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Trata-se de mais um exemplo da falta de eficiência do processo penal português. Quando o procurador Orlando Figueira foi preso em fevereiro, foi libertado três dias por estar pendente um recurso no Tribunal Constitucional. Na realidade, eram dois recursos por duas matérias diferentes — que foram decididos e transitaram em julgado em maio e junho.
Ou seja, Orlando Figueira deveria ter sido preso há três meses, após a liquidação da pena e respetivo deferimento da promoção do mandado de condução à prisão por parte dos serviços do Ministério Público no Juízo Central Criminal de Lisboa. Contudo, tal mandado só foi emitido esta segunda-feira, tendo a juíza de direito titular do processo deferido o mesmo — apurou o Observador junto de fontes judiciais.
Vice-presidente de Angola formalmente acusado de corrupção activa de procurador do MP
A juíza de direito titular dos autos, apurou igualmente o Observador junto de fontes judiciais, já deferiu a promoção e constatou que o trânsito em julgado do acórdão condenatório ocorreu a 6 de junho. Contudo, a administração da Justiça só agiu após o Observador ter começado a questionar na semana passada sobre quais as justificações para os autos terem transitado em julgado e a liquidação da pena ainda não ter acontecido. Por exemplo, os serviços do MP pediram no dia 6 de setembro uma informação ao Tribunal da Relação de Lisboa e ao Supremo Tribunal de Justiça sobre se havia recursos pendentes, mas tal solicitação só seguiu após o envio de questões do Observador para a Procuradoria-Geral da República e para o Conselho Superior da Magistratura.
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Pelo meio, o Tribunal da Relação de Lisboa continuou a decidir reclamações e recursos da defesa do ex-procurador Orlando Figueira — como aconteceu na passada quinta-feira – manifestamente inúteis, visto que a pena de prisão já tinha transitado em julgado.
Os crimes que levaram a Justiça a condenar Orlando Figueira
O ex-procurador Orlando Figueira tem uma pena de prisão efetiva para cumprir de seis anos e oito meses pelos crimes de corrupção, branqueamento de capitais, violação de segredo de justiça e falsificação de documento decidida em dezembro de 2018 pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa. As diversas instâncias judiciais deram como provado que recebeu mais de 760 mil euros do ex-vice presidente de Angola, Manuel Vicente, em troca de benefícios nos processos que visavam este último no Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP).
Ou seja, a fase de recursos dos autos, a Operação Fizz, duraram cerca de cinco anos — um tempo que supera largamente os 11 meses que durou o julgamento e os cerca de três anos que demorou a investigação.
Enquanto isso, a acusação contra Manuel Vicente, por corrupção ativa, branqueamento de capitais e falsificação de documento foi retirada dos autos da Operação Fizz e enviada para Angola por ordem do Tribunal da Relação de Lisboa, em maio de 2018. Só em janeiro deste ano é que as autoridades angolanas começaram a instrução preparatória contra o ex-presidente da Sonangol.
Recurso no Constitucional foi decidido quatro dias depois após Figueira ter sido libertado
Orlando Figueira esteve preso três dias em fevereiro para começar a cumprir a pena de prisão decretada, mas foi libertado por estar pendente um recurso com efeito suspensivo no Tribunal Constitucional (TC). Na realidade, não era apenas um recurso que estava pendente, mas também uma reclamação. Ambos já foram decididos definitivamente pelo Constitucional em dois acórdãos que podem ser consultados aqui e aqui e transitaram em julgado respetivamente a 9 de maio e a 6 de junho.
A primeira questão prendia-se com a decisão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) não ter aceite a 17 de maio de 2023 um recurso sobre um acórdão da Relação de Lisboa datado de 1 junho de 2022 que rejeitou um conjunto de nulidades alegadas pela defesa de Orlando Figueira. O Constitucional começou por recusar apreciar a questão a 9 de fevereiro deste ano — ou seja, cerca de um ano e meio depois da decisão original da Relação de Lisboa que deu origem aos sucessivos recurso.
Essa rejeição liminar do TC foi proferida apenas quatro dias depois de Orlando Figueira ter sido libertado do Estabelecimento Prisional de Évora — e a sua libertação foi decretada pelo Supremo Tribunal de Justiça precisamente devido a esse recurso que estava pendente.
A defesa de Orlando Figueira, a cargo da advogada Carla Marinho, interpôs uma reclamação para o plenário do TC que foi rejeitada a 24 de abril pelo acórdão do relator Carlos Medeiros Carvalho, tendo tal decisão transitado em julgado no dia 9 de maio deste ano.
Contudo, estava pendente uma reclamação da defesa do ex-procurador do Departamento Central de Investigação e Ação Penal. Aqui, sim, está em causa o acórdão da Relação de Lisboa que confirmou em novembro de 2021 a pena de seis anos e oito meses de prisão efetiva. A defesa apresentou dois requerimentos de nulidades autónomos nas seguintes datas:
- 3 de fevereiro de 2022 — alegou nulidade insanável, violadora das garantias de defesa do arguido, devido a uma alegada proximidade da família da desembargadora Leonor Silveira Botelho que, alegadamente, “branqueou os comportamentos descritos nos autos autos e tidos pelo sr. dr. Proença de Carvalho [advogado que ainda está a ser investigado pelo DCIAP pela sua participação nos factos que envolvem Orlando Figueira] e pelo sr. dr. Carlos Silva [ex-presidente do Banco Atlântico]”. Logo, existia uma violação da composição do tribunal;
- 21 de março de 2022 — alegou uma nova nulidade devido a um alegado impedimento de uma das juízas que fizeram parte do coletivo da 1.ª instância, visto que também tinha participado na fase de inquérito.
Estas nulidades foram decididas pela Relação de Lisboa num acórdão datado de 1 de junho de 2022. Em relação à alegada violação da composição do tribunal arguida a 3 de fevereiro de 2022, aquele tribunal nem sequer se pronunciou sobre o tema por não ter fundamento. Em relação à nulidade arguida a 21 de março de 2022, os desembargadores decidiram que era improcedente.
Operação Fizz. Relação de Lisboa confirma condenação de Orlando Figueira a prisão efetiva
Contudo, o recurso de constitucionalidade só veio a ser apresentado, segundo o texto acórdão do TC que tem o conselheiro Figueiredo Dias como relator, a 31 de maio de 2023 devido a várias incidentes processuais — ou seja, quase um ano depois.
Ou seja, a Relação de Lisboa rejeitou admitir tal recurso de constitucionalidade numa decisão datada de 14 de fevereiro de 2024 por o mesmo não ser legalmente admissível. O que levou a defesa a apresentar uma reclamação no Constitucional que foi rejeitada por um acórdão do conselheiro Figueiredo Dias com data de 23 de maio de 2024 e que transitou em julgado a 6 de junho.
Recurso sobre inconstitucionalidades do acórdão condenatório foi rejeitado em 2022
Curiosamente, e este é um ponto essencial, o próprio conselheiro Figueiredo Dias faz um enquadramento do estados dos autos da Operação Fizz que revela claramente que o recurso interposto por Orlando Figueira sobre a condenação da primeira instância “foi julgado improcedente por acórdão de 24 novembro de 2021” da Relação de Lisboa, “mantendo-se a decisão condenatória”, lê-se no texto do acórdão 398/2024.
E, ainda mais relevante, escreve: “Nessa sequência o arguido interpôs recurso para este Tribunal Constitucional, que foi definitivamente rejeitado por acórdão de 4 de novembro de 2022”.
Significa isto que as alegadas inconstitucionalidades do acórdão condenatório já transitaram em julgado em novembro de 2022.
Contudo, o processo penal permite que a defesa continue a apresentar recursos, reclamações e outros incidentes processuais autónomos — isto é, são processados à parte dos recursos sobre os acórdãos condenatórios — devido a alegadas nulidades. O que faz com que a defesa de Orlando Figueira tenha apresentado sucessivos incidentes e recursos que continuaram a ser processados pelos tribunais superiores.
Pior: não existe nenhum sistema informático que permita aos tribunais das diversas instâncias visualizar os estados dos autos, onde estão os sucessivos recursos e incidentes processuais e o respetivo estado de cada um deles. É tudo feito através de ofícios que são comunicados por email entre os tribunais — e que muitas vezes são respondidos com dias ou semanas de intervalo.
Tribunal da Relação de Lisboa mantém apresentações periódicas quinzenais
Assim, apesar do Tribunal Constitucional ter certificado o trânsito em julgado do primeiro acórdão pendente no dia 9 de maio deste ano — tendo tal facto sido comunicado pelo Supremo Tribunal de Justiça à primeira instância — os tribunais superiores continuaram a decidir sobre outros recursos que a defesa de Orlando Figueira foi apresentando em diversas instâncias.
Por exemplo, a Relação de Lisboa rejeitou na passada quarta-feira um recurso da defesa sobre as medidas de coação aplicadas a Orlando Figueira a 23 de novembro de 2023 — há cerca de 10 meses. As apresentações na secção de processo do Campus da Justiça eram semanais mas, por requerimento da defesa, o juiz titular dos autos no Juízo Central Criminal de Lisboa concordou em alterar a periodicidade para quinzenal.
As nove mentiras de Orlando Figueira — segundo o acórdão da operação Fizz
Como defendia que as apresentações deveriam ser mensais, a advogada Carla Marinho discordou da decisão do juiz e interpôs recurso para a Relação de Lisboa. No mesmo recurso, chegou mesmo a invocar o facto do seu cliente se ter apresentado voluntariamente no dia 2 de fevereiro no Estabelecimento Prisional de Évora para cumprir a pena de prisão — apesar, enfatizava Carla Marinho, dos autos ainda não terem transitado em julgado.
Num acórdão de seis páginas assinado pela relatora Cristina Isabel Henriques, a Relação rejeitou os argumentos e manteve a decisão do juiz de primeira instância.
“O requerimento do arguido para alteração da medida de coação tem por base” dois fundamentos, sendo que um é o de que “não tem meios financeiros para fazer face às despesas inerentes à deslocação ao Campus de Justiça”, lê-se no texto do acórdão a que o Observador teve acesso.
Contudo, “a carência de meios económicos […] apenas justificavam uma alteração do local de apresentação [para um local] mais perto da residência do arguido. Contudo, […] é o arguido que se quer apresentar no Campus de Justiça. Portanto, só ao mesmo é imputado este acrescido custo”, lê-se no texto decisão.
Acresce, diz ainda a desembargadora relatora, que o facto de Orlando Figueira se ter apresentado voluntariamente na prisão a 2 fevereiro de 2024 não poderia ter sido valorado pela primeira instância porque a decisão do juiz titular dos autos é datada de 23 novembro de 2023.
Processo durou mais de 10 anos. Só a fase de recurso demorou cerca de cinco anos
Os autos da Operação Fizz iniciaram-se em julho de 2014 com uma carta anónima entregue no Departamento Central de Investigação e Ação Penal. A missiva visava Orlando Figueira, que estava em licença sem vencimento do Ministério Público para trabalhar como jurista no departamento de compliance do Millennium BCP.
A saída de Figueira do DCIAP, onde tinha liderado vários inquéritos contra várias figuras angolanas, para o Millennium BCP em 2012 já tinha causado polémica. O banco fundado por Jardim Gonçalves tinha a Sonangol como acionista de referência — a petrolífera angolana tinha sido liderada e reformada de alto a baixo por Manuel Vicente entre 1999 e 2012 e o então vice-presidente de Angola continuava a controlar a empresa.
Por outro lado, a carta anónima revelava uma informação relevante e desconhecida até então: Figueira teria sido pago por uma empresa chamada Primagest, que era precisamente detida pela Sonangol, quando anos antes tinha tomado decisões sobre vários processos que envolveram Manuel Vicente. Dois factos que vieram a ser dados como provados e relacionados por todas as instâncias judiciais que apreciaram a prova material do processo — que tem os pagamentos de 760 mil euros feitos a Orlando Figueira como facto principal.
A investigação iniciada julho de 2014 culminou com uma acusação histórica contra Manuel Vicente por alegadamente ter corrompido o então procurador Orlando Figueira. Além dos crimes de corrupção ativa [Manuel Vicente] e de corrupção passiva [Orlando Figueira], o MP imputou ainda crimes de branqueamento de capitais, violação de segredo de justiça e falsificação de documento a Orlando Figueira e de branqueamento e falsificação de documento a Manuel Vicente. A acusação está descrita aqui em pormenor.
Foram ainda acusados de corrupção ativa, branqueamento e de falsificação de documento o advogado Paulo Blanco e Armindo Pires, procurador e amigo de Manuel Vicente.
A investigação demorou dois anos e sete meses, sendo que o julgamento demorou ainda menos tempo: cerca de 11 meses. No final, o tribunal deu como provado o núcleo essencial da acusação das procuradoras Inês Bonina e Patricia Barão e condenou Orlando Figueira uma pena de prisão efetiva de seis anos e oito meses, a proibição de exercício da magistratura durante cinco anos e a declaração de perda em favor do Estado dos mais de 500 mil euros que tinha nas suas contas bancárias em Portugal e em Andorra.
O advogado Paulo Blanco foi condenado a uma pena suspensa única de quatro anos e quatro meses pela co-autoria do crime de corrupção ativa de Orlando Figueira, enquanto que Armindo Pires foi absolvido de todos os crimes.
Começou aí, com a decisão proferida a 7 de dezembro de 2018 o calvário processual destes autos que, só seis anos depois, vão ser concluídos com a execução da prisão de pena efetiva decretada a Orlando Figueira. O corrompido vai cumprir pena de prisão efetiva mas o alegado corruptor beneficia da inação da Justiça da República de Angola que seis anos após o envio dos autos ainda nem sequer julgou o caso.
Texto corrigido às 15h04 do dia 1 de outubro em relação ao tempo que demorou a fase de recursos: cerca de cinco anos e não quase seis anos.