Ainda guarda a fiambreira da Siemens que comprou aos 15 anos, e que hoje ajuda nas patuscadas em família, cioso dos instrumentos de trabalho e da importância de todos os aliados da hospitalidade — conceito caro a quem se dedica hoje ao fine dining.
Há quatro anos ao leme do Cura, para Pedro Pena Bastos a experiência do cliente deve ser cinco estrelas, como o Ritz em que se instala, mas acredita que é possível desengravatar os pratos e modos à mesa. “Ainda temos medo de sujar as mãos”, lamenta o chef de 34 anos, que se assustou nas primeiras cozinhas, chorou, fez uma pausa, e voltou para agarrar nesta casa em pleno ano de pandemia, lockdowns e negativos. Com a equipa afinada que o acompanha, ao ritmo da inspiradora bateria, conquistou a estrela Michelin em menos de um ano, e continua a apostar na consistência da máquina, que assinala mais um aniversário com um conjunto de jantares a quatro mãos até final de outubro. Na cabeça, uma série de projetos paralelos para pôr em marcha em breve. “Um dia ainda hei-de de ter esse espaço mais democrático.”
Um passarinho soprava-nos que ia ser muito difícil conseguir fotografá-lo na cozinha – porque está toda desarrumada e como bom chef detesta cozinhas desarrumadas.
Sim. [ri-se]
Pouco passam das três da tarde, estamos a umas quantas horas de arrancar o serviço…
Temos quatro horas.
Que parece muito tempo mas acaba por ser nada para quem está ali a mil.
Não é nada, porque se retirarmos uma hora dessas quatro, temos três horas de preparação. Essa hora é suficiente para jantarmos, para preparar a cozinha toda, para afinar os últimos detalhes de temperos, molhos, começar a grelhar o marisco para o serviço, algumas coisas em avanço. Sobram três horas, o tempo é muito curto.
Sendo que em bom rigor começam ainda de manhã?
Sim. Alguns ao final da manhã, outros por volta de uma da tarde.
Vemos a equipa ali a circular, num espaço exíguo. Estamos a falar de uma orquestra que tem que estar, de facto, muito bem afinada. O que que o Pedro baterista traz dessa experiência na música para a cozinha?
No sentido musical ou no sentido de ritmo?
Ambos. Para já, percebi que têm sempre música em fundo enquanto trabalham.
Sempre, sempre. E às vezes temos em estéreo. O staff da sala coloca uma música, a cozinha outra música, e às vezes é um bocado confuso.
Há uma disputa de playlists?
Não, não há. Normalmente a cozinha chega sempre mais cedo, por isso acabam por monopolizar um bocadinho a música. Mas isto, na verdade, é tudo muito natural, as equipas aqui dentro funcionam como uma família muito grande e obviamente que há pessoas que se interligam mais do que outras, mas a música, o ritmo…
Isso traz consigo?
Sim, e é muito importante. A parte da determinação e da disciplina, isso vai-nos dar rigor, consistência, que são as armas para conseguirmos ter o restaurante a funcionar com esta assertividade todos os dias. E é mesmo importante mantermos isto, porque há um ritmo muito mais exigente neste tipo de restaurante.
[Enquanto alguém cuida dos copos ouve-se um barulho que nos faz prever o pior. “Não partiu? Incrível! São bons!”, aplaude o chef]
As reservas são muito regulares, o ritmo também, trabalhamos só com um menu e, portanto, esse menu acaba por ditar um bocadinho o modus operandi do restaurante. Já tivemos à la carte, já tivemos várias ofertas de mais do que um menu e agora só com esta simplicidade da oferta acaba por fazer com que o foco seja diferente.
Sente que este menu funciona melhor?
Sim, muito melhor e é muito igual todos os dias. Acaba por ser quase um piloto automático. Depois é preciso recalibrar algumas coisinhas, trocar o óleo, substituir…
É preciso essa dose de previsibilidade?
Sim, temos que ter tudo muito já orientado. Já sabemos exatamente os detalhes do cliente, as restrições, as horas de chegada, inclusive se já pagou ou se não pagou. E há assim uma série de fatores que cada vez mais são eliminados de maneira a conseguir rentabilizar a operação e torná-la mais consistente ainda.
Imagino que não seja comum tentar sair sem pagar, mas já se atreveram?
Já, já tentaram… Mas temos os detalhes de cartão da pré-reserva e, portanto, conseguimos depois cobrar. Mas não é de todo o tipo de restaurante [onde aconteça]… E felizmente nunca tivemos episódios desse género. Para as pessoas virem jantar têm que fazer uma pré-reserva, que é feita juntamente com o pagamento. Há uma garantia e uma pressão muito maior para que as pessoas honrem o compromisso de virem jantar. A pior coisa que se quer neste tipo de restauração…
É uma reserva perdida.
Exato. É um no-show. São muitos milhares por ano. Ainda continua a haver bastante, mas muito menos do que no passado. Antes não cobrávamos, hoje cobramos e, portanto, reduzimos drasticamente o número de no-shows. Mas, sim, a bateria tem que ser quase o primeiro metrónomo aqui dentro. É ele que dá o ritmo ao resto. Depois funciona tudo por horários, por timings. Agora são 15h40. Das 16h às 16h30 as últimas mise en place [preparação dos itens que irão ser servidos] grandes de preparação são feitas. Às 16h30 a cozinha é limpa. Às 17h menos um quarto até às 17h30 montamos o serviço. Às 17h30 é o briefing geral do restaurante.
Tudo controlado, mas não vejo relógio no seu pulso.
Não, tenho sempre relógio. Hoje, por acaso, não trouxe, mas ando sempre com relógio. E temos sempre os telefones com alarmes. Sempre.
Dizia-me que um mero minuto de desvio da rotina é suficiente para comprometer todo o trabalho da equipa.
Sim, imenso. De forma geral, na cozinha é isso que acontece. Neste tipo de restaurante, em que temos muito pouco tempo para entregar uma refeição altamente complexa, que é uma experiência, todos os minutos são contadinhos ao máximo. Mas, obviamente, depois há este lado humano, de família, de fraternidade.
Como se acautela esse lado?
É difícil, às vezes tem que ser um bocadinho forçado. Há pessoas que stressam mais do que outras. O ideal aqui é os colaboradores começarem a ganhar calo e um ritmo próprio do trabalho, para conseguirem ser mais autónomos e fazerem isto com a perna atrás das costas. Isso, obviamente, são anos de experiência. Mas esta parte mais descontraída de ter música, ter um ambiente quase forçadamente descontraído, ajuda-os também a relativizar alguns problemas e a mise en place flui muito melhor. A descontração não significa que estejam distraídos. Estão concentrados, mas estão sem tanta tensão nos ombros.
Tenta desconstruir aquela ideia de cozinha enquanto espaço de tensão, de alguma guerrilha até?
Nunca acreditei nisso e nunca vou aceitar que ninguém venha corroborar isso nas minhas equipas porque não vai acontecer. Não tem que ser um espaço de guerra, tem que ser um espaço de muito trabalho, em que as pessoas queiram trabalhar, criem a sua própria dinâmica. Se quiserem impor ritmo nelas próprias e exigência que transpareça para os outros, não há mal nenhum desde que não comprometa. Todos eles têm que entregar o mesmo em termos de exigência e de qualidade. Isso é o standard. Nós todos temos que respeitar o standard. Eu tenho que respeitar o standard também. E todos temos que ter atenção a uma série de fatores. Mas é igual em todos os restaurantes desta gama. Nós, neste caso, só servimos jantares. Servimos, sim, sete dias por semana. Ainda são muitas horas de trabalho.
E muitas pessoas para gerir, com personalidades distintas?
Muito diferentes, vidas muito diferentes. Muitos talentos na cozinha.
Bastante jovens.
Sim, eu tenho 34. A Marina, a nossa sous chef, tem 41. O Rodolfo, que também é nosso sous chef, tem 30. E depois o nosso sommelier tem 36.
Percebe-se que quem vem jantar é também um cliente muito diverso. E vê-se uma coisa muito curiosa, que é muita gente a comer sozinha. Sente que tem aumentado?
Isso não é muito bom para o negócio, não é? Números ímpares nunca foram bons amigos. Depende do layout de sala, obviamente. Mas sim, ainda bem, cada vez mais se vê pessoas sozinhas a comer. E mesmo grupos de três, de cinco.
E sei que têm alguns habitués, mas mesmo muito habitués.
Temos várias pessoas que já vieram cá mais de dez vezes em quatro anos. Temos uma pessoa, inclusive, que vem a todas as mudanças de carta e que vem a todos os jantares privados que fazemos a quatro mãos com outros chefs. E é muito satisfatório ter isso no restaurante. Porque realmente é alguém que compreende o nosso trabalho. Para nós é muito importante ter esse tipo de clientes, ainda por cima clientes portugueses, que cada vez são menos. Dá-nos um alento diferente.
Tem a oportunidade de ir às mesas e falar um pouco com as pessoas. Percebe as razões do regresso? Há uma cultura de facto gastronómica que se vai cimentando?
Há dois fatores que eu sempre impus neste restaurante, e que nós fazemos questão de manter bem vivos, que é muito aquilo que o nome Cura significa.
Hospitalidade?
Sim, o da healing effect, não é? Uma pessoa que vem ao restaurante e se sente quase tratado. É um… health pill, happy pill. Mas para além disso a parte humana é muito importante. Tentamos ser o máximo humanos com as pessoas, sem colocarmos a nossa opinião em cima da mesa. Porque a nossa opinião para a experiência do cliente conta zero. Eles querem ser bem tratados, querem ter o espaço deles e querem se sentir especiais. E respeitados enquanto estão aqui.
Costumam dar muito feedback?
Sim, e felizmente nos últimos 4 anos, ainda que com a rotação de equipas, que é normal nesta área, temos tido um grande número de feedbacks positivos. E clientes a voltarem precisamente com o mesmo tipo de de opinião e de review. Isso é muito importante. Depois há o menu, em que estamos sempre a alterar algumas coisas. E isso é fundamental para conseguirmos cativar a atenção do cliente a voltar. Principalmente o cliente mais local. Que possa voltar de 6 em 6 meses e tenha o menu praticamente alterado.
E também para espicaçar essa vossa criatividade? Porque há pouco falávamos do lado da regularidade que é preciso garantir mas presumo que também não queira estar sempre a fazer a mesma coisa.
Não, mas também não queremos estar sempre a alterar. Em termos logísticos não é bom, nem de consistência. Para criarmos um restaurante ultraconsistente com uma carta altamente rotativa já temos que ter uma equipa de desenvolvimento, outros tipos de dinâmicas que nós aqui não temos. Somos um restaurante muito pequeno e portanto os pratos entram one by one. Nunca trocamos a carta toda. E isso acaba por nos dar também confiança. Em poucos meses conseguimos rodar o menu praticamente todo. Há pratos que ficam mais tempo. Temos uma sobremesa que está há praticamente um ano.
Aquele gelado de pinho e ananás do menu especial vai ter direito a outra vida?
Sim, isso foi feito só para a ocasião. Mas nós vamos mudar e vamos fazê-la… É incrível. Vamos fazê-la agora. O sabor é ótimo. E é super complexo, também gostei muito do efeito. Mas para nós é isso, o sabor é fundamental. Tem que ser ultra saboroso. Não pode haver nada sem ser saboroso. Mas tem que ter textura. Tem que ter componente de localização, sazonalidade. E obviamente trazer a alma portuguesa para a mesa.
Tem aqui muitas referências nacionais.
Sim, um monte de coisas. Nós temos vários pilares no menu que eu creio que simbolizam muito aquilo que é a gastronomia portuguesa. Mas ainda assim, em termos estéticos, não pretendemos de todo recriar receituários. Agora vamos desenvolver um prato que há de entrar na carta nas próximas semanas, que é um arroz cremoso de feijão branco e cogumelos, acompanhado com um porco. Temos que elevar o nível da expectativa do cliente também. Mas é sempre muito desafiante colocar a gastronomia portuguesa em cima da mesa num formato ligeiramente diferente. Com o nosso toque e com a nossa personalidade de Cura.
Mencionava a hospitalidade. Que detalhes destaca dessa personalidade, além comida?
Cada restaurante tem as suas características e o nosso é muito virado para os elementos. Desde aquilo que a pessoa vê quando chega. É acolhedor, mas é muito cru também. As pedras, a madeira. Nunca pretendemos ter uma gastronomia demasiado estética, porque também acreditámos que sempre acabaria por prejudicar um bocadinho o resto. Sempre quisemos complementar muito a decoração do restaurante com a gastronomia e a gastronomia com a decoração do restaurante. E acima de tudo queremos servir comida autêntica. Eu acho que é o grande desafio hoje em dia. Vamos perdendo a autenticidade à medida que os pratos começam a encolher e as doses começam a encolher.
Discute-se muito o conceito de fine dining. O que é para si hoje fundamental quando oferece um serviço como este?
Fator humano. Qualidade da comida, dos produtos, os nossos sabores, e o conforto da sala também é muito importante. Sentar as pessoas aqui durante duas horas é um desafio. Acreditamos que as nossas cadeiras são confortáveis, as nossas mesas também. Não queríamos uma experiência muito rígida com o cliente.
Cliente que não volta apenas pela boa comida?
Há uma série de fatores que, acredito, trazem os clientes de volta. Sentir a confiança de um empregado de mesa, de uma hostess, de um sommelier. Quer a apresentar o menu, a abrir a porta, e de uma forma genuína. E a partir do momento em que toda a gente chega aqui ao restaurante para trabalhar, tem que mandar os problemas fora. Estamos aqui para trabalhar. Não é para misturar fatores pessoais com profissionais.
O que pode ser desafiante, como em outras áreas.
Por isso é que isto não é para todos. Quem quiser fazer parte desse núcleo duro de criar experiências memoráveis para o cliente, é bem-vindo. E é esse tipo de pessoas que vamos querer sempre que trabalhem connosco. Se não, não faz muito sentido. Queremos a personalidade das pessoas, como é óbvio, mas ainda assim, isto tem que funcionar como um conjunto, como um todo.
Outro tema muito em cima da mesa é a gestão dos recursos humanos, a crise no setor do pessoal. Também a sente?
Toda a gente sente isso. É muito fácil termos pessoas que se queiram destacar ou pela sua personalidade, ou por acharem que sabem fazer tudo e mais alguma coisa. Vão prejudicar o resto da equipa, vão prejudicar o projeto. São as primeiras a sair. É sempre assim em todo lado. Queremos muito o espírito crítico da equipa, mas é muito importante para que isto funcione tudo que as pessoas compreendam que não estão num negócio de restauração habitual quer para quem trabalha na cozinha, quer para quem trabalha na sala em contacto com o cliente. É duro.
A flexibilidade é determinante?
Temos mesmo que nos deixar levar, ser adaptativos. Fazer com que o cliente sinta que está em casa. Sem que as regras sejam ditadas por este. Nós é que temos que ditar as regras do restaurante e do funcionamento do restaurante.
Aquela velha máxima de que o cliente tem sempre razão. Não tem?
[Pausa prolongada] Não. Isso é uma forma errada de argumentação. O espaço existe, há uma regra, há uma oferta, em termos de sala, em termos de cozinha, na simbiose dos dois, etc. O cliente pode ter razão à sua maneira, pode ter uma opinião divergente daquilo que acreditamos, ou pode ter uma opinião completamente alinhada com aquilo que temos. Quem se identificar mais, vem mais vezes ao restaurante, certamente, por isso é que eu acho que há negócios e negócios, mas ainda assim há público para tudo.
Um público mais exigente, em especial este que vem a um espaço com uma estrela Michelin?
Felizmente o restaurante está aberto há quatro anos e temos vindo a crescer em termos de faturação, de reviews, em termos de captação de outro público, cada vez mais gastronómico, e isso aumenta a nossa exigência, e nós queremos também corresponder.
Mas falou em menos portugueses.
Menos público nacional, mas o pouco que temos é cada vez mais gastronómico e exigente. Querem ser tratados da mesma forma, ou ainda melhor, face à última vez que cá vieram. E para isso, tem que ser tudo bem feito, desde talheres bem limpos, copos imaculados, pratos sem marca. Acreditamos que temos que também dar valor aos materiais que colocamos em cima da mesa e dignidade. Se nós temos um copo que foi criado por um artesão, este copo tem que ser bem tratado, e é isso que também queremos mostrar à mesa. E cada item que temos na mesa tem o seu significado e o seu papel. Se é aquele copo, é porque acreditamos que vai encaixar melhor. Quando o preço é caro, quando temos um menu a custar 185€ mais o pairing de vinhos, rapidamente temos uma média de 300€ por pessoa, ou mais, o nível de exigência é muito alto. Não pode falhar nada. Não há desculpas.
É aquele tipo de responsabilidade que se sente sempre?
Eu sinto e faço questão que toda a gente sinta. É importante que toda a gente sinta. É importante suarmos um bocadinho para perceber que os clientes vêm cá, independentemente se é para o nosso bolso ou não, eles vêm gastar muito dinheiro. E que as margens são curtas, mas ainda assim isto tem de sobreviver enquanto negócio e nós temos que fazer tudo certinho. E é importante respondermos ao desperdício, no caso da cozinha, às quebras e ao cuidado com o material, principalmente com copos, que é uma coisa muito fácil de partir. Acidentes acontecem, mas temos que saber corrigir e melhorar.
O Cura celebra quatro anos. Não é difícil perceber que arrancou em pleno ano de pandemia de Covid-19, em setembro. Como é que foram esses primeiros tempos?
Foi muito difícil, eu entrei para o projeto ainda em 2019, e começámos a preparar o restaurante e de repente, 3 meses antes da abertura, veio a Covid e tivemos que colocar tudo em stand-by. Muitos dos materiais que recebemos enquanto o restaurante estava ainda em obras nem sequer conseguimos colocar aqui nada. Foi um espaço que precisou de ser construído de raiz, a fachada foi toda alterada, o interior também. Foi um grande desafio, principalmente para a gestão de equipas e tudo mais. Começámos com muitos meses a negativo.
Temeu que fosse tudo por água abaixo?
Sim, claro. Mas também sempre acreditámos que era algo passageiro. À medida que as medidas foram-se libertando, nós começámos a agarrar cada vez mais nas coisas e houve decisões que foram tomadas em cima do joelho e de um dia para o outro.
Por exemplo?
A abertura. Soubemos um mês antes, no início de agosto, que as medidas iriam ser retiradas, portanto, dali a um mês tínhamos que abrir o restaurante. Tivemos que pedir a toda a gente que voltasse de lay-off e começámos a fazer os primeiros testes para o restaurante. Quinze dias antes do restaurante abrir, fechámos o primeiro menu e, a partir daí, foram afinações e afinações até abrirmos o restaurante. E, obviamente, esse primeiro ano foi muito difícil porque começámos a negativo.
Quem foram os seus primeiros clientes, recorda-se?
Muitos portugueses, imensos, muitos internacionais que vivem cá em Portugal, principalmente aqui em Lisboa. Os preços eram muito diferentes, o que também nos deu margem para podermos começar com outra calma e com outra exigência. E, rapidamente, fomos crescendo e, felizmente, conseguimos ganhar a primeira estrela passado oito meses efetivos de operação, sendo que fechámos de janeiro a abril, fechámos ali três meses no meio. E ainda fechámos em dezembro para acerto de férias e dias. Em novembro, recebemos o convite para a gala [Michelin].
O que pensou na altura?
Não estava à espera. De todo, não estava nada à espera que, ao final de menos de um ano, ganhássemos uma estrela Michelin. É uma consequência de um esforço que a equipa teve. Senti-me bem por ter vindo abrir um restaurante no Ritz, e passados 60 anos conseguirmos dar essa oportunidade da estrela ao hotel. Foi uma oportunidade única na minha carreira. E não só na minha, mas como em toda a gente que quis abraçar o projeto desde a raiz comigo. E, a partir de agora, é uma responsabilidade enorme.
Passa-se mais tempo a pensar na segunda ou na eventualidade de perder esta?
Não penso na segunda. Honestamente, não penso. Obviamente que gostava.
Mas há uma pressão constante de manter?
Claro, eu acho que o que mais dói é manter. A robótica que tem que existir por trás disto tudo, para que continue a haver consistência, que haja menos fator humano e mais fator mecânico, é o mais difícil no meio disto tudo. É um grande desafio manter, não é melhorar para ganharmos a segunda ou a terceira. E o difícil é melhorar e simplificar. Nós cada vez mais tornamos as coisas simples, mas mais saborosas, com mais conteúdo, com mais contexto. Se há 4 anos fazíamos um menu com 14 momentos em que cada momento havia 2 ou 3 interações e eu próprio vim jantar várias vezes ao restaurante e… [achei demasiado].
Costuma estar nessa posição de cliente de si próprio?
Sim, e cada vez mais acho isso fundamental. E no próximo mês, assim que terminarmos os aniversários, volto-me a sentar à mesa para provar o menu todo na íntegra, para voltar a testar as afinações, se funciona, se não funciona, para que tudo seja equilibrado.
E traz a sua mãe também?
Se eu trago a minha mãe… [ri-se]
Para criticar, claro.
Creio que a minha mãe já veio cá jantar, não me recordo. Mas quero trazê-la novamente, sem dúvida. Mas sim, já trouxe a minha mulher e já trouxe vários amigos. A minha mãe é muito crítica, sim, mas é uma crítica genuína, de sabor e de…
É aquela coisa mesmo de mãe.
Sim, sim, sim.
E as petingas assadas da mãe continuam a ser as petingas assadas da mãe?
As petingas dela continuam a ser as petingas dela. Ainda acho que hei-de tentar replicá-las aqui no restaurante. Mas depois lá está, temos sempre algum cliente que vem “epá, um restaurante Michelin servir espinhas no peixe?”. Ainda que estas sejam crocantes. Mas sim, temos que também corresponder um bocadinho às expectativas, às vezes um bocadinho traiçoeiras que alguns clientes criam à volta destes projetos, mas faz parte.
Ainda há muita coisa que sinta por exemplo que faz sentido desconstruir nesta cozinha mais exclusiva ou sofisticada?
(pausa) Comer com as mãos.
Aqui assim temos momentos no menu que convidam a isso.
Sim, mas… It’s never enough. Acho que o cliente tem muito medo de tocar na comida com a mão e não há forma melhor de nos aproximarmos da comida do que usar a nossa mão. É onde realmente sabemos que ela é feita para nós. Este espaço é muito elegante, mas é qb descontraído. Conseguimos cada vez mais ter momentos de comer à mão, de sujar os dedos. E é muito cultural também. Um dia ainda hei-de de ter esse espaço mais democrático.
Por mais que se suje as mãos não é possível num sítio como este, de alta-cozinha?
Não, aqui não dá. Aqui não dá porque não é o conceito. Os conceitos existem. É importante que haja um conceito, ainda que este possa ser mais ou menos abrangente. Ainda assim no Cura acho que somos muito dinâmicos e o facto de não servirmos toalhas na mesa já é uma grande mudança para algumas pessoas.
O seu plano de sonho? O que seria?
O meu plano de sonho? Ter amor em casa, ter uma família saudável, ter saúde e poder continuar a viajar, ter amigos e ter tempo para a minha família de casa e a família do trabalho. E poder viver a vida da forma alegre e feliz que tenho vivido. O resto…
Certo, mas falando de projetos gastronómicos.
Isso são outros tipos de coisas. Às vezes são gostos, são pequenas ideias que uma pessoa tem, e que neste período de tempo podem funcionar. Eu gostava de ter um monoconceito ou algo mais de comida de casa, mais de mesa diária, sem regras, em que possa servir pratos pequenos de partilha, com muita grelha, mas também ao mesmo tempo possa servir uma pizzeta. Adoro esses conceitos mais de petiscaria, mas não só portuguesa, italiana também. Acho que nós fomos muito influenciados ainda pelo fator espanhol, basco, e acho que conseguimos ir a um lado genuíno que ainda é pouco explorado em Portugal. Bom, não posso dizer mais, se não ainda me copiam o conceito [ri-se] mas há várias coisas que gostava de fazer, sem dúvida. Gostava de ter um conceito só de finger food, também gostava de ter uma padaria, com pastelaria diária.
Já lhe tinha perguntado para quando um take away do vosso pão, do azeite, etc
À medida que nós vamos desenvolvendo conceitos, até mesmo de serviço de sala, há uma série de coisas que vão surgindo e que podemos conseguir escalar para um modelo de negócio para implementarmos num próximo espaço. Também gostava de ter um projeto de bebidas naturais, relacionado com sumos…
Eu pedi um projeto de sonho e o Pedro já tem aí uma cadeia.
Tenho projetos para muita coisa, para uma vida inteira. E gostava de voltar a fazer eventos privados com mais frequência, como sempre fiz, e de há uns anos para cá deixei muito de fazer, por causa da abertura do Cura. Veio exigir muito em termos de tempo e gostava de voltar a atacar essa frente, que acho que é muito importante e dá outro tipo de estabilidade também a uma empresa.
Tem paciência para cozinhar em casa?
Adoro. Fui feito para cozinhar, estimulo e educo-me a fazê-lo da forma mais rápida, simples e saborosa possível. E cozinho em casa por necessidade, mas adorava ter mais tempo para cozinhar por gosto, porque realmente o que falta é tempo.
Algum prato de assinatura?
Não tenho prato de assinatura em casa. Adoro fazer uma ótima massa, como um bom estufado, ou pizzas. Adoro cozinhar para o meu filho.
É bom crítico?
Super. Acho que estou a educá-lo mal, na verdade, porque cada vez mais diz “isso precisa de um bocadinho de sal”, ou “tem sal a mais”, “precisa de sumo de limão”. E cada vez mais ele vai ouvindo e criando uma estrutura gastronómica naquela cabecinha ainda de três anos e meio, o que é assustador às vezes… Mas é a minha realidade, portanto, isso não posso esconder.
Começou muito cedo, ainda no Porto, como foi cultivada essa sua estrutura gastronómica?
Vem de memórias. No início eu achava que gostava de experimentar técnicas e tudo mais, a partir do momento em que dominei as técnicas quis deixar de saber. Quis largar toda essa alquimia de transformação de produto quase cientificamente e passar a cozinhar da forma mais crua, com o fogo, no fogão, na grelha.
Mas ainda miúdo via os outros cozinhar e já queria fazê-lo?
Sim, o primeiro equipamento que comprei, com 15 anos, foi uma fiambreira da Siemens. Ainda existe, ainda funciona, e tenho-a em casa dos meus pais, que era a casa antiga dos meus avós, no campo, para umas patuscadas de família, para cortar uns enchidos, uns queijinhos. Eu cuido muito das coisas que tenho. Tenho caixas de utensílios em todo o lado, em casa dos meus pais no Porto, aqui em Lisboa, em Tomar, em casa dos meus avós, com tudo aquilo que preciso para também poder cozinhar à vontade.
Sempre teve esse à vontade?
Eu sempre cozinhei em casa mas tinha medo de tudo. Tinha medo de entrar numa cozinha. A primeira vez que entrei numa cozinha, disse a mim mesmo que não quero isto, não é isto que eu quero, não quero entrar mais nisto. Eu quero cozinhar, mas não é isto que eu quero.
Ainda na altura do Cafeína?
Sim, foi na altura do Cafeína, assustei-me muito, e experimentei outro tipo de restaurantes também. Não era bem aquilo que eu queria. É um choque muito grande, porque a realidade dói, e anos mais tarde, quando nós estamos neste apelo de…Ok, agora o que é que é? Abrimos um restaurante e és tu que estás a gerir tudo, desde pagamentos de salários, é uma grande responsabilidade.
Porque a gestão de um restaurante não começa nem termina nos tachos?
Nem é só ser contratado. A equipa que eu tenho aqui, é como se fosse contratada por mim na íntegra, é a responsabilidade que eu sinto. E quando eles falham, eu falho, e todos nós falhamos porque alguém falha. Nós moldamos a vida das pessoas a partir do momento em que as contratamos, e portanto, esse grande choque começou a existir na minha vida a partir do momento em que eu abri uma empresa de eventos, e comecei a precisar de contratar pessoas, e era preciso um salário ao final do mês, e aí aprende-se a trabalhar por dinheiro.
Como é que se aprende essa lição?
Trabalhar por dinheiro foi muito difícil, porque a paixão aí tem que ser posta de parte, temos que usar aquilo que já foi paixão e que foi transformado em expertise, e usar essa expertise para libertar receita e fazer dinheiro, e ter sempre depois paixão a entrar, e uma coisa vai alimentando a outra. Por isso é que os negócios funcionam. E quando o negócio está montado, vamos sonhando com o próximo, e às vezes pode demorar muitos anos.
Faz-lhe sentido estar aqui neste momento mas a pensar em projetos paralelos?
Eu estou aqui há quatro anos, já fiz outra série de projetos mas nunca restaurantes paralelos. Quem sabe, em breve irei ter essa oportunidade, mas as coisas não têm que ser rápidas, têm que libertar consistência, gerar receita, criarem oportunidades de emprego para as pessoas, e isso tudo alimenta o conceito, alimenta uma família, alimenta o nome de um chefe, de uma empresa. É nisso que acredito. Eles são todos felizes, eu estou a olhar para eles e sinto que estão felizes.
Os empregados?
Sim, até há uns anos não sentia.
Porquê?
Porque era demasiado frio, bruto, não queria conhecer tanto as pessoas.
Sentia isso?
Sim, sentia, chegava a casa todos os dias e chorava. É muito duro, acho que o início é duro para todos.
Ainda na fase Cura ou anterior?
Não, felizmente o Cura já apanhou aquilo que eu acho que é o melhor de mim. O Esporão foi muito difícil, estava muito fora do ambiente social em que fui habituado a crescer, foi muito difícil trabalhar com pessoas que não eram apaixonadas por cozinhar. É um grande turbilhão mas a partir do momento que uma coisa começa a correr bem, a próxima corre ainda melhor, e a outra cada vez melhor. Eu acho que a estrela Michelin, em muitos casos, faz a consolidação da cozinha de um chefe, e sinto que foi isso que me aconteceu.
Chegou no momento ideal?
Eu não devia ter merecido a estrela antes, apareceu no momento certo, quando tinha que aparecer.
Ainda passou pelo Ceia.
Foi o meu projeto em Lisboa, mais a solo, e que serviu sem dúvida, como uma alavanca para hoje em dia estar aqui.
Ainda o fazia ir para casa a chorar?
Não, de todo, até porque eu estive meio ano parado, afastado das cozinhas, tive um acidente grave, obrigou-me a parar. Entretanto fiz consultorias, e quando regressei senti-me uma outra pessoa, senti que tinha que fazer as coisas de outra forma, e que isto tinha que me dar mesmo uma curtição, para que eu conseguisse aguentar a vida inteira a fazer isto.
Ajuda ir tocando bateria?
Sempre que consigo. Infelizmente, tem sido cada vez mais raro, acho que vai ser mais o meu filho a começar a tocar bateria do que eu, mas sempre fui uma pessoa de ritmos, e acho que isso também é o que manda muito a vida, e alivia o stress e a tensão. Adoro música, sempre tive muito contacto com música. Já disse até que se calhar vivia bem sem cozinha, mas sem música não consigo viver.
O que é que se imagina a fazer fora da cozinha?
Tudo. Não tenho medo de fazer nada, não tenho medo de me dedicar a qualquer outro tipo de setores. Adorava ter sido médico, se calhar um dia mais tarde ainda vou tentar algo relacionado com a ciência, não sei. Mas adoro cozinhar, sinto que tenho ao dispor uma série de ferramentas para explorar esta área da melhor maneira possível e é isso mesmo que vou continuar a fazer.
Mas admitindo novidades paralelas para breve.
Gostava de me dedicar à produção de alimentos, sem dúvida, à agricultura. Gostava de voltar a pegar no projeto dos azeites da minha família com outra dinâmica ainda mais séria e gostava de voltar à música, ter uma banda, ou ter um projeto musical que funcione como hobby, por exemplo. Mas o que eu realmente gosto de fazer dentro da área de restauração é desenvolver conceitos novos e sentir que tudo funciona porque a semente foi plantada e regada como deve ser. É sentirmos que estamos a deixar de trabalhar, quase, porque naturalmente a planta se torna auto-sustentável.
Por falar em ser auto-sustentável. No jantar desafiaram-nos a pensar nos alimentos que integrariam um eventual kit de sobrevivência, se estivéssemos numa ilha deserta. Quais seriam os seus?
Eu levava farinha para poder fazer o pão. Mas aí tinha de ferver água para tirar o sal….[risos] Mas, sim. Alho, mostarda, azeite, vinagre, sal. A vida tem de ter sal, as relações, os projetos, as coisas sem sal não funcionam. Sem sal, para mim, são cinzentas e eu sempre fui muito preto ou branco. Por outro lado, em termos partidários, sou muito democrático, inclusivo, ligado à parte da sustentabilidade. Mas acho que isso também vem muito da parte de criar projetos e de querer ver as coisas em equilíbrio.
Como é que se equilibram as quatro mãos quando convida chefs de fora, como é o caso, para celebrarem o aniversário com estes menus especiais?
Para a equipa é o mais desafiante. Tudo é diferente, o pairing de vinhos, a comida, o ritmo de serviço, o estilo de serviço. Portanto, naquele dia em específico temos de alterar a dinâmica do restaurante para depois no dia a seguir voltar a fazer play. Mas o mais giro é essa dinâmica. Sentirmos a adrenalina de ser diferente e de entrarmos um bocadinho no lodo, senão também não fazíamos isto.
Esse lodo também faz falta?
Não é bom mantermos uma rotina demasiado certinha, temos de criar picos para depois conseguirmos gerar o equilíbrio. Nem o cliente acha piada a que seja tudo linear. Por isso é que eu acho que é bom haver pratos que tu gostas mais ou menos no menu. Não pode ser tudo super equilibradozinho. Os pratos têm de ser todos ótimos, mas há sempre vários que se destacam. E eu acho que isso também faz parte de uma experiência num restaurante. Aquela lembrança que se vai levar.
Calculo qual seja a resposta, mas destaque um elemento deste menu que tem um sabor especial e que já lhe mereceu comentário curioso dos clientes?
A forma como nós tratamos a manteiga no Cura. Damos-lhe um toque de rancificação nobre, que é envelhecer a manteiga durante algumas semanas, em alguma parte do ano, em outra parte do ano, alguns dias, mas faz-se com que o ácido butírico que se desenvolve através da oxidação das gorduras, feito de uma forma saudável, é aceitável e confere outra complexidade e dimensão de sabor à gordura, à manteiga, neste caso. Isto é recriado de maneira a que se assemelhe com uma memória que eu tinha. E foi muito engraçado sentir pelo menos duas vezes em quatro anos clientes questionarem-me porque é que esta manteiga sabia à manteiga da avó deles. Porque na altura não havia frigoríficos, a imagem que tenho é da minha avó deixar a manteiga fora do frigorífico, e o sabor era diferente. É engraçado ver um cliente a sentir exatamente o propósito daquele prato. É um detalhe, em 400 e tal itens que nós usamos no menu. Lá está.