Seria difícil encontrar um discurso durante os três dias de congresso do PCP em que não se falasse de “dificuldades”, “ofensiva”, “ataques” ou num “tempo de resistência”. Se no último conclave o partido já se sentia sob ataque, em boa parte graças aos seus posicionamentos sobre a pandemia, quatro anos depois junta-se a isso a posição isolada que assumiu sobre a guerra da Ucrânia. O resultado foi um congresso recheado de reclamações sobre os ataques e as “campanhas negras” de que o PCP garante estar a ser alvo — mas também o reconhecimento de “insuficiências próprias”, com os comunistas a constatarem que têm de mudar muitas coisas na sua organização interna se querem “resistir” às dificuldades.
O PCP costuma ter fama de não reconhecer derrotas (ou pelo menos culpas próprias sobre elas), mas no congresso houve muitos dirigentes que trataram de garantir que essa ideia é injusta. “Os resultados que tivemos, do ponto de vista eleitoral, não nos satisfizeram. Ninguém ficou contente, nem transformámos derrotas em vitórias, ao contrário daquilo que se vai dizendo”, disse o secretário-geral, Paulo Raimundo, em entrevista ao Observador, já depois de o dirigente e vereador João Ferreira ter garantido que o partido não está a fazer nenhum “queixume” quando fala das dificuldades que atravessa — apenas a “constatar a realidade” em que se move.
E essa realidade é, para o PCP, negra. Isso já era visível nas “teses”, documento político que resulta do congresso, e que incluem um capítulo dedicado às “condições” em que o PCP luta e que abre anunciando logo que o partido precisa de “resistir à intensa ofensiva política e ideológica a que é sujeito” — e que já existia, garante-se no PCP, mas ficou mais forte e difícil de enfrentar nos últimos anos (nos corredores do partido há quem compare a fase atual aos tempos do PREC).
O que dizem as teses
Neste capítulo das teses faz-se o diagnóstico: o PCP é alvo de uma difusão de preconceitos “sistemática”, de uma deturpação das suas posições, mas também de um “silenciamento e ocultação” em relação àquilo que defende — uma parte de todas as intervenções que referem o tal quadro difícil refere-se sempre aos meios de comunicação (ou de “desinformação”) que o PCP garante que o prejudicam e calam.
Depois, o documento analisa especificamente as vertentes da “virulência da campanha anticomunista” que diz estar em curso: por um lado, defende, a pretexto de “acontecimentos” no plano internacional (presumivelmente uma referência à guerra na Ucrânia) difundem-se “caricaturas” sobre o partido; por outro, e num “plano mais elaborado”, há uma narrativa que classifica o partido como “conservador”.
Segundo as teses, este é um “exercício de manipulação conceptual entre conservadorismo e progresso, que recorre à mentira grosseira para atribuir ao PCP posições que não tem”. E que, comenta-se nos corredores do partido, é em boa parte um exercício feito também pelo resto da esquerda para que esta se assuma como força progressista e deixe o PCP isolado, com uma imagem datada e pouco adaptada aos novos eleitores de esquerda.
As mensagens que falaram para dentro, galvanizando o partido contra os seus inimigos comuns e cerrando fileiras, foram as mais bem recebidas. Foi o que aconteceu no discurso de João Oliveira: “Queriam-nos derrotados e em debandada, mas encontraram-nos firmes e unidos, queriam-nos calados, encolhidos, isolados mas encontraram-nos inconformados, determinados, a apontar o caminho ao encontro das massas”, atirou, provocando um dos aplausos mais estrondosos de todo o congresso.
Ao Observador, o dirigente comunista exploraria essa mesma ideia: “Tem havido uma ofensiva focada em procurar silenciar-nos e procurar impedir-nos de agir politicamente. Há uma tentativa de restringir e condicionar a nossa capacidade de ação.”E, apesar de o partido ter assumido “deficiências” na sua ação, nas teses não se quiseram incluir visões “criticistas” ou “fatalistas” sobre o rumo do partido.
No relatório em que o PCP explicava quais as alterações que foram propostas mas rejeitadas para a versão final das reses, mencionava-se que “não foram acolhidas” propostas que “atribuem ao partido, à sua identidade, prática e orientação, a razão de insuficiências na influência social, política, ideológica e eleitoral do PCP”.
Nas teses e no palanque do congresso, ficou uma ideia: a tal ofensiva impõe o “pensamento único” e o PCP é o maior prejudicado por isso. Também por isso, Jerónimo de Sousa fez uma intervenção em que invocou a história do PCP não só para dizer que o partido não “vacila” nem “fraqueja” em tempos difíceis, mas para deixar um aviso: ser “diferente” é mesmo o “segredo da longevidade” do partido, pelo que o PCP não deve tentar mudar o que é. Como diria mais tarde o dirigente Francisco Lopes: “É impressionante o que o nosso partido enfrentou e ao que resistiu. (…) Não ficaremos a olhar com nostalgia para este ou aquele momento da História. Somos comunistas hoje”.
O plano do PCP: roubar eleitores ao PS e formar quadros
Não há, por isso, qualquer plano para alterar o que é a essência ou as posições do partido, antes alguns modos de funcionamento que implicam que o PCP tenha mais força — mas também modos de comunicar, cada vez mais por meios próprios e sem confiar nos jornais (ou sequer no algoritmo das redes sociais) para passar a sua mensagem.
Desde logo, na mesma entrevista ao Observador, Paulo Raimundo identificou as bases do que é preciso mudar: o partido tem de estar “mais ligado às pessoas, à realidade da vida”, e “perder menos tempo com a bolha mediática“. Até porque, se os ventos “não estão favoráveis”, o PCP também não pode estar à espera de que passem — e tem de se adaptar para “enfrentar esses ventos”.
No seu discurso inicial, Raimundo tinha estabelecido objetivos internos específicos, reconhecendo que não há “nenhum golpe de asa nem uma solução mágica” para o PCP poder concretizar a sua política alternativa. É preciso “alargar a base”, reforçar as organizações dos trabalhadores, e reconhecer que esse é um processo exigente, “que não estando ao virar da esquina, não deixa de exigir uma intervenção diária, paciente e audaciosa”.
Curiosamente, durante o congresso João Ferreira viria dar uma pista para a forma como esse alargamento pode ser feito: se o PCP está com dificuldades de atração de novo eleitorado, deve tentar “deslocar para a esquerda” setores da sociedade — incluindo na “base social e eleitoral de outros, como o PS”. O partido espera que essa oportunidade surja sobretudo olhando para as opções do PS de Pedro Nuno Santos, viabilizando a governação ou o Orçamento do Estado do Governo de Luís Montenegro, e apresentando assim o PCP como a verdadeira oposição à esquerda, agora que o PS “deixou cair a máscara“. Sem esquecer a necessidade de “captar o descontentamento e revolta” do eleitorado que pode ir parar ao Chega.
Mas Raimundo prosseguiria com a definição dos objetivos internos concretos, necessários se o PCP quer conseguir fazer essa captação de eleitorado: o partido quer dar mais responsabilidade aos militantes e hoje diz ter “1042 novos quadros responsabilizados”, ainda que seja preciso “mais” (o novo objetivo são mais mil quadros). “Temos consciência das nossas dificuldades, certamente não faremos sempre tudo bem, e estamos longe de enterrar a cabeça na areia. É partindo da realidade partidária que temos e não da que gostaríamos de ter, que tomamos as medidas que se impõem”, reconheceu Raimundo.
Na entrevista ao Observador já citada, João Ferreira explorou as “insuficiências” do partido: é preciso uma maior “ligação” às massas, sobretudo quando esta é mediada por meios que “nem sempre transmitem uma imagem fiel do que é o PCP”. Ou seja, é preciso “garantir essa ligação a partir daquilo que só depende do PCP. Uma ligação não mediada, mas mais imediata e próxima”. O dirigente falava ao Observador da necessidade de enraizamento junto dos trabalhadores que o PCP admite “não conseguir fazer com a organização que tem neste momento”, daí estar a tentar apostar não só no recrutamento mas também na partilha de responsabilidades pelos seus quadros.
“O PCP conseguiu apesar de tudo progressos no recrutamento nestes quatro anos”, ainda que no saldo total não tenham compensado as saídas e mortes de militantes. “As pessoas entraram mesmo num período muito difícil”, registou João Ferreira — dentro do partido há quem diga mesmo que, dado o clima atual e as “deturpações” sobre as posições do PCP, é até difícil perceber como é que há jovens que continuam a querer aderir ao partido. “Precisamos de os responsabilizar, de envolvê-los na vida do partido, de lhes dar uma tarefa e transformar em quadros”, reforçou João Ferreira. “Esse é um desafio a que ainda não respondemos na sua plenitude. Reconhecemos que nesta área é muito aquilo que temos de fazer”.
Curiosamente, a ideia de responsabilizar e envolver toda a gente faz lembrar um episódio que o ex-deputado Miguel Tiago contava ao Observador, para um perfil do então novo secretário-geral, sobre o estilo de liderança de Paulo Raimundo: quando estava a gerir voluntários na Festa do Avante, Raimundo ensinou-lhe que tinha de distribuir tarefas por todos, “inventando nem que não fizessem falta”, para lhe dar uma lição sobre gerir pessoas e gerir o partido: “O mais importante era que todos os camaradas percebessem que estavam a ser úteis e a trabalhar, não a sentirem-se sem tarefas. É uma lição, até na gestão de uma empresa, de equipas”.
PCP aposta na comunicação própria, contra “algoritmos”
A outra área em que há muito a fazer, como João Ferreira sugeria na resposta sobre o problema da “mediação”, é a comunicação do partido — e essa foi muito analisada durante o congresso. Aconteceu logo de início, quando Raimundo abriu o conclave a falar de um tempo de “desinformação, notícias falsas e mentiras” que faz parte da ofensiva que seria “ingénuo e perigoso” ignorar. Depois, o secretário-geral definiu os órgãos de informação do partido — o Avante! e o Militante — como a “voz da verdade, da resistência, da informação”. O primeiro jornal chegou mesmo a ser definido como o “mais sólido instrumento” ao dispor do PCP — “aquele que não está dependente dos algoritmos ou das vontades dos grandes impérios das telecomunicações”.
Uma das preocupações do PCP nos últimos tempos têm sido, de resto, os estudos e notícias que apontam para que os algoritmos das redes sociais estejam a difundir particularmente os populismos de direita. Não faltaram, por isso, intervenções a propósito das soluções que o PCP tem para passar a sua mensagem. A dirigente Carina Castro avisou que o PCP não deve “atribuir a uma suposta ineficácia da comunicação do partido a ofensiva” de que diz ser alvo, mas acrescentou um aviso à navegação: “Não nos basta ter razão, precisamos mesmo de levá-la a toda a parte”.
A “solução brilhante” que tantas vezes se procura num slogan ou num conteúdo para as redes sociais está, na verdade, na “organização” do partido, assegurou a dirigente. E lançou uma farpa às televisões, que chamam um “camarada” de forma “ocasional e rara”.
Também Gustavo Carneiro, do Comité Central, alertou: o partido está a “depender cada vez mais dos seus meios” para passar a sua mensagem e o Avante é o único jornal que “não está nas mãos” dos grandes grupos económicos, além de trazer informação — e não “gritaria” ou “desinformação descarada”. Mas precisa de ser “mais lido” e dar o “salto”, assumiu.
“O PCP não concorre em nenhum ato eleitoral em condições de igualdade com os nossos adversários, não só porque os meios que estão à nossa disposição não são os mesmos e não temos sido colocados em pé de igualdade na capacidade de difusão da mensagem”, resumiria João Oliveira ao Observador, fazendo eco de uma das maiores preocupações que se ouvem no partido. Perante esta convicção, fica no final deste congresso a ideia de que o PCP, seja por culpa própria ou por culpa da “ofensiva” que o atinge com cada vez mais força, tem de mudar.