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Maria João Gala / Observador

Maria João Gala / Observador

Paula caiu, teve dois AVC e ergueu-se uma rede imensa para a levantar

Até março de 2013, a vida de Paula era “uma louca correria para o abismo”. É ela mesma quem o admite. Até que um AVC (seguido de outro) a fez parar. Recuperou o essencial: autonomia e liberdade.

A 25 de março de 2013, um AVC mudaria por completo a vida agitada de Paula Bastos, professora na Escola Secundária Adolfo Portela, em Águeda, distrito de Aveiro. Os dias em que permaneceu internada, os meses em que se submeteu à reabilitação, os anos que já leva desta “segunda oportunidade” (numa visão otimista) não apagam as marcas daquele instante, em plenas férias da Páscoa. Mas revelaram-lhe muito, sobre as pessoas. Sobre a vida, afinal.

“O pior estaria para vir. Não nos dias seguintes, passados ainda em verdadeira euforia. Quando comecei a confrontar-me com as imensas dificuldades que só sentia quando tentava fazer as coisas que antes eram tão simples e agora pura e simplesmente não conseguia.” Neste pequeno parágrafo do livro que escreveu entretanto, Paula sintetiza o regresso a casa, depois de dois AVC, um em casa e outro no hospital. E, 11 anos depois de recomeçar a vida em câmara lenta, ainda precisa de amparo. Como se fosse ela a intérprete de uma conhecida canção de Maria Bethânia (Tocando em Frente), a soletrar os versos todos os dias: “Ando devagar porque já tive pressa.”

O livro Às Vezes Caímos (ed. 5 livros), lançado em 2023, não é só o relato exaustivo do “terramoto” a que sobreviveu, mas é também uma ode à amizade e ao amor dos que lhe foram próximos, e que a ajudaram a levantar. A história desta rede é ímpar. Paula vivia sozinha e um ex-aluno mudou-se para casa dela. Quando voltou à escola, em Águeda, uma colega-amiga estava sempre lá, para segurar a porta, mas, sobretudo, para a fazer rir. Depois há os dois irmãos, que a amparam. E o psicoterapeuta e a neuropsicóloga, a quem ela acabou por marcar também. E a gata Kika, que se viria a revelar tão importante.

A história de Paula é um alerta para todos os que julgam ser imunes ao stress, mesmo quando acreditam que o exercício físico pode compensar toda a correria, toda a falta de cuidado. Afinal, todo o cuidado será sempre pouco para servir de muralha aos acidentes vasculares cerebrais, que podem acontecer a qualquer um. No dia anterior, foi ao ginásio, como sempre. Chegou a treinar quatro horas seguidas.

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Tal como conta no livro, fez terapia ocupacional, reabilitação cognitiva em consultas de neuropsicologia, psicoterapia. “E retomei o meu antigo ginásio, onde tentava fazer treinos semelhantes aos de outrora, acumulando cansaço físico e emocional, que por vezes terminaram nas urgências do Hospital Distrital de Águeda, sentindo uma espécie de eterno retorno do e ao maior dos pesadelos, qual Sísifo carregando eternamente a sua pedra.” E ela, a encarnar o poema de Miguel Torga e a recomeçar, todos os dias. Porque ainda pode.

A irmã
Niassa Bastos

"Sou aquela que agiliza toda a parte prática, que a faz ligar à terra”

Para a irmã será sempre “Nassinha”, mesmo que seja a mais velha dos três, aquela a quem a mais nova passou a chamar de mana-mãe. Niassa Bastos foi a primeira pessoa a quem Paula ligou, naquela manhã em que uma simples veia lhe fez paralisar o corpo e a vida. “Quando ela me ligou, tinha perfeita noção do que lhe estava a acontecer. Avisou-me, inclusivamente, para eu não me assustar, porque tinha a boca ao lado… ou sentia que tinha. Sabia que era preciso uma grande presença de espírito e calma. Acho que consegui ter isso. Porque também sabia que, nestas situações, é preciso agir muito rapidamente.”

Quando chegou àquele primeiro andar onde a irmã morava e chamou os bombeiros, teve dúvidas de que fosse um AVC — e eles também. Acompanhou-a sempre, primeiro ao Hospital Distrital de Águeda, depois Aveiro e, mais tarde, Coimbra. Mas a sintomatologia súbita terá enganado até a médica, logo ao início. “As coisas até pareciam estar a correr bem, mas depois complicaram-se. Alguma coisa aconteceu ali.”

Esta “alguma coisa”, Niassa ficou a saber depois, foi um AVC hemorrágico depois de um AVC isquémico, como lhe explicaram nos Cuidados Intensivos em Aveiro. “Lembro-me de o médico dizer que até estava a correr bem e estavam a conseguir drenar o trombo [coágulo], mas entretanto deu-se a hemorragia.”

Uma vez identificada pela Via Verde AVC, Paula permaneceria em coma induzido durante mais de uma semana no Centro Hospitalar Universitário de Coimbra (CHUC), onde os médicos confirmaram que aquele quadro era pouco comum. Depois seria transferida para Águeda. Só daí seguiria para o Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro-Rovisco Pais, na Tocha, concelho de Cantanhede. Ao todo, foram quatro meses entre camas e corredores de hospital.

“Agilizei toda a parte mais prática, ver o que fazer, para onde ir, como ir”, conta Niassa. “Depois de tudo o que aconteceu, eu sou mais a voz da consciência, aquela que ralha e se zanga, que a faz parar e pensar. Sou a peste”, admite. Porque, quando Paula começou a melhorar, “queria rapidamente voltar à vida que tinha antes”. “E eu tinha que lhe dizer que isso não ia acontecer. Fazê-la ligar à terra. Porque, antes do AVC, eu tinha noção de que aquilo não era vida. Avisava-a muitas vezes que andava a esticar a corda.”

A amiga
Teresa Alves

“Lia-lhe 'O Principezinho' enquanto estava em coma”

Teresa e Paula conheceram-se na sala de professores da Secundária de Águeda. Teresinha (como é tratada entre amigos) acredita que se aproximaram “por intermédio de algo de outra dimensão”, já que Teresa é de Português, Paula de Filosofia, e tão-pouco tinham turmas em comum. Haveriam de se ligar também através do grupo de teatro, que ambas fizeram renascer.

Quando soube do AVC, foi a Coimbra visitar a amiga, que estava em coma. Haveria de voltar, para lhe ler o Principezinho, “na esperança de que aquilo a fizesse despertar. Sabia o quanto ela adorava aquele livro. E acreditava mesmo que ela me estava a ouvir”. Mais tarde, Paula haveria de lhe confirmar ter memória de excertos da obra, desse tempo.

Todos os dias, Teresa ligava a João (outro amigo comum) para saber “se a Paulinha já tinha acordado”. Até que um dia foi ele que ligou com a notícia. Mas ela “continuava inerte”. “Foi um choque.” Refeita dele, percebeu que era chegada a hora de dar provas da amizade, quando, muitos meses mais tarde, no ano letivo seguinte, a amiga regressou à escola. “Acompanhei-a sempre. Ia buscá-la à rua e levava-a comigo. O barulho confundia-a, incomodava-a muito. Eu falava muito com ela e, sobretudo, fazia-a rir, divertia-a. Acho que esse foi o meu papel fundamental. Quando via que ela não era capaz de fazer alguma coisa, fazia por ela, sem dar nas vistas.” Por outro lado, esforçava-se por manter um equilíbrio entre relativizar as sequelas, sem no entanto as desvalorizar.

11 anos depois, Teresa diz que já se habituou “à nova Paulinha, que é muito parecida com a anterior”. “Só é mais lenta, faz as coisas mais devagar. Mas como antes a velocidade era excessiva — ela andava sempre a 300 à hora —, não acho mal. Um pouco antes dos AVC, eu dizia-lhe muitas vezes: ‘Para, antes que alguma coisa te pare’.” A “coisa” foi um AVC isquémico, às 8 da manhã do dia 25 de março de 2013.

O amigo e ex-aluno
João Henriques

“Ia com ela para parques abertos e amplos para treinar a condução”

João Henriques acredita que se tornou professor muito por causa das aulas de Paula Bastos, na Secundária de Águeda, em meados dos anos 90. Começou por ser aluno, tornou-se amigo. Já no final do curso universitário, achou que precisava de apoio para fazer a tese. “Socorri-me da Paula. Mantivemos sempre um contacto por carta, na altura da Faculdade, porque eu estudava no Algarve. Quando vim ter com ela, a questão professora-aluno esbateu-se.” Ficaram amigos, muito próximos. Nessa altura, João não podia imaginar que viria a ser uma peça tão importante na rede de Paula. “Quando ela teve o AVC, nós já tínhamos uma relação de família. Quer com ela quer com a família dela.”

Ele tinha a chave de casa de Paula, iam de férias juntos. João estava por dentro de pormenores da vida dela — que nem a própria família conhecia. Tinha consciência “de que ela vivia em excesso de trabalho e com falta de descanso”. Quando recebeu o telefonema de Niassa, a avisar do sucedido, não sabia como aquele momento viria a ser tão impactante na sua própria vida. Depois do choque, ele e a família dela marcaram um encontro em casa da mãe de Paula (entretanto falecida) para ver como iriam gerir tudo: “Como nos poderíamos organizar, quem é que a poderia visitar no hospital, tendo em conta o que sabíamos dela e o que seria a sua vontade, numa altura em que ela não se podia pronunciar.” Sabiam que viriam tempos difíceis. Pouco depois do AVC, a mãe de Paula sofreu uma queda e foi hospitalizada. Chegaram a estar internadas ao mesmo tempo e na mesma enfermaria.

Depois de a ver sair do coma e reaprender a falar e a caminhar sozinha, a rede entrou em ação. “Assim que ela entrou no Rovisco Pais, na Tocha, foi preciso organizar quem é que ficava com ela quando vinha a casa, ao fim de semana”, recorda João. Durante a permanência no Centro de Reabilitação (que viria a revelar-se penosa, tal como Paula descreve ao pormenor no seu livro), o antigo aluno empenhou-se em tornar-lhe os dias mais leves, oferecendo-lhe poesia. Calculou os dias de internamento e dentro de um aquário de vidro colocou rolinhos de papel, cada um com uma frase, um poema, para cada dia.

Passados esses três meses, quando finalmente Paula teve alta, João mudou-se para casa dela. Inicialmente, tratava de tudo: a roupa, a comida, a organização da casa. “O lado esquerdo dela estava comprometido e ela não conseguia fazer sequer as tarefas mais elementares”, recorda ao Observador. “Na altura, todos tivemos a ingenuidade de acreditar que seria possível ela fazer (com treino) tudo aquilo que fazia antes dos dois AVC. Insistimos muito.” A condução foi um desses casos. “Nessa altura, eu ia com ela para parques abertos, para ela poder experimentar conduzir de novo. Foi quando ela percebeu que teria de comprar um carro com mecanismo automático.”

João permaneceu em casa de Paula durante meio ano. Depois foi testando “até que ponto ela conseguiria ficar sozinha”. Passou a dormir lá em casa, apenas, enquanto de dia as colegas de escola, amigos ou familiares passavam por lá, certificando-se de que estava bem. Devolveu-lhe a autonomia quando percebeu “que ela precisava de se reencontrar com aquilo que era a nova Paula”. “Foi um trabalho interior, para mim e para ela, e de luto, na verdade. Porque era preciso reconhecer que a anterior Paula já não existia, agora era outra pessoa. E isso é doloroso, mesmo que seja libertador, sobretudo para ela. Não podíamos exigir dela o mesmo tipo de discurso, de ações. No final, julgo que ela percebeu que poderia ser feliz de outra maneira, fazendo as coisas de outra forma, agora adaptada às circunstâncias.”

Quebraram-se amarras com um passado que não voltaria. João acredita que, afinal, a amiga encontrou um caminho para ser feliz: “Andar mais devagar, ser mais sensível, mais emocional do que algum dia fora.”

O irmão
Carlos Alberto

“Telefonava e vinha vê-la sempre que podia. A recuperação foi um milagre”

O pragmatismo dos números não foi bastante para que o contabilista Carlos Alberto mantivesse a frieza, quando soube que a irmã mais nova sofrera um AVC. Trabalhava na época em Sever do Vouga, ia de boleia com um colega, e o primeiro pensamento que lhe veio à cabeça foi como é que poderia ir para Albergaria, onde morava, e depois para Águeda. Resolvida essa questão, chegou finalmente ao Hospital de Aveiro, mas soube que a irmã já fora transferida para Coimbra. Foi aí que viu a irmã pela primeira vez, numa maca, no corredor, “numa posição totalmente contorcida, imóvel”. Julgou que ela ficaria assim para sempre. E que precisaria de quem cuidasse dela. Demorou até digerir aquela imagem. “Fui-me completamente abaixo. Mas tive de reagir.”

“Quando ela foi para o Rovisco Pais criámos grandes expetativas sobre a recuperação dela. Afinal,não só sairia daquela posição como começou a andar e a falar. Então eu pensava que recuperaria totalmente”, conta Carlos. Quando a irmã regressou a casa, não conseguiu acompanhá-la como gostaria, pois nessa altura estava ele mesmo a tomar conta da mãe, já dependente. “Felizmente ela tinha aqui o João e isso descansou-me”. Ainda assim, Paula haveria de passar a designá-lo por mano-pai.

“Telefonava-lhe, vinha sempre que podia. E acho mesmo que o que aconteceu com ela foi um milagre, em termos de recuperação, face à situação em que a vi. Por isso, fiz uma promessa a Nossa Senhora de Fátima: Se ela recuperasse a autonomia, todos os anos, no dia 25 de março, iria a Fátima, em sinal de agradecimento”. E assim faz, há 11 anos.

O amigo
Bruno Rama

“A Paula chama-me o oculto fazedor de coisas. Porque estou sempre lá”

Bruno era amigo de João, e assim se tornou amigo de Paula, há 13 anos. De todos os elementos desta rede, era aquele que a conhecia há menos tempo, quando aconteceu o AVC. Mas, de todos, foi talvez aquele com maior consciência do que era a doença, pela via profissional: é engenheiro clínico na Unidade Local de Saúde da Região de Aveiro. Não é, por isso, de estranhar que fosse ele um dos contactos privilegiados na lista que constava no CHUC, enquanto Paula esteve nos cuidados intensivos. “Acompanhei toda a evolução, desde o primeiro dia”, recorda Bruno, “apesar de não ser nem o melhor amigo (como é o João) nem familiar direto”.

Para ele, foi também uma aprendizagem. Sobre a doença, sobre as adaptações a que obriga. Talvez por dominar bem os termos e o meio da Saúde, passou a ser “o [oculto] fazedor de coisas: aquele que, não se vendo, está lá”.

Quando Paula voltou para casa, e João se mudou para lá, Bruno sentia-se mais descansado, por um lado, mas começou a preocupar-se com o amigo comum. Chama a atenção para a importância dos cuidadores, a propósito, e lembra as vezes em que foi de Aveiro a Águeda não só com o intuito de ver a amiga Paula, mas também de “tirar o João de casa para dar uma volta, apanhar um ar diferente, para poder estar bem para cuidar”.

Bruno acredita que “houve duas Paulas, depois do AVC: a primeira era a pessoa que ainda não tinha aceitado a situação, e depois esta, que já não é revoltada, e com quem é mais fácil lidar”. Fala dela com toda a admiração, sobretudo do envolvimento na sociedade civil, nomeadamente no GAM (Grupo de Ajuda Mútua) de Aveiro, um movimento criado pela associação Portugal AVC que se dedica a apoiar os sobreviventes da doença.

A neuropsicóloga
Mónica Pinho

“O caso da Paula foi complexo, pelas múltiplas sequelas”

Mónica Pinho conheceu Paula Bastos no princípio de 2014, há dez anos, quando não passara ainda um ano dos AVC. Trabalhava então numa clínica privada em Águeda, e no seu consultório entrou uma mulher “com dificuldades em assimilar e fazer algumas das suas atividades diárias, como lavar a louça, cuidar da roupa, essas coisas”. “Lembro-me de que era difícil ela responder a mais do que um estímulo em simultâneo”, recorda a neuropsicóloga, atualmente professora na Universidade de Aveiro. A organização de documentos e a utilização do computador eram outras das falhas, à época. Mas Mónica recorda-se sobretudo da “dificuldade em pensar como antes, em manter a atenção e concentração”. O cansaço, sobretudo o cansaço, em que “tudo lhe custava muito”.

Juntava-se o desafio em segurar objetos com a mão esquerda, “e tudo isso gerava muito ansiedade e alterações no estado anímico”. A neuropsicóloga não tem dúvidas em afirmar que aquele foi “um caso com alguma complexidade, pelas múltiplas sequelas apresentadas”. Mas depois de elaborado o plano de reabilitação, percebeu que a doente era “extraordinariamente empenhada nas técnicas prescritas, para o treino cognitivo”. Dava-lhe ferramentas várias, “pistas internas e externas, de forma a promover a autonomia”.

Foi um trabalho de muitos meses, que começou por ser semanal. À medida que os ganhos terapêuticos foram surgindo, as consultas foram sendo espaçadas. Recorda sempre que está em causa “uma pessoa com algumas características muito positivas: sempre se mostrou muito consciente das suas dificuldades, e sempre foi uma pessoa muito responsável pela sua recuperação. E muito resiliente. Procurou resignificar este episódio marcante que foi o AVC e encontrou nele outras coisas muito positivas”.

O psicoterapeuta
Marco Ramos

"Ela é capaz de fazer um braço de ferro com a vida. Mas a vida pediu-lhe para dançar”

Marco Ramos não sabe ao certo quem o recomendou a Paula Bastos, mas acredita que “terá sido como de costume: um antigo cliente”. Sabe, isso sim, que naquela época o seu consultório funcionava num velho edifício, um segundo andar com uma escadaria pronunciada, e sempre se espantou com a determinação de Paula em subir cada degrau. “Talvez seja uma característica das pessoas com uma vontade tenaz de recuperar.”

Identifica-se como psicoterapeuta, apesar de ser psicólogo clínico. Porque prefere “deixar para a psicologia uma área de intervenção mais vasta, e circunscrevendo a psicoterapia à mudança humana”. Foi essa a intervenção que lhe coube, no caso de Paula. “Era uma mulher muito interessante, fascinante até, muito envolvida na sua profissão, que gostava de poesia e dinamizava um grupo de teatro. A ideia que tenho é que seria uma pessoa muito dedicada e exigente consigo mesma, o que pode revelar alguma rigidez — coisa que veio a ser muito importante no processo terapêutico.” Os dois AVC retiraram-lhe isso tudo: “Impediram-na de continuar a ser como era. E isso foi uma tragédia, a seguir à do AVC”, recorda Marco Ramos, que viria a ser o escolhido para escrever o prefácio do livro.

“Nós estamos na nossa pequenez e na nossa impotência perante a brutalidade da vida e do mundo. E a fragilidade da nossa vida, enquanto corpo”, sublinha, para enquadrar o que encontrou: “A postura envolvida, combativa, exigente [da Paula], que foi, afinal, uma cliente resistente ao que a vida lhe estava a pedir”.

“Parecia muito difícil ela aceitar, mudar, fazer um luto que se impõe — e que é um dos piores que se tem de fazer: um luto em vida, de nós próprios.” Acompanhou-a em várias lutas internas, como aquela de aceitar que tinha de usar um truque para fazer a cama, entre outras “pequenas batotas, para conseguir ser mais funcional e transformar a sua vida numa coisa mais leve”. Tinha uma metáfora para ela: “Alguém que é capaz de fazer um braço de ferro com a vida, e a vida estava a pedir-lhe para dançar. Para se deixar levar.”

Recorda ainda as “consultas tensas”, em que ambos pareciam fazer também um braço de ferro. “Como se eu soubesse que, enquanto ela não dançasse, não poderia sentir-se bem, ser livre outra vez.” E, aí, Marco Ramos considera que a ideia de escrever o livro foi também crucial para a recuperação. Como terá sido, de resto, a chegada da gata Kika à sua vida: “Ela teve de a aceitar, aceitar que ela lhe provocava desequilíbrios, podia cair, e fazer alguma coisa em relação a isso.” “Foi a gata que lhe ensinou a dançar com a vida.”

A doente
Paula Bastos

“Recuperei o que era fundamental para mim: autonomia e liberdade”

Quando olha para o que era a sua vida antes daquela manhã de março de 2013, Paula Bastos, agora com 57 anos, consegue dizê-la numa frase: “Era uma louca correria para o abismo.” Sabe bem como vivia: “Tudo para anteontem, tudo muito importante, tudo muito intenso, tudo muito rápido. E a sensação, vaga, de ter de, no próximo ano, abrandar.” Ela explica isso bem no livro que entretanto escreveu, Às Vezes Caímos.

Depois de o despertador tocar, às 7h50, preparou o pequeno almoço e deliciou-se com algumas páginas d’A Peste, de Albert Camus. Um momento de relaxe depois de um fim de semana de treinos intensos, no ginásio. “Aquele dia mudou irremediavelmente a minha vida e a daqueles que me eram (são) ainda mais próximos”, recorda ao Observador.

Estava já a tomar café, depois do suplemento vitamínico que lhe dava “energia para manter o ritmo alucinante em que vivia”, quando o seu lado esquerdo ficou subitamente “tão dormente que parecia não ser meu”. E essa sensação de estranheza levou-a a pensar na possibilidade de estar a ter um AVC. “Pensei em ligar ao 112, mas temi não ser capaz de responder às questões que me fizessem. Ligou à irmã. Mantiveram-se ao telefone, durante os 15 quilómetros que separam Águeda de Albergaria-a-Velha, até Niassa chegar. “Enquanto esperávamos pela ambulância, ela ajudou-me a vestir. Foi só aí que percebi que devia ter caído — estava louça partida no chão.”

Paula recorda desse momento que “mantinha um discurso fluente e normal, só com a sensação de boca ao lado, que nunca tive”. “Sentei-me no sofá, à espera dos profissionais de saúde que, ao chegarem, me fizeram um teste de despiste de AVC: sorria, assobie, repita ‘O rato roeu a rolha da garrafa do rei da Rússia’.”

Chegada ao Hospital Distrital de Águeda, manteve um curto, mas ainda fluente diálogo com a médica. “A partir de uma determinada altura, apaguei e só me lembro de ouvir os seus gritos: D. Paula! Via verde AVC!”. O episódio repetia-se, já em contexto hospitalar.

As lembranças seguintes são já nos cuidados intensivos, no CHUC, e correspondem aos últimos dos sete dias de coma induzido. Ficaria mais três semanas internada. Aos 46 anos, teve de reaprender tudo: a comer, a falar, a andar. Foi transferida para o Hospital Distrital de Águeda, enquanto aguardava vaga nos cuidados continuados do Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro-Rovisco Pais, na Tocha. Entrou a 26 de abril, sendo transferida mais tarde para a reabilitação geral. No seu livro, Paula conta pormenores perturbadores dessa experiência.

Quando regressou ao seu apartamento, em Águeda, após a alta, à fase de euforia “seguiu-se o duro confronto com a realidade e a tomada de consciência – violenta, dolorosa – da perda de uma série de automatismos”. Sempre com João ao seu lado, para quem — admite — este processo “não foi menos violento, nem menos duro, nem menos doloroso”.

“Selávamos cada pequena/grande vitória com abraços e sorrisos. Ao João devo tudo na minha recuperação. Foi ele quem me preparou para voltar a viver sozinha na minha casa”, conclui. Volvidos estes 11 anos, há coisas que nunca voltou a conseguir fazer: limpar os pés, depois do banho. “Ainda hoje tenho que pensar como é que se limpa os pés.” Ou tricotar. E esse era um dos seus prazeres. Quando aconteceu o AVC, tinha nas agulhas um cachecol azul e branco, para o João, precisamente.

Em casa, acabou por não fazer alterações, adaptando-se ela, como forma de reabilitação. Conseguiu voltar a ser autónoma. Conduz, vai às compras, cozinha. “Recuperei o que era fundamental para mim: Autonomia e liberdade”.

Continua a ser professora, mas não voltou a lecionar. Acabou por lhe ser conferida uma incapacidade de 62%. Faz parte da equipa de autoavaliação e é tutora de alguns alunos. No ginásio, faz apenas pilates clínico. E fisioterapia duas vezes por semana. Junta-lhe yoga, em modo online. A professora é, também ela, uma sobrevivente de AVC.

Quando olha para a sua rede, Paula não tem dúvidas de que é “uma privilegiada”. Sabe hoje que “às vezes caímos”— como diz o livro que escreveu —, mas haverá sempre quem a ajude a levantar.

Arterial é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com doenças cérebro-cardiovasculares. Resulta de uma parceria com a Novartis e tem a colaboração da Associação de Apoio aos Doentes com Insuficiência Cardíaca, da Fundação Portuguesa de Cardiologia, da Portugal AVC, da Sociedade Portuguesa do Acidente Vascular Cerebral, da Sociedade Portuguesa de Aterosclerose e da Sociedade Portuguesa de Cardiologia. É um conteúdo editorial completamente independente.

Uma parceria com:

Novartis

Com a colaboração de:

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