visita do Papa Francisco que fez acelerar o processo e conta a história da vida das três crianças que viram Nossa Senhora em 1917.

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Nota: a entrevista foi feita antes do anúncio da aprovação do milagre.

A irmã Ângela Coelho é a postuladora dos pastorinhos desde 2012

HUGO AMARAL/OBSERVADOR

A causa dos pastorinhos. Certeza da visita do Papa “foi o sprint final”

O que é que falta para os pastorinhos serem santos?
Falta terminar uma etapa só do estudo do presumível milagre que já entregámos. Está um milagre em estudo, é verdade, e falta concluir a fase teológica do estudo. Depois de essa fase estar concluída, caberá ao Santo Padre determinar quando e onde vão ser canonizados. A canonização estará para breve, tudo aponta que vai ser aprovado, mas de facto falta uma fase, por isso não posso dizer ainda…

Essa fase teológica de que fala, o que quer dizer?
Cada milagre — ou cada presumível milagre — tem de ser analisado por uma comissão científica. Neste caso foram médicos, porque o presumível milagre é uma cura. O que estes médicos concluíram foi que o processo da cura ou a cura em si não tem explicação científica segundo a arte médica atual. Esta fase já está concluída, como sabemos. Depois, tem de haver um conjunto de teólogos que vai dizer que esta cura, que não se explica cientificamente, ocorreu devido à intercessão, num contexto de fé e de oração, dos Beatos Francisco e Jacinta Marto, e só deles. Portanto, dirá o Papa, foi um milagre.

E já se pode conhecer os detalhes do milagre em causa?
Há uma nova regulação da Congregação para a Causa dos Santos, que define que eu, como postuladora, o autor da causa, o D. António [Marto, bispo de Leiria-Fátima], e a própria Congregação estamos sujeitos ao sigilo profissional. Portanto, as únicas pessoas que poderão falar são o próprio miraculado e a sua família, e falarão se quiserem. Só posso dizer que é o caso de uma criança e que ocorreu no Brasil.

Eles são, agora, os mais jovens beatos da história da Igreja, e com eles há uma novidade na reflexão sobre o que é a santidade, até por parte da própria Igreja.

A visita do Papa Francisco em maio serviu de motivação para acelerar os trabalhos?
Por acaso não, vou dizer a verdade. Entrei na causa dos pastorinhos em 2009, como vice-postuladora e depois em 2011 como postuladora, e devo dizer-lhe que queria logo acabar, queria logo encontrar um milagre, queria logo entregar a causa (risos). Digo-o com toda a sinceridade: este caso que agora estamos a estudar, e que mostra grandes probabilidades de ser aprovado, comecei a estudá-lo em 2013. Portanto, há quatro anos. Estou de olho nele há quatro anos, e quem me dera a mim que o tivesse acabado antes! O que é verdade é que, desde o ano passado, o processo do Francisco e da Jacinta começou de facto a acelerar. Ao acelerar, aí nós percebemos: e que tal se fosse no centenário das Aparições? Ainda não tínhamos a certeza se o Papa viria ou não a Fátima e, como lhe digo, não está uma coisa dependente da outra. Pode ser em Fátima ou pode ser em Roma. Tenho é a esperança que seja durante o centenário das Aparições.

Portanto, se houve algum estímulo, foi sempre, dadas as circunstâncias, o centenário das aparições. Não do Papa, porque da visita do Papa ainda não se sabia. Desejava-se, podia ter-se alguma expectativa, mas a certeza não tínhamos. Claro que quando soubemos da vinda do Papa, foi assim aquele sprint final, talvez nos tenhamos entusiasmado mais. Mas não foi o motivo.

Calculo que já tenha conversado com o Papa Francisco sobre o processo de canonização de Francisco e Jacinta. Qual é a visão dele sobre Fátima e os pastorinhos?
Quando vou a Roma, estou na Congregação para a Causa dos Santos. Diretamente com o Papa Francisco não estou assim tão frequentemente. Estive com ele em 2013 na Jornada Mariana do Ano da Fé, onde lhe falei dos pastorinhos, e estive de novo quando o D. António foi numa visita mais privada. Ele tinha, pelo menos, a noção de que eu era a postuladora da causa dos pastorinhos. Achei-o sempre muito aberto, muito interessado, porque são crianças. Na canonização do Francisco e da Jacinta, assim como na sua beatificação, a grande novidade está no facto de serem os mais jovens futuros santos da história. Eles são, agora, os mais jovens beatos da história da Igreja, e com eles há uma novidade na reflexão sobre o que é a santidade, até por parte da própria Igreja.

Crianças tão novas como os pastorinhos podiam ter consciência plena daqueles acontecimentos? Como é que se constrói um fenómeno como este à volta de crianças daquela idade, especialmente, quando era mais fácil descredibilizar?
Sim, era muito mais fácil. Quando aquilo passa por diante, é sinal de que aqui há Deus a atuar. Precisamente por isso, porque são crianças. Os pastorinhos, obviamente que sim, acreditaram totalmente naquilo. Há sinais que nós sabemos da história, factos, que nós percebemos. Por exemplo, o facto de estarem em Ourém presos [os pastorinhos foram presos em agosto de 1917 pelo administrador de Ourém, para não estarem na Cova da Iria no dia 13], sabemos que não houve nenhum mal fisicamente, que ninguém lhes fez mal. Aquela experiência daqueles três dias em Ourém eles não a aguentariam psicologicamente se não estivessem convencidos que era verdade. Estamos a falar de três dias — poderão não ser as condições que às vezes pensamos, mas sabemos que estavam retirados dos pais, impedidos de os ver, num ambiente hostil. Nós sabemos agora que foram três dias, mas eles no primeiro e no segundo dia não sabiam que iam ser três dias. Viviam a situação da prisão, tendo sido submetidos a diversos interrogatórios para contarem o segredo. Se não o contaram aceitando a própria morte só podiam estar convencidos da verdade, porque isto não se explica naturalmente. Tudo o resto pode ser místico e podemos pôr em causa, mas este facto histórico não podemos pôr em causa.

Jacinta, Lúcia e Francisco, os três pastorinhos de Fátima

Eles sofreram muito…
Psicologicamente, sim. Fisicamente não, ninguém lhes bateu, ninguém os torturou, aliás a esposa do administrador deu-lhes de comer, deu-lhes lá a famosa melancia e até numa noite dormiram no chão da sala dela, portanto… (risos) Agora psicologicamente sim, sofreram. Foram postos no limite. Aliás, segundo os relatos da época, o administrador primeiro chamou a Jacinta, fez-lhe um interrogatório, e ela obviamente não disse nada e foi colocada na sala ao lado. Depois veio ter com o Francisco e a Lúcia e disse-lhes: “A vossa irmã está morta”. Eles acreditaram, e aceitaram a seguir, cada um deles, a sua própria morte. Este momento é muito interessante psicologicamente e também está no estudo da veracidade. Uma criança, se tivesse mentido, diante da possibilidade real da morte… Eles loucos não eram, vê-se que são crianças perfeitamente normais naquela época, houve reações normais, sem nada de extraordinário. Portanto há aqui dois ou três factos, a forma como foram depois aguentando os interrogatórios já aqui na Cova da Iria. Sofreram muito.

Os relatos dizem que a Jacinta, quando já estava muito doente, continuava a pedir para ir à Cova da Iria rezar.
Sim, e depois também os próprios relatos em Lisboa [Jacinta esteve internada no Hospital D. Estefânia, onde morreu]. Há pessoas que contam a forma como ela foi vivendo e, por exemplo, ela tinha saudades da mãe. Uma criança com saudades da mãe é uma criança normal. Está sem a mãe, em Lisboa sozinha, tem saudades da mãe e chora… É uma criança normal. O que é que ela tem aqui de especial? É que não vive isto como angústia e desespero, mas oferece a Nossa Senhora, dá-lhe um sentido. É aqui que entra aquela parte do trabalho que se calhar uma criança de hoje em dia, não tocada por Deus desta forma, ou como outra história… Há pessoas que vivem sem fé, e é mesmo assim. Esta criança dá é um sentido especial ao seu sofrimento, que estava a viver.

O facto de serem crianças foi um dos pontos mais complicados no processo, porque a Igreja não permitia a canonização de crianças. Como é que se ultrapassou essa questão?
De facto, essa era a grande dificuldade. Até 1981, não era permitido introduzirem-se na Congregação para a Causa dos Santos causas de santidade de pré-adolescentes, sobretudo se não tivessem morrido mártires. Antes desse ano, a mais jovem era Santa Maria Goretti, que morreu com 12 anos — já era adolescente — e foi mártir. Antes dela, nada. Até pela própria reflexão na sociedade sobre o que era uma criança. Não era que a Igreja fosse assim alguma coisa de especial, mas a criança não era muito valorizada na sociedade nos séculos passados.

E os pastorinhos não eram nem mártires nem adolescentes.
Não eram mártires e eram crianças, nem sequer eram adolescentes. Na Igreja há um momento interessante, quando o Papa Pio X permite a primeira comunhão às crianças, ainda pequeninas. Nessa altura, houve logo uma corrente dentro da Igreja que não o entendeu, porque se achava que as crianças não eram capazes de perceber o mistério. Mesmo assim, o Papa publicou o decreto que permitia o acesso às crianças à primeira comunhão, e disse: “Ainda veremos santos entre as crianças”. É muito engraçado. Há aqui já uma primeira abertura relativamente às crianças perceberem e viverem o que é o mistério de Deus.

Quando o processo dos pastorinhos começa, creio que o padre Kondor [Luis Kondor, o primeiro vice-postulador da causa dos pastorinhos] nem se deve ter apercebido de que não era possível. Como eram os primeiros, nem sequer se falava do assunto. Terminou-se o processo do inquérito diocesano, que foi lento, por estarmos ali nos anos 50 ou 60, sem computadores, e o padre Kondor achou que o processo estava no Vaticano, em 1979, veja bem. Que é quando oficialmente entra. Ou melhor, quando lá chegou. Porque entrar não pôde.

"[A Jacinta] tinha saudades da mãe. Uma criança com saudades da mãe é uma criança normal"

Portanto, houve resistência da Igreja.
Nesse momento, o nosso postulador lá em Roma disse-lhe: “Padre Kondor, o processo não entrou em Roma porque não é possível”. Ninguém sabia disto. Não é que tenha havido uma resistência neste sentido do ‘não e não’. Foi outra coisa, entendia-se que de facto havia esta lei, mas por outro lado havia tanta gente a pedir a canonização dos pastorinhos. Alguma coisa se passava.

Acabou por ser o Papa João Paulo II a resolver o assunto e, deixe-me sublinhar, fê-lo antes do atentado. Isto porque, de facto, a 13 de maio de 1981 o Papa volta o seu olhar para Fátima e isso é indiscutível. Mas a reunião em que se decidiu que as crianças podiam ter acesso aos processos de santidade foi anterior, foi em abril e nos primeiros dias de maio de 1981.

Muito pouco antes do atentado, então.
Sim. E se houve uma reunião que decidiu isso, o trabalho prévio já estava todo feito, com o nosso postulador, o padre [Paolo] Molinari, um jesuíta com uma grande tradição na Causa dos Santos e próximo do Papa. No fundo, o Papa João Paulo II, que era um homem inteligentíssimo e conduzido pelo Espírito Santo, viu isto: há uma disciplina da Igreja — não é uma lei, não é direito canónico, mas uma norma — que diz que não. Existem pedidos de mais de 300 bispos do mundo inteiro a quererem a canonização, portanto alguma coisa não está bem. Por isso, com muita abertura de coração e inteligência, promoveu uma comissão multidisciplinar, com teólogos de vários âmbitos, como a moral, o direito canónico ou biblistas, juntamente com médicos, psiquiatras e pedopsiquiatras, que discutiram isto: é ou não possível que as crianças, após o uso da razão, se tiverem consciência de si e liberdade para tomarem decisões, possam escolher o bem e fazer o bem, até num grau de tal forma interessante que possam ser modelos para nós? Ou seja, a discussão não foi sobre o Francisco e a Jacinta, mas foi sobre a infância.

Desde essa decisão houve mais processos de canonização de crianças?
Sim, houve mais casos introduzidos. Por exemplo, uma menina chamada Nennolina [alcunha de Antonietta Meo], que ainda é mais nova que os pastorinhos. O processo está introduzido, ainda não está concluído, mas a verdade é que ela é uma Serva de Deus. A mudança eclesiástica desta disciplina deve-se a Francisco e Jacinta Marto.

Em 1952, quando a Postulação foi fundada, já havia esta vontade de tornar os pastorinhos santos?
Eu não sei se havia essa vontade de forma tão clara. Acho é que claramente corria entre o povo de Deus a ideia de que estas duas crianças eram santas, porque havia muitas graças a ser obtidas com a sua intercessão. É a chamada fama de santidade. No fundo, o que começa um processo é a fama de santidade. É tão mais seguro que um processo chegue ao fim quanto maior for a fama de santidade. O que é esta fama de santidade? É o povo de Deus — e não a Igreja enquanto instituição ou hierarquia — que vai visitar os túmulos, que pede graças, que comenta “olha, tu nem imaginas o que eu recebi pedindo ao Francisco, pedindo à Jacinta”. É esta voz que a Igreja considera como expressão do Espírito Santo a trabalhar no povo, é mesmo um sensus fidei [sentido da fé], é um lugar teológico onde Deus se manifesta. Começou a ser voz corrente desde o início que estas crianças eram santas, ainda em vida.

Médica de profissão, a irmã Ângela Coelho analisa centenas de relatos de supostos milagres que chegam à Postulação

HUGO AMARAL/OBSERVADOR

Havia muitos casos concretos de pessoas que diziam ter sido alvo dessas tais graças?
Sabemos que havia, mas não está nenhum registado, pelo menos a que eu tenha tido acesso. Começam a registar-se — e estão algumas coisas na Documentação Crítica de Fátima — um ou outro caso. Agora uma recolha sistemática em ordem à canonização não.

Foi isso que a Postulação começou a fazer, então?
Exatamente. Ora bem, como havia esta voz que circulava a dizer que estas crianças eram santas, foi aqui que começou tudo. O povo de Deus, como se sabe, às vezes vai à frente da decisão infalível do Santo Padre, porque o povo é expressão da presença de Deus. Foi isto que fez o bispo de Fátima decidir, depois de consultar o presbitério, começar a causa. A diocese de Fátima é o autor da causa do Francisco e da Jacinta.

Vamos só recuar um pouco. Relativamente a este suposto milagre que está a ser estudado e que pode conduzir à canonização, há uma análise científica que permite, pelo menos, afirmar que por enquanto não há uma explicação. Mas nessa altura, nos anos 50, como é que se olhava para esses acontecimentos que os fiéis relatavam?
É aí que entra o papel da Postulação. Quando começa uma causa, geralmente deve fazer-se um escritório, um espaço que centralize isto tudo. As cartas das pessoas vão chegando aqui — o endereço fica-se a saber, por santinhos, por isto e por aquilo, agora pelos sites. Ao chegarem aqui as cartas, o meu papel, ou o papel do padre Kondor naquela altura, é este: lemos, vemos se é uma graça, sem dúvida a pessoa até pode atribuir como um milagre, mas não há matéria para avançar o processo. Repare, há graças financeiras, de procura de emprego… Por exemplo, alguém que não tem trabalho, pede aos pastorinhos e encontra emprego. A pessoa vai sempre viver isso como graça, eu é que percebo que não há matéria suficiente para um milagre. Faço esta primeira triagem. Por exemplo, este chegou-me via email.

Este caso da criança brasileira?
Sim, este caso chegou-me via email. Pela pessoa que rezou e pelo pai da criança, dois emails ao mesmo tempo. Peguei nos emails e pensei: “Isto é interessante”. Ainda por cima, com a minha formação médica, percebi que havia aqui matéria, e por isso fomos estudar. Mas fiz isto a vários e até houve um que levei mesmo até ao fim e que não foi aprovado.

Ao fim significa o quê? Chegou à Congregação?
Significa que fui mesmo à própria diocese fazer o estudo. Isto é interessante, vou contar o que é que faço com estes casos. Primeiro respondo, respondo a todos, a agradecer. Mas neste caso pedi: “Então já agora, se fosse possível, podia enviar-me todo o seu relatório médico do hospital?” Porque só a família é que tem acesso, nós não temos, pela legislação médica. E eles mandam. Além disso, também peço para que me contem tudo. Tenho de saber como é que foi a oração e a intercessão, porque se rezassem ao Francisco, à Jacinta, ao Padre Pio, à Madre Teresa de Calcutá e à Irmã Lúcia, pois… Não se sabia… Vi que era muito claro e comecei a ficar entusiasmada, pedi mais coisas, e marquei uma viagem para ir lá, in loco, estudar. Porquê? Porque o estudo do milagre, a tal fase diocesana, tem de ser feito na diocese onde ocorreu, porque é lá que está o hospital, é lá que estão as testemunhas.

Portanto este processo foi feito no Brasil.
Sim, fui logo em 2013. Quis conhecer a pessoa, quis conhecer o caso, quis ler o relatório médico, pedi entrevistas com os médicos e também com o senhor bispo, porque o processo é canónico e tem de ser o bispo a querer fazer. E assim foi. Nesta primeira viagem, fui recolher toda a matéria, não só médica como testemunhal, com as pessoas que estão envolvidas. Queria que me contassem o acontecimento ocorrido, em termos do acidente e queria que me contassem a intercessão. E mesmo no processo da Lúcia, é a mesma coisa: documentos e testemunhos. Um processo é isto, tenho de ter provas, que são escritas e que são testemunhais. Aqui as provas escritas são o processo clínico conforme dá o hospital. Recolhi, sistematizei e ordenei. O que faço, e que é o que todos fazemos habitualmente na Causa dos Santos, é pedir um parecer prévio aos médicos da Congregação. Para já, pareceu-me interessante a mim e depois pedi um parecer prévio. Posso pedir a um perito ou a dois peritos da Congregação, que são eles que atribuem dentro da área clínica. Depois, se o parecer prévio for positivo, ou for positivo mas falta isto ou aquilo, vou seguindo as indicações.

Mas houve outro caso em que fiz isto também, que foi nos Estados Unidos. Pareceu-me bem e pedi um parecer prévio. Decidi começar o processo, porque apesar de tudo como postuladora posso decidir sempre. Ainda que o parecer prévio seja negativo, podia decidir começar (risos). Mas nunca o faria…

Ponderei cinco [casos]. Lembro-me perfeitamente. Aquele que foi chumbado nos Estados Unidos, este agora do Brasil e mais três, todos muito sérios. De facto, as pessoas estão convencidas que tiveram um milagre e vivem em gratidão a Nossa Senhora e aos pastorinhos.

E esse parecer foi positivo ou negativo?
Este dos Estados Unidos foi com dúvidas, por isso arrisquei um bocadinho. Ou seja, fomos lá fazer o processo. O que quero dizer com chegar ao fim é isto, é ir lá fazer o processo. Implica ouvir testemunhas, implica toda esta coisa dos carimbos. Toda a parte formal tem de ficar canonicamente bem feita. Este processo ainda foi começado pelo padre Kondor, mas eu é que o concluí, e concluí arriscando.

Como é que é o processo foi chumbado?
Na comissão médica. Os médicos disseram que não havia características. As testemunhas médicas são fundamentais, tanto médicos como o pessoal clínico, e às vezes não querem testemunhar. Não querem, e eu entendo. Sou médica e entendo tão bem que não se queira. Nós protegemos sempre a identidade das pessoas envolvidas. Eu protejo sempre, então eu, que sou sempre de cumprir as regras todas. Mas alguns não têm vontade, outros também não acreditam que seja verdade e por isso não querem colaborar, há vários motivos pelos quais as pessoas não o querem fazer. Este caso dos Estados Unidos, em termos de testemunhas médicas, não era consistente.

Fiquei muito triste, naquela altura. Fiquei… desapontada. Mas, por outro lado, deu-me alguma segurança, sabe. Pensei: “Ok, isto é mesmo a sério”. Já tinha esta certeza, mas experimentar na pele…

Foi a primeira vez que falhou.
Pois…

O processo falhou, quero eu dizer.
Sim, é verdade, falhou o processo. Nós implicamo-nos muito, nós vivemos muito, pelo menos eu, e custou um bocadinho. Mas houve outros. Por exemplo, um outro em que pedi um parecer prévio e me disseram: “Olhe, irmã, é muito interessante, mas por este motivo e por aquele não dá”. Eu li o relatório deles e entendi que não se devia avançar, porque esta primeira fase ainda não envolve gente, sou só eu a mostrar o que recolhi. Este aqui, o do Brasil, já teve logo à partida um parecer positivo. O conselho dos médicos foi esperar um bocadinho para ver, guardar algum tempo, e assim foi. Ou seja, acabou por ser este… É muito bonito.

Quantos processos de presumíveis milagres é que chegou a ponderar?
Ponderei cinco. Lembro-me perfeitamente. Aquele que foi chumbado nos Estados Unidos, este agora do Brasil e mais três, todos muito sérios. De facto, as pessoas estão convencidas que tiveram um milagre e vivem em gratidão a Nossa Senhora e aos pastorinhos, porque há muito esta ligação a Nossa Senhora de Fátima. Vê-se mesmo que é esta espiritualidade que circunda o momento da fé. Tenho contacto com as outras três famílias em que não avancei, e mesmo com este grupo americano, e é muito bonito, porque eles vivem com a consciência de que foi um milagre. Sentem gratidão.

O que é que diz nos outros casos, naqueles que vê logo que não têm pernas para andar?
Eu tenho muito respeito por estas pessoas. Primeiro, respeito imenso a fé deles, comove-me mesmo. E digo-lhes isto mesmo: “A sua fé é para mim um estímulo”. Respeito absolutamente e digo: “Sinto que para si isto seja uma graça extraordinária do Francisco e da Jacinta”. Mas faço-lhes entender que não tem características suficientes, segundo as regras da Congregação para a Causa dos Santos, para ser apresentado como um milagre. Mas não deixa de ser uma graça extraordinária.

E as pessoas aceitam, ou já teve algum caso de maior insistência?
Só uma pessoa, que gostaria de ter sido ela a miraculada, em Portugal. Mas aceitam, até porque quando se reza desta forma é porque há uma angústia muito grande, mais do que outra coisa qualquer. Portanto, depois de uma graça que é obtida, o grande sentimento é a gratidão. Se dá para a canonização dá, se não dá não dá. Mas a gratidão está muito presente e é isto que tento estimular e valorizar. Agora, quando acabar a causa, espero que as pessoas continuem a recorrer aos pastorinhos, porque volta a questão da sua presença no povo de Deus. Acredito mesmo que eles são pessoas fantásticas, que estão no Céu e que têm muito a dizer-nos e a ensinar-nos, que estão também a cuidar de nós, a velar por nós, a interessar-se por nós.

Das urgências do Hospital de Leiria à canonização dos pastorinhos

Antes de fazer parte da Postulação, já era devota dos pastorinhos de Fátima?
Sim, muito.

Como é que viveu o momento da beatificação, em 2000?
Com muita alegria. Isto porque na minha congregação religiosa, que se chama Aliança de Santa Maria, o carisma é viver e difundir a mensagem de Fátima. Ou seja, o nosso carisma nasce precisamente para espalhar na Igreja e no mundo aquilo que estas três crianças viveram. Logo, a nossa devoção aos pastorinhos é muito grande. Além disso, a minha família também era muito devota de Nossa Senhora de Fátima, por isso Nossa Senhora faz parte da minha família desde que nasci. Desde o colo da minha mãe que rezo o terço. O meu pai, que já faleceu, era muito amigo de Nossa Senhora de Fátima. Nós tínhamos uma imagem que, com um Cristo num crucifixo lindíssimo, eram quase o centro da nossa vida, faziam parte da família. E claro, eu, sendo pequenita, lembro-me de ler a história dos pastorinhos e gostar deles e querer ser como eles. O clássico.

Foi isso que a fez entrar numa congregação?
Foi isto que me fez entrar nesta congregação em particular. Senti-me mesmo em casa. Uma das fundadoras foi colega de curso da minha mãe, ou seja, conheci a minha congregação ainda elas eram cinco. Nós morávamos numa aldeia, Frende, em Baião, e depois, com a morte do meu pai, mudámo-nos para o Porto, onde estas irmãs tinham uma pequenina comunidade. O conhecimento vem daqui, por esta situação de fragilidade em que estava a minha mãe — era viúva, com cinco filhos, foi assim um momento muito difícil. Ela, que era uma mulher de fé, aproximou-se desta sua amiga que estava a iniciar uma vida de consagração, quase como um sustento na fé. Nós íamos lá mensalmente, rezar um bocadinho, estar, comer umas torradas, e gostei delas (risos)! Eu já tinha o desejo de ser consagrada, nem me pergunte porquê porque a gente não sabe porque é que estas coisas se têm, e quando as vi, senti que aqui seria feliz. Obviamente que depois, na comunidade, aprofunda-se imenso o amor pelo Francisco e pela Jacinta, porque somos herdeiros da sua vida.

E o dia da beatificação?
O dia da beatificação foi assim uma coisa… Aliás, já o decreto da heroicidade das virtudes, em 1989, eu ainda nem era religiosa, mas recordo-me perfeitamente da alegria da minha fundadora, a Maria Clara, por aquele dia. “Foi assinado o decreto de heroicidade das virtudes!” Eu nem sabia o que é que aquilo queria dizer… Mas a alegria dela, nunca mais a esqueci. Aquilo devia ser muito importante…

Já agora, o que quer dizer?
Aí está. Por exemplo, agora com a Lúcia entregámos tudo, foram as provas todas. Vai agora ser feito um estudo e vai ser tudo resumido numa Positio, que é assim um documento grande a dizer as virtudes dela. É um livro que os teólogos vão ler, e quando estes teólogos dão o seu voto positivo, o Papa proclama que esta pessoa praticou as virtudes em grau heroico. Neste momento, a pessoa é Venerável. Só a partir daqui é que se pode partir para a beatificação, ou seja, procurar o milagre. Aquele dia, nos pastorinhos, representou não apenas que a Igreja os proclamou Veneráveis, que praticaram as virtudes em grau heroico, mas significou aquela mudança. Foi um dia extraordinário, porque foi um dia que não era possível até 1981.

O documento que João Paulo II leu em 2000 na celebração da beatificação dos pastorinhos

HUGO AMARAL/OBSERVADOR

Foram as primeiros crianças a serem declaradas Veneráveis…
Foram. Lembro-me da minha fundadora, da alegria delas, mas eu nem via nada nos jornais. Perguntava-me porque é que aquilo seria tão importante. Mas lembro-me que fixei. E então quando chegámos a 2000, bom, foi assim uma coisa… Uma comoção. Foi um dia muito bonito, com o Papa João Paulo II aqui.

Já acompanhava de perto o processo nessa altura?
Acompanhava por interesse. Comecei a acompanhar o padre Kondor a partir dessa altura.

E como é que se juntou à Postulação?
Olhe, são destas coisas que Deus faz. Sou médica e naquela altura exercia com mais frequência do que hoje. Estava uma vez no Hospital de Leiria, a fazer uma urgência, e entra uma doente que vinha aqui de Fátima, que era húngara e não falava nada além de húngaro. Tentei comunicar com ela, mas como não conseguia chamei familiares da senhora para alguém ajudar. E entrou o padre Kondor, que não era familiar mas era húngaro. Eu conhecia-o muito bem, pois quem é que não conhecia o senhor padre Kondor na altura? Ainda por cima eu também moro aqui na rua do Anjo de Portugal. Ele olhou para mim e também teve ares de quem me conheceu. Disse-me: “Ah, irmã!” e eu disse-lhe que éramos vizinhos. Conhecemo-nos ali. Quando ele se apercebeu que eu era médica, começou a convidar-me para ler as cartas que recebia, com o meu olhar médico.

Não eram documentos confidenciais?
Eram, mas ele pedia-me um parecer médico sobre aqueles casos que ele achava mais interessantes. Dizia-me: “Ângela, como médica, acha que vale a pena ou não vale?” Comecei a ajudá-lo nesta tal triagem que agora eu faço. Se eu não fosse médica, teria de fazer o mesmo — pegar numa carta e pedir a um médico. Como sou médica, faço eu. Na altura, já o fazia com ele, comecei a ser uma espécie de médica consultora. Claro que eu vinha, por exemplo, entregar-lhe duas cartas para lhe dizer o meu parecer, dizia o parecer em cinco minutos e a seguir falávamos uma hora dos pastorinhos. Era o interesse da vida dele e era também o meu, por causa do carisma da comunidade. Começou assim uma amizade.

Até que se juntou oficialmente à causa.
Sim. No final da vida, eu também fui médica dele. Ele estava doente, com uma leucemia, e eu, como sou de clínica geral, tive de lhe encontrar um hematologista, porque não conseguia mais. Este médico acabou por lhe dizer que ele não podia mais viajar sozinho e o padre Kondor, nas visitas que fazia, levava uma das secretárias. Mas a Roma, cada vez que ele lá ia falar com o postulador, tinha de ser eu a ir com ele. O que eu acho que ele esteve a fazer foi a fazer com que os postuladores me conhecessem. Ele falava alemão com o padre [Peter] Gumpel, que ainda é vivo, que era o relator e o grande colaborador do padre Molinari e eu estava duas horas a falar com uma pessoa que não me conhecia, com 70 e muito anos, numa língua que eu não conhecia, que era o italiano. Obviamente, o tema de conversa era o Francisco e a Jacinta. O que é certo é que lá fomos conhecendo. Eu nunca falei disto com o padre Kondor, nunca, e o que lhe estou a dizer são as minhas conclusões.

O que é certo é que ele depois ficou doente, acamou mesmo, e nessa altura competiu ao D. António Marto fazer uma nova nomeação para vice-postulador. O D. António Marto, que é um homem com uma visão e um coração extraordinários, nomeou-me como vice-postuladora adjunta. O vice-postulador continuava a ser o padre Kondor. Foi-o até ao dia da sua morte. Eu era só adjunta, para fazer a transição, que foi só três meses, porque ele entretanto faleceu. Quando o bispo contactou o padre Molinari, o postulador, para saber se ele concordava com a minha nomeação, ele já me conhecia. Foi super-pacífico, sereno. Entrei como adjunta, em 2009, e o padre Kondor morreu pouco depois. Mas morreu como vice-postulador de Francisco e Jacinta Marto e eu acho isto uma coisa muito bonita. Pode não parecer nada, mas eu acho que é o respeito por esta figura que foi o Luís Kondor, a quem devemos muito.

Depois, em 2012, o padre Molinari atingiu a idade limite, que acho que são os 80 e muitos anos, e precisávamos de um postulador em Roma. E o padre Molinari quis que fosse eu. O bispo e eu ainda dissemos: “Ó senhor padre, encontre outro, em quem você confiar nós também confiamos”. Mas ele disse que não, e como só faltava o milagre, ele insistiu que fosse eu, e o cardeal Amato [Prefeito da Congregação] concordou.

Postuladora em Roma significa o quê? Teve de estar lá?
Deveria estar. Neste caso, acho que da parte do cardeal Amato há esta compreensão de que estamos numa era em que viajar até Roma não significa nada, onde com emails é muito rápido o contacto com a Congregação, e só falta um milagre, ou seja, enquanto não houvesse o milagre eu nem precisava de ir lá. O postulador romano é aquele que na Congregação para a Causa dos Santos representa a causa. Eu posso ir à Congregação quantas vezes quiser, eles chamam-me. Quando há alguma coisa a dizer é sempre via postulador romano. Por outro lado, organizo toda a documentação lá, e ando atrás, sempre a perguntar quando sai o decreto. É este o meu papel.

A “advogada de defesa” da Irmã Lúcia

Ao mesmo tempo, a irmã também é vice-postuladora da causa da Irmã Lúcia. Este é um processo muito mais recente e que, ao contrário do dos pastorinhos, depende sobretudo dos escritos da própria Lúcia. Vimos recentemente o encerramento da primeira fase do processo com a entrega daqueles milhares de documentos ao Vaticano. Em que fase está o processo?
O processo da Irmã Lúcia começou dois ou três anos a seguir à sua morte, logo em 2008. O que nós fizemos até agora — fui nomeada [vice-postuladora] em setembro de 2014 — foi este recolher de todos os seus depoimentos, todos os seus escritos, os testemunhos de todas as pessoas que tinham contactado com ela. Terminámos tudo e mandámos para Roma. Já lhe posso dizer que o processo já chegou à Congregação para a Causa dos Santos. As caixas, as famosas caixas, já lá chegaram…

Milhares de documentos…
Sim… Quinze mil, quatrocentas e oitenta e três páginas. Em duplicado. Uma cópia fica na Congregação para os teólogos estudarem e a outra fica para o postulador para ele seguir o seu estudo teológico. Deve estar para ser marcada em breve, pelo postulador, a abertura das caixas, por um chanceler da Congregação. Eles têm de garantir que o que saiu daqui foi o que lá chegou. Ou seja, que não houve em nenhum momento deste transporte nenhum tipo de violação das caixas… Que ninguém inseriu nada, que ninguém tirou nada… Claro que agora até podemos achar isto um bocadinho estranho, mas repare que algumas destas regras já são antigas e antigamente os processos demoravam longos períodos a chegar à Congregação.

Diocese de Coimbra conclui e envia processo de canonização de Lúcia para o Papa

Que documentos são estes?
Bom, nós temos um assunto que tem de ser estudado, e o assunto é o seguinte: Lúcia de Jesus foi ou não foi santa? Ou seja, praticou ou não praticou as virtudes em grau heroico? Este é o tema. Para este tema, eu tenho de recolher provas, a favor ou contra. Isto é tal e qual um processo de advocacia, só que o “réu”, digamos assim, entre aspas, é “a Lúcia foi ou não foi santa”. Temos um advogado que a defende, que sou eu (risos).

Entendo. E há “advogado de acusação”?
Há, promovido pela Igreja. A Igreja, neste caso a diocese de Coimbra, propõe o advogado de acusação, porque quer saber a verdade. Obviamente, eu represento a Lúcia e quero a verdade, por isso vou fornecer todo o tipo de provas e colaboro com o processo. Aliás, há coisas em que eu não posso estar nem posso ver nem nada, porque isso podia invalidar todo o processo. Invalida mesmo! Se eu interferisse em coisas que eu não podia… Obviamente eu acredito, porque eu também pertenço à Igreja e quero a verdade na Igreja, que esta mulher é santa. Se eu visse alguma coisa tinha de dizer, em consciência, para parar. Estamos a tentar obter a verdade. Por isso é que o bispo vai nomear um tribunal, com um promotor da justiça, para saber a verdade.

Além disso, temos de ter provas. Quais são as provas? Os escritos e as pessoas. Os escritos dela e as pessoas que com ela conviveram. Dos escritos toma parte a comissão histórica, que o bispo nomeia. Alguns nomes podem ser propostos por mim, mas é o bispo que nomeia. Isto é tão sério que, sendo a Lúcia carmelita, da comissão histórica só pode fazer parte um membro da congregação, quando muito dois, que permitam o acesso aos seus arquivos. Esta comissão histórica recolhe certificados de registo, como o de nascimento da Lúcia, batismo, a certidão de óbito, e depois há as cartas escritas por ela, documentação escrita por ela, são umas dez mil, doze mil páginas. E não recolhemos tudo, porque há sempre alguém, em alguma parte do mundo, que tem uma carta da Lúcia.

Essas cartas foram escritas pela Irmã Lúcia a quem?
Às pessoas todas que a ela lhe escreveram. A grande questão é que a Lúcia não escrevia porque queria, ela recebia muitas cartas. A comissão histórica recolhe e trata historicamente esta documentação, e depois isto tudo mais os seus livros vai ter de ser lido por teólogos, que têm de ser em número par. Isto porque cada folha tem de ser lida por dois. Nós encontrámos 18 teólogos para ler aquilo tudo num tempo que fosse aceitável. E os dois não podiam saber quem são, para não se influenciarem.

Eu acredito, porque eu também pertenço à Igreja e quero a verdade na Igreja, que esta mulher é santa.

E agora, qual é o próximo passo no processo da Lúcia?
Primeiro, é ver a validade jurídica do processo, o que vai demorar algumas semanas, se não meses. Há um oficial da Congregação que nos vai dizer que nós cumprimos todos os cânones ou não. Se faltar alguma coisa… É assim, há coisas que são o que eles chamam ad validitatem, ou seja, que se faltarem invalidam o processo. Isso não falta nada. Garanto-lhe!

Que documentos são esses que podem invalidar o processo?
Por exemplo, se faltar o juramento de algum oficial do processo — o juramento anterior e o juramento final — o processo fica inválido. Aquela sessão de clausura foi um bocadinho longa, porque todos os oficiais tiveram de jurar que fizeram tudo bem. Há um outro momento que é o chamado momento da publicação dos autos, em que o tribunal em Coimbra preparou tudo, e em que eu não participei — só coordenei agendas, mas nunca estive presente enquanto uma testemunha foi ouvida. Nunca. Não posso, porque isso invalidaria. Mas nesse momento da publicação dos autos, o tribunal de Coimbra prepara todo o material das entrevistas às testemunhas e dá-me a mim, postuladora, a possibilidade de ler, para eu, se quiser, acrescentar alguma coisa. Imaginemos que surge um problema, e eu quero investigar. Dá-me a possibilidade de eu acrescentar provas. Se faltar este momento da publicação dos autos, também invalida o processo.

Três pastorinhos? “O meu papel é fazer perceber às pessoas que a Lúcia não é pastorinha”

Os relatos de presumíveis milagres chegam às duas postulações?
Sim, sim. Imensos. Dos pastorinhos recebemos aqui, e então na da Lúcia… Imensos.

É que habitualmente fala-se dos três pastorinhos, mas na verdade há dois processos a decorrer em fases muito distintas. Quando as pessoas rezam e relatam esses presumíveis milagres, referem-se aos três pastorinhos, ou só ao Francisco e à Jacinta, ou só à Lúcia?
Essa pergunta é interessantíssima, e se tiver a resposta agradeço-lhe imenso (risos)! Esta é a minha dificuldade agora, porque no nosso imaginário são os três pastorinhos, é muito difícil distinguir. Só ao Francisco ou só à Jacinta já há pouca gente a fazê-lo, até porque o meu papel é mesmo este, é difundir a santidade e dizer que eles estão juntos, e de facto as pessoas já os veem como os dois pastorinhos. O problema é que também incluem a Lúcia. Então, o meu papel é fazer perceber às pessoas que a Lúcia não é pastorinha, a Lúcia é Irmã Lúcia. É difícil, mas esta é a minha missão enquanto postuladora das duas causas. É mesmo dizer que se pedem aos três, em termos processuais, fico sem saber o que fazer. Não posso introduzir o caso.

Recebe relatos assim?
Sim, sim.

E o que lhes faz?
Normalmente são coisas simples, que não têm matéria para milagre. Respondo, agradeço, e vou fazendo a minha catequese, é esse o meu papel. É um papel engraçado, não digo inglório, mas não acredito muito no sucesso das minhas catequeses…

Imagine que recebe o relato de um caso que pode ter verdadeiramente hipótese de avançar, mas que a pessoa atribui aos três pastorinhos…
Não vai poder andar. É simples. A sério, não posso mesmo. E também não tento forçar, ver se a pessoa rezou só à Lúcia ou assim. Se não dá, não dá. Mas é engraçado que já há muitos relatos de oração só à Irmã Lúcia, muito claramente. Não é à pastorinha. Eu penso que, com o tempo, isto vai andando. Quando o processo do Francisco e da Jacinta terminar, ou seja, quando a canonização ocorrer, claramente a seguir vou poder investir só na questão da Irmã Lúcia. Eu já faço muito isto nas formações que dou…

A imagem que existe do Francisco e da Jacinta, em crianças, e da Irmã Lúcia, já mais velha, podem ajudar nesse objetivo, não?
Exatamente, e eu tento muito passar esta mensagem. A Irmã Lúcia não é pastorinha, ela vai ser canonizada como Irmã.

Então é errado falar dos três pastorinhos?
Não, não está errado na nossa fé. Uma coisa é o nível da fé, a dimensão da fé. Aí não está errado, são os três pastorinhos. A nível processual é que não pode ser assim. São duas dimensões diferentes e eu, apesar de ser postuladora e de o meu objetivo prático ser chegar à canonização, acredito que o que mais me impulsiona é mesmo esta paixão enorme de dizer que temos duas pessoas fantásticas, para quem devemos olhar porque nos vão ajudar a ser felizes e melhores. Foi sempre o que me moveu. Há um nível da vivência cristã e há um nível do processo. No nível do processo não se pode dizer três pastorinhos. Para a vida cristã claro que pode.

Parece-lhe que os portugueses têm este hábito de rezar aos pastorinhos, já olham para eles como santos? Ou a relação das pessoas é mais com o próprio Santuário de Fátima?
Eu estou sentir que está a haver um crescimento incrível. A expressão disso são, desde que eu sou postuladora, duas igrejas que foram dedicadas aos pastorinhos. Uma nos Marrazes e outra no Montijo. A de Alverca já estava. Ou seja, duas igrejas numa altura em que praticamente não se constroem igrejas estão a ser dedicadas aos Beatos Francisco e Jacinta Marto. Isto quer dizer alguma coisa.

De onde é que chegam mais relatos? De Portugal ou do estrangeiro?
Temos muitas cartas do Brasil, de Itália, de Espanha e dos Estados Unidos. Dos Estados Unidos são imensas…

A sério? Há interesse dos americanos nos pastorinhos?
A sério! Não sei explicar! (risos)

Ainda por cima é um país em que os cristãos não são, de todo, uma maioria…
Não são, e as cartas chegam-me de americanos. Não me chegam de luso-descendentes ou de comunidades portuguesas. Chegam de americanos, é impressionante. Aliás, o caso de que lhe falei e que chumbei, foi em Pittsburgh. Portanto, americano, americano, americano. Um outro caso também era de uma criança americana, já não me recordo do estado. Nesse, fiz só o pedido do parecer prévio, que dizia que era um caso muito interessante, extraordinário, mas não milagre. A devoção aos pastorinhos chega via Senhora de Fátima, claramente. É nos meios católicos que nascem estas comunicações, do Brasil, Espanha e Itália. E também, chegam muitas da Polónia, onde há uma devoção a Nossa Senhora e aos pastorinhos que vai via João Paulo II. Mas mesmo da Tailândia, Nova Zelândia, é uma coisa… À Irmã Lúcia, digo-lhe, eu não consigo explicar a fama de santidade dela!

Porquê?
É muito grande! A difusão desta senhora é um paradoxo. Se eu fosse jornalista faria esta pergunta. Então ela esteve fechada no Carmelo, não saiu, como é que chega a esta gente toda? Eu acho que há aqui mesmo ação de Deus. Claro que eu tenho fé, e por isso faço a leitura crente da realidade, mas acredite que chegam por dia dezenas de pedidos ao Carmelo, via email, e a irmã Ana Sofia [carmelita que faz parte da causa de beatificação] primeiro começava a imprimir as graças, mas não havia papel que chegasse. Começou a pôr em pens, porque as pessoas pediam-lhe para pôr na cela da Irmã Lúcia, e elas cumprem. Isto é muito sério, se as pessoas pedem e elas dizem que vão fazer, depois têm que o fazer. Ela já me disse: “Ó irmã, estou a juntar tudo numa pen, não tenho papel!” E eu entendo… São milhares, ao fim de um ano. Ou comunicação de graças, ou a agradecer. E agora, mesmo com a facilidade que há na comunicação, é impressionante, fica-se a pensar como é que alguém, no outro canto do mundo, soube que há esta mulher.

Além de postuladora da causa dos pastorinhos, a irmã Ângela Coelho também é vice-postuladora da causa da Irmã Lúcia

HUGO AMARAL/OBSERVADOR

Tem a ver com a difusão da Mensagem de Fátima em todo o mundo católico? O Santuário é visitado por milhares de peregrinos estrangeiros.
Eu diria que sim, mas penso que também há uma santidade própria deles. Se as pessoas os continuam a procurar, é porque graças foram recebidas, e se foram recebidas são deles. Porque senão cai a devoção ao Santuário. É óbvio que a imitação de um santo é algo que é importante. Mas, no fundo, aquele início, porque é que eu olho para alguém, foi porque me concedeu uma graça, porque tocou a minha carne ferida, tocou a minha história sofrida. Só depois é que o exemplo nos ajuda, mas aqui já há um percurso de fé.

“Ser médica ajudou-me a ser humilde na forma como dizia os meus clichés”

Médica, superiora da comunidade da Aliança de Santa Maria aqui em Fátima e ainda com esta função de postuladora dos pastorinhos, como é que é o seu dia-a-dia?
Ui (risos). Neste preciso momento, pedi uma licença, pelo menos até ver, porque não era capaz. Sobretudo pelas minhas idas a Roma, por vezes inesperadas, não conseguia cumprir os meus turnos. Mas é só pontual, depois regressarei, pelo menos à Unidade de Cuidados Continuados da Batalha, uma vez por semana. Depois de ter feito o meu internato [especialidade em Medicina Geral], o meu contrato com o Hospital de Leiria foi sempre uma vez por semana: às terças feiras as minhas 12 horas na urgência. E depois de passar tudo isto do centenário, irei retomar. Pelo menos a minha superiora assim o quer. O dia é muito desafiante, tenho de ter muita disciplina no meu tempo, mas sabe, é tão bonito. É que eu faço coisas de que gosto, e gosto de tudo aquilo que faço. Tenho uma sorte! (risos) Eu gosto muito de ser médica, a minha paixão de vida é a medicina. Gosto dos doentes, gosto de estar com os doentes.

Também olha para a sua vida de médica como uma experiência de fé?
Sim. E digo-lhe, a minha vida de médica já me ensinou muita coisa acerca da minha fé, ou da minha falta de fé. Uma coisa muito bonita também é o convívio com os meus colegas, com os profissionais de saúde — médicos, enfermeiros, técnicos de ação médica. Conviver com as pessoas, sobretudo se são não-crentes, ou para quem a fé é uma provocação muito grande, ou para quem a Igreja é um desencanto muito grande, é uma das coisas mais bonitas da minha profissão.

Com os doentes, vamos no início com aquela ideia de que vamos “ver no rosto dos irmãos doentes o rosto de Cristo sofredor”. Isto é muito bonito assim, mas quando se chega lá é muito duro. Por isso, ajudaram-me muito nisto, a ser humilde na forma como dizia os meus clichés. Há momentos em que é muito fácil ver num doente o Cristo sofredor, mas há doentes que não.

São dois mundos muito diferentes que se tocam. A medicina, que é ciência, é razão, e depois o outro lado, a fé, que é uma coisa menos palpável. Como é que esses dois mundos convivem na sua vida?
A fé, apesar de tudo, tem muito de razoável. A fé não é assim tão oposta, eu não vejo como oposto à ciência. Vejo que são duas formas diferentes de aceder à verdade, ao conhecimento, e de assumir a realidade. São duas coisas que se podem complementar. Uma fé sem a racionalidade é superstição, cai facilmente na superstição. E isto não é fé, superstição é até uma forma de idolatria. Mas, por outro lado, eu acho que a minha razão é estimulada pela minha fé. A luz que a minha fé dá à minha razão estimula-a. Eu não consigo separar a minha racionalidade, e inclusivamente a minha formação científica, da fé, sabendo que de vez em quando tenho de parar, humildemente, porque não entendo. Mas isso também os meus colegas sem fé têm de fazer.

Diante de casos concretos, da inexplicabilidade, da sensação de injustiça, de impotência, esta parte científica pura… Eu e os meus colegas não-crentes paramos todos. Não é que a minha fé me permita avançar. Permite-me é ter uma outra leitura sobre o mesmo fenómeno, sem negar nada do que vivi. E às vezes simplesmente não tenho respostas. Não pretendo que a minha fé me dê as respostas para tudo, nunca pretendi isso. Mas também não aceito, não é a minha forma de estar, que a minha ciência seja a única forma de aceder à realidade.

São áreas que respondem a perguntas diferentes?
Não diria assim. Acho é que dão respostas diferentes às mesmas perguntas. Porque um ser humano com fé é um ser humano, ponto. Eu nunca deixo de ser mulher, a minha dimensão antropológica nunca a posso negar. Eu não me considero cientista, tenho uma formação científica, mas eu também tenho fé. E as perguntas são as mesmas. No fundo as perguntas fundamentais que tocam o ser humano tocam-no quer ele seja crente quer não seja. As respostas, ou a tentativa de resposta, é que a fé ilumina-me de uma determinada forma — e a minha fé, que é a fé em Jesus Cristo, é uma fé com nome, não é uma fé numa coisa abstrata da qual não sei o nome — e dá um tipo de resposta que a ciência pura e dura a mim não consegue dar. Mas eu respeito todos os caminhos, e respeito acima de tudo o ser humano em busca da verdade.

Eu não me considero cientista, tenho uma formação científica, mas também tenho fé.

Dizia que tanto a irmã como os seus colegas não-crentes param diante das mesmas realidades, mas calculo que depois lidem de forma diferente com elas.
Sim. Eu, os meus colegas e até os doentes. Há doentes com fé que no momento da morte — da sua ou da de alguém que amam — sabem que não ficam diante do nada e do vazio, e depois há outros, que não têm fé, que sabem que vão ficar diante do nada e do vazio. Mas curiosamente já vi outros tipos de reação. Já vi pessoas sem fé a morrerem totalmente pacificadas, porque chegou o fim, e outros a morrerem desesperados, porque não querem. E também já vi pessoas com fé a morrerem pacificadas porque vão para os braços de Deus e outros a lutarem com a questão, porque também não querem morrer. Já vi de tudo, nem sequer acho que o ter fé dá necessariamente uma outra forma mais pacífica de lidar com a doença ou com a morte. Pode dar, sim, um sentido. Quem vê, pela fé, que com a morte não surge o nada, é natural que tenha uma outra sensação de esperança, de continuidade.É natural que quem não tem fé pense que obviamente é o fim, e eu como médica tenho é de ajudar cada uma destas pessoas a viver da melhor maneira possível aquele momento.

Os doentes que trata sabem que é religiosa?
Sim, sim, sabem todos. Uns já me vão conhecendo, mas também se nota, até pela maneira de vestir.

E têm reações diferentes das que têm com outros médicos? Desconfiam, por exemplo?
A desconfiar nunca tive ninguém. A experiência que tenho é a de uma abertura e de uma confiança diferentes, até às vezes para exprimir sentimentos fundos, como este, o da fé. Porque a questão espiritual está muito presente no ser humano, seja ou não Deus, seja ou não o Deus cristão. Esta dimensão do transcendente… E já tive conversas interessantíssimas com pessoas não-crentes sobre “e agora?” Para mim é uma experiência fantástica.

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E por parte dos colegas, há alguma resistência?
Nunca tive. Digo-lhe, é a minha experiência. Ou é pela forma como nos respeitamos, não sei. Respeitamo-nos mutuamente, mas nunca tive nenhum problema. A ideia era que desde que eu fizesse um bom trabalho clinicamente, e mesmo como religiosa respeitasse as pessoas… E mesmo a minha forma de ser, de estar, porque genuinamente respeito as pessoas, naquilo que é a sua vida, a sua mundividência. Vivi sempre rodeada de gente que não tinha a mesma vivência crente do que eu, então na Faculdade de Medicina, e aprendi a respeitar. Peço sempre é que da mesma forma respeita a minha mundividência.

“O Santuário é um lugar em que a celebração marca a liturgia em Portugal”

Há pouco falava da forma como “a fé sem racionalidade pode cair na superstição”. Aqui em Fátima isso acontece? Estou a falar da questão das velas, das promessas…
Em qualquer campo religioso acontece, não acho que Fátima seja um terreno especial para isso. Há aqui um esforço tão grande de catequização. As velas, as promessas, são expressões muito antigas da nossa fé. Obviamente que eu posso pôr uma vela e estar a ter um ato de superstição, ou posso ter uma vela e achar que simboliza da luz de Cristo. Mas isso é aqui e em todo o lado, por isso é que eu digo que em qualquer forma de religião podemos cair na superstição. Se, de facto, faltar o conteúdo da razão, o risco é cair aqui.

Esta frase até quem a disse, de forma mais bonita e correta, foi João Paulo II na sua encíclica Fides et Ratio, em que ele diz “a fé e a razão são as duas asas pelas quais o pensamento humano se eleva em direção à verdade”. Os papas João Paulo II e Bento XVI insistiam muito na razoabilidade, não podemos esquecer-nos de que somos seres intelectuais.

100 anos depois das aparições, como olha para o fenómeno de Fátima?
Pessoalmente, como crente, dou imensas graças a Deus, porque de facto tem sido uma fonte de graças. Além disso, o Santuário é um lugar em que a celebração marca a liturgia em Portugal, em que a fé está viva, se renova. Repare, a capela das confissões é um mistério. As pessoas vêm a Fátima para se confessar, é extraordinário. Precisamente porque também tem o anonimato, que é algo importante. E às vezes são tocadas por Nossa Senhora. Chegam ali à capelinha, nem tinham pensado em confessar-se, mas chegam ali, não sabem o que é que lhes acontece e têm de se ir confessar. Há uma força que as move. Isto é lindo. Este santuário, como o Papa Bento XVI dizia, é o coração espiritual de Portugal, onde pulsa a vida espiritual do nosso povo, e do mundo. Eu acho fenomenal.

E o próprio desenvolvimento económico e social é também motivo de gratidão. Já viu os milhões de turistas que vêm este ano por causa de Fátima? Eu acho que isto é interessante. Mas vá, faça lá a pergunta seguinte: “Então e o negócio?”

É a irmã que fala disso…
Vamos lá ver (risos). Pode haver exageros, mas repare… Há aqui duas coisas interessantes. Os peregrinos começam a vir, e o peregrino do século XXI não é o peregrino do século XX. Tem de ficar a dormir num quarto, logo têm de surgir hotéis, senão as pessoas deixam de vir. Que há aproveitamento e exageros há sempre, em todos os setores da nossa vida, religiosos ou não. Mas eu sei é que é preciso lugar para as pessoas dormirem, comerem… E repare, eu quando vou viajar ao estrangeiro gosto de trazer às minhas irmãs uma coisinha, e dizer “pensei em ti, lembrei-me de ti”. Faz parte também da minha expressão de amor para com as minhas irmãs e com a minha família.

É o valor que tem o presente, e tinha de haver isto aqui em Fátima. As pessoas vêm e depois chegam a suas casas e dizem “trouxe-te um terço, trouxe-te uma imagem, trouxe-te um santinho”. No fundo, se há oferta é porque há procura. E se há procura é porque — e também sociologicamente — não tem de ser por mal. Por detrás está este sentimento de eu querer dar a alguém, porque este sítio para mim é importante, a expressão disto.

Os três pastorinhos evocados num momumento em Fátima

HUGO AMARAL/OBSERVADOR

Pensa que depois deste ano, em que passa o centenário das aparições, os pastorinhos forem canonizados e o processo da Lúcia avançar, pode haver um esmorecimento do fenómeno Fátima por não haver grandes celebrações a assinalar num futuro próximo?
Não, não, muito pelo contrário. Há momentos marcantes, festa é festa e por definição no dia a seguir à festa não há festa. Isso é um fenómeno sociológico. Em termos espirituais não, muito pelo contrário. Toda a equipa que está envolvida no centenário, estamos todos com imensa vontade de continuar, porque o potencial evangelizador é enorme e de facto acreditamos na experiência espiritual que estamos a viver. Há aqui a noção de que temos um tesouro e temos de o partilhar, porque não é para nós. É isto que nos move, apenas. Se os pastorinhos forem canonizados durante este centenário, mais estímulo há. Em termos de objetivos processuais não há mais nada a alcançar, está alcançado, mas eu continuo a acreditar na santidade deles. E acredito ainda mais, porque já será a Igreja a dizer-mo, com a infalibilidade papal. Obviamente, não é mais centenário, nem podemos aguentar este ritmo porque humanamente temos os nossos limites. Mas há que continuar o projeto pastoral que aqui nasceu há 100 anos.

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