Passaram mais de oito anos e ainda hoje João Pedro Henriques não consegue ouvir a música Stairway to Heaven do Led Zeppelin sem se emocionar. Nessa altura o filho, ainda um adolescente, começara a desenvolver gostos musicais comuns e esta era uma das músicas que ambos escutavam juntos. Mas, numa manhã de janeiro de 2014, acabaria por se sentir “amputado para sempre” quando recebeu um telefonema com as palavras que nunca mais esqueceu, como agora descreve ao Observador. “O Jaime teve um acidente muito grave”, disse-lhe a mãe do filho. Ainda hoje não sabe porque devolveu aquela resposta: “Mas ele está vivo?”. Do outro lado veio a resposta que o faria descambar: “Não”.
João Pedro Henriques, jornalista, hoje com 56 anos, estava a preparar-se para ir trabalhar quando a antiga companheira lhe explicou por telefone, como conseguiu, que o filho de 16 anos morrera colhido por um comboio ao atravessar a linha de Cascais, perto da estação de São João do Estoril, num sítio proibido. Jaime não tinha tido uma aula e decidira ir até à praia com um grupo de amigos. “Avisei a redação de que não ia trabalhar, avisei a minha mulher, a mãe do meu segundo filho Eduardo, que tem agora 20 anos”.
Das memórias que guarda da altura, recorda como o inquérito judicial aberto atrasou o funeral não religioso, e lembra o apoio de amigos e colegas que nesses dias — que pareceram muito mais tempo — o acompanharam. De como deitaram as cinzas de Jaime ao mar, de que ele tanto gostava, na companhia dos amigos mais próximos. Mas um dos momentos mais torturantes foi quando contou ao filho mais novo, Eduardo, que não voltaria a estar com o irmão.
A dor dos pais e dos filhos que vivem
Eduardo teria uns dez anos e João Pedro Henriques e a mulher decidiram pedir a amigos que o fossem buscar ao colégio no dia em que tudo aconteceu. Só no dia seguinte, sentados à mesa do jantar, lhe contaram. “O Jaime morreu e nunca mais o vamos voltar a ver”, disse João Pedro. Eduardo chorou, chorou muito. E esta foi a última vez que o pai o viu chorar. “O Jaime faz muita falta, era o irmão mais velho. O Eduardo é um miúdo muito silencioso, tivemos sempre muitas preocupações com ele. Mas ainda hoje não sei o impacto que isto teve nele. Não houve nenhuma manifestação exterior que interpretássemos como sendo uma consequência do que tinha acontecido”.
O testemunho de João Pedro Henriques, pai, não diverge muito do de outros pais e mães, mais ou menos conhecidos, como é o caso de Cristiano Ronaldo, o futebolista português que esta semana decidiu dar uma entrevista a criticar o clube onde trabalha, o Manchester United, revelando não ter sentido verdadeiro apoio depois de perder um filho — o rapaz de um casal de gémeos.
“Não há comparação na dor que se sente ao perder um filho ou uma filha, é diferente da morte de outro familiar, independentemente da intensidade do amor”, constata o psicólogo Carlos Céu e Silva, presidente da associação Olhar, que colabora com a associação Laços Eternos — uma organização que há anos presta apoio a pais enlutados e promove grupos de autoajuda. “Quando existe uma perda física de um filho, é como se houvesse uma traição à humanidade, como se os pais se sentissem roubados”, afirma o psicólogo.
O período mais difícil da vida de Cristiano e Georgina
A Piers Morgan — que admitiu, ao entrevistar o jogador, ser pai de quatro e não imaginar a tamanha dor que é perder um filho — Ronaldo recuou seis meses na sua vida e chegou ao dia em que regressou a casa com Georgina apenas com um dos gémeos, a Bella, num turbilhão de sentimentos de alegria e tristeza profunda — porque trazia uma bebé, mas não trazia o outro. “Os miúdos começaram a perguntar onde estava o outro bebé”, recordou na entrevista. Mas, naquele momento, o jogador só conseguiu contar ao filho mais velho. “Ele tem 12 anos, já percebe tudo. Conversámos no quarto dele, chorámos os dois, mas foi um pouco confuso para ele”. Aos filhos mais pequenos, de cinco anos, Ronaldo e Georgina só conseguiram falar do que aconteceu dias depois. “Dissemos que o Angel tinha ido para o céu. E agora as crianças dizem: fiz isto para o Angel e apontam para o céu”.
Cristiano Ronaldo, que viria mais tarde a ser criticado por falhar a pré-época, confessa que estes meses foram dos mais difíceis que viveu na vida depois da morte do pai. “A Georgina e eu tivemos um momento muito difícil. Não percebemos porque aconteceu connosco. Foi difícil. Muito muito difícil”. Ronaldo admite, porém, que acabou por aproximar-se mais da companheira e até dos filhos. Tornou-se mais amigo e “mais pai”, contou.
A morte de um filho, alerta Céu e Silva, tem impacto não só nos pais, mas em toda a família. “Com a morte de um filho, o pai e a mãe adotam comportamentos diferentes. Há mesmo quem prefira o silêncio. Quando existem outros filhos há um sofrimento duplicado nos filhos, porque perderam o irmão e parte dos pais — que deixam de ser os mesmos pais. O filho que vive fica num plano secundário, porque os pais não estão disponíveis emocionalmente para fazerem o acompanhamento que faziam. Às vezes há um desligamento da própria vida, mas consegue compreender-se”.
Manuela perdeu a filha de 31 anos — ficou um neto de um ano para cuidar
Manuela Alves, 54 anos, já reformada por causa de uma atrofia multissistémica que lhe foi diagnosticada há cinco anos, perdeu a filha de 31 há pouco mais de um mês. “O que eu sinto é que parte de mim foi com ela, deixou de existir e o que existe é mesmo por necessidade de dar apoio às outras pessoas”, diz ao Observador. Entre as outras pessoas está o neto, de apenas um ano, que ficou sem mãe, a Marta. E a irmã de Marta, que ainda não conseguiu voltar ao trabalho como educadora de infância. “Elas eram muito próximas”, explica Manuela.
A drástica mudança na vida de Manuela começou a desenhar-se há cerca de um ano, estava Marta grávida. “Sentiu um nódulo no peito”, recorda. As médicas que ouviram as suas queixas disseram-lhe que era normal, que seria do leite e das mudanças hormonais que a gravidez comporta. Uma obstetra disse-lhe mesmo que não devia fazer uma ecografia antes dos seis meses do bebé.
Marta teve bebé, mas durante amamentação sentia dores terríveis. E um dia, recorda Manuela, apareceu-lhe em casa desesperada e a chorar pelas dores que sentia ao amamentar o filho. Voltou à médica, ainda ouviu o mesmo diagnóstico, até que acabou mesmo por realizar uma ecografia. “O nódulo estava gigante, era um triplo negativo. Quando foi diagnosticado já estava no estágio IV”.
Foram meses longos e dolorosos. Marta acabou por mudar-se para a casa de Manuela, que cuidou dela e do bebé. Mas o cancro foi tomando conta dos órgãos de Marta e ela foi definhando. “O tumor tinha um índice de proliferação celular de mais de 80%. Tinha metástases no fígado. Ela fez quimioterapia, imunoterapia, mas o tumor era completamente dependente da quimio. Na semana de intervalo ele piorava sempre”.
Em agosto, Marta chegou mesmo a ser internada, com falência hepática e sem prognóstico de melhoria. Voltaria a casa em setembro “para morrer”. E nesse período, sem qualquer explicação, melhorou. “Teve uma qualidade de vida que nunca tinha tido no último ano. Decorou a casa, super feliz, super bem disposta, preparou a festa de aniversário do filho que seria dali a um mês”. Deixou tudo organizado. Até que sentiu febre, falta de ar e acabou novamente internada: o cancro tinha chegado aos pulmões.
“Há cinco anos tinham-me dito que hoje eu estaria numa cadeira de rodas. Não estou, mas perdi a minha filha”, chora Manuela. “É um vazio que fica. Não sei se é dor, é mais desespero, falta-me um bocado. “Devia ser proibido os pais passarem por isto, não devia ser permitido uma coisa destas, não é a lei natural da vida”.
Alteração à lei reconhece o luto parental e o difícil regresso ao trabalho
Em janeiro uma alteração ao Código do Trabalho veio dar aos pais 20 dias de faltas justificadas depois da morte de um filho. As várias iniciativas legislativas que pediam esta mudança referiam isso mesmo. “A perda de um filho é ‘um evento contra natura’ e constitui ‘a perda mais dolorosa que qualquer ser humano pode vivenciar e para a qual ninguém está, nem nunca vai estar, preparado’”, lia-se, alertando mesmo para o elevado risco para a saúde física e mental dos pais “que esta perda comporta”, lembrando que o processo de luto se desenvolve em várias etapas e que muitas das vezes implica “isolamento e desinteresse social”.
Cristiano Ronaldo, na entrevista que decidiu dar e que tem tido impacto mundial, também o revela. Ele que é visto como o melhor jogador do mundo, imbatível, com milhões de seguidores no mundo inteiro, é também um ser humano. E sentiu que ao falhar profissionalmente, ninguém pensou nisso. “Como sabes o futebol continuou, muitas competições, o futebol não para”, disse. “As pessoas esquecem-se de que sou um ser humano. Falei com os diretores e com o presidente do clube e eles não acreditaram que algo que se passava. Isso fez-me sentir mal. Nunca vou trocar a saúde da minha família pelo futebol. Duvidaram da minha palavra. Não fui para a pré-temporada por causa disso, por não ter sido autorizado a ficar com a minha família. Não era justo deixá-los. Por isso não fui.”
O equilíbrio entre a exposição pública da família Ronaldo e o recato da dor também é difícil. Ronaldo habituou os seus fãs a mostrar o seu lado íntimo e o seu seio familiar e esse reconhecimento público alimenta também os negócios que ele e Georgina mantêm, que é necessário não deixar quebrar. Adorado pelos fãs, quando se soube que o filho gémeo não sobrevivera ao parto e que Ronaldo falharia o jogo pelo Manchester United contra o Liverpool, foram mesmo dedicados alguns minutos em homenagem ao jogador. “Apesar do Manchester United e do Liverpool terem a maior rivalidade do futebol inglês, há um profundo respeito entre os dois clubes e que será vincado pelos aplausos, ação inicialmente sugerida pelos adeptos do Liverpool”, leu-se no comunicado.
A massive round of applause in the 7th minute at Anfield for @Cristiano, followed by the singing of You’ll Never Walk Alone. pic.twitter.com/byIY8UyPQf
— This Is Anfield (@thisisanfield) April 19, 2022
João Pedro Henriques recorda-se que a morte do seu filho foi noticiada num jornal diário e que ele próprio foi identificado. No dia seguinte tinha dezenas de pedidos de amizade de pessoas que não conhecia de lado nenhum. “Percebi que havia ali um lado de curiosidade mórbida, de espreitar a dor alheia pelo buraco da fechadura. Quase pornografia emocional. Deixei toda essa gente entrar no meu Facebook. Mas nunca ali escrevi uma linha que fosse sobre a morte do Jaime. Aos poucos toda aquela gente foi indo embora. Afinal não havia nada para ver”, diz.
Judite Sousa, jornalista com maior visibilidade mediática, teve uma postura diferente. A morte do filho, cerca de meio ano depois da de Jaime, abriu o telejornal que ela própria apresentava, justificando-se assim a sua ausência. E Judite Sousa partilhou publicamente várias vezes a sua dor — não há só uma forma de lidar com um acontecimento destes, nem uma certa e outra errada. Nessa altura João Pedro Henriques ainda se voluntariou para falar com ela, ele que tinha vivido o mesmo que ela estava a viver. “Não se concretizou. Sinceramente, não sei se esse meu voluntarismo lhe foi comunicado. Não me parece que seja de uma grande ajuda viver estas tragédias procurando o amor das massas anónimas — expresso em likes nas redes sociais, por exemplo”, diz.
O jornalista esteve 15 dias sem trabalhar, até que percebeu que lhe faria bem voltar à redação e à vida. Ainda se lembra daquela primeira reunião para definir os trabalhos do dia. Tinham passado poucos dias da tragédia do Meco, quando seis alunos da Lusófona tinham morrido afogados na sequência de uma praxe. Havia, pelo menos, 12 pais a sentirem o mesmo que ele. “Era o típico assunto que não me dava jeito nenhum, mas ajudava-me a voltar à vida como ela é. Não viver numa bolha”, diz agora João Pedro Henriques. Os colegas aperceberam-se disso e pediram-lhe desculpa. Mas ele fez-se de forte. “Nós queríamos parecer fortes e era um componente importante do ser forte”, diz. É importante acordar e olhar para essa imagem ao espelho para prosseguir, diz.
O filho foi assassinado. Filomena não sabe a que se agarrar depois do processo judicial
Filomena Mota, 62 anos, demorou oito meses até conseguir voltar ao trabalho, na área patrimonial e financeira, na Faculdade de Farmácia de Lisboa, e perceber que esse regresso era positivo para a sua recuperação. Em março de 2020 o país estava a encerrar, com a pandemia de Covid-19 a obrigar a confinamento e a recolher obrigatório, quando o seu filho desapareceu misteriosamente da casa onde ambos viviam em São Marcos, Sintra. David Mota, um rapper de 28 anos, o mais novo de três filhos, foi levado durante a noite aparentemente por dois homens armados, como viria a contar uma testemunha que se tornou arguida no processo.
Não havia uma única pista sobre o que lhe tinha acontecido. David apresentava-se sempre nos seus videoclipes com ouro e até dinheiro e havia até quem o cobiçasse nas redes sociais. Mas ele era um rapaz tranquilo, que gostava de viver a vida, sem problemas de dinheiro e mesmo de droga conhecidos. Não havia pistas para a investigação. Filomena publicitou um número de telemóvel para poder receber informações de quem tivesse visto algo e leu e ouviu de tudo: pistas falsas e até pedidos de resgate. Ainda assim nunca desvalorizou nada e tentou sempre encontrar o filho.
“Perdi o medo seja do que for, até mesmo de morrer. Não me lembro de pandemia, não me lembro de ter de ficar confinada, andei sempre em grupos à procura do David. Nem nos lembrávamos da Covid. Andei por todo o lado, chegámos a ir a um sítio ao pé do Cristo Rei, um porto antigo todo degradado. Eu era a primeira a avançar com a luz do telemóvel, fiz feridas nas pernas por causa das folhas, bolhas nos pés, andava ali feita zombie. Só queria encontrá-lo. Quando não o procurava estava no quarto dele a rezar”, recorda Filomena, que diz ser capaz de passar horas a falar do David. Talvez para o manter vivo.
O mistério da morte de David Mota Jr, o rapper português que cantava em crioulo
Filomena sabia que o filho tinha sido vítima de um crime, mas acalentava a esperança de o encontrar com vida. Até que em maio de 2020 a PJ lhe telefonou a perguntar qual era o dentista de David. “Tive um baque”. Precisavam fazer uma comparação para perceber se um corpo que encontraram em elevado estado de decomposição era o dele. A informação confirmou-se dias depois, quando a PJ a chamou a ela e aos outros dois filhos, Pedro e Sara, à sede da Judiciária. E confirmaram a violência que tinha sido exercida sobre o filho.
Causa da morte condiciona a dor da perda?
Perda gestacional, acidente, doença, crime. Nos grupos de autoajuda em que participa Carlos Céu e Silva é normal que os pais se agarrem aos motivos da morte para superar a sua dor. Mas será que há formas diferentes de sentir a perda condicionadas pelos tipo da morte? “Cada um sente a sua forma como mais dolorosa e única, mas sinto que na morte por suicídio ou por acidente, em que o corpo não aparece, esses lutos são de dores ainda maiores. No suicídio não se percebe porque os filhos fizeram isso, e os pais questionam tudo o que fizeram. Quando um corpo desaparece, os pais estão sempre na esperança, não fazem o luto, mas é uma esperança sem uma luz ao fundo do túnel”, diz.
Perda gestacional. “Não é um feto nem uma coisa. É um filho”
Por outro lado, a eventual culpa que os pais possam sentir pela morte dos filhos também agrava a dor da perda, que passa a ser encarada como uma “punição”. “Os pais assumem uma responsabilidade ética e de direito sobre os filhos e esquecem-se que eles agem de acordo com a sua autonomia. Não é por dar uma mota, proporcionar umas férias aos filhos que tal aconteceu. Isso devia ser visto como um gesto de amor e esperança porque achamos que vai ser positivo. A culpa entra não para apaziguar a dor, mas para agravar”, constata Céu e Silva.
“Após a morte é preciso racionalizar as emoções, aprender a sentir o filho de forma diferente, através da distância. Pegar nas memórias boas dos filhos é que vai atenuar o luto, não é por um filho morrer que ele deixa de existir na vida dos pais”, aconselha. “Quando os pais perdem um filho têm receio de os esquecer, isso nunca acontece. Nunca vai esquecer a voz, o cheiro, os passos do filho. Os filhos estão sempre com os pais, e acabam por estar dentro deles quando morrem. Os pais nunca abandonam os filhos”.
João Pedro Henriques tem perfeita noção de que a morte de um filho é “uma devastação que nunca se supera”. “Vivo-a com uma espécie de amputação, um pedaço de nós que perdemos e que sabemos que nunca voltará. Um buraco na existência. Não se supera – mas sobrevive-se”, afirma. E a falta de culpa, o facto de ter sido o seu filho a cometer aquele erro de atravessar a linha de comboio num local proibido, apazigua-o. “No meu caso, ajudou o facto de a morte do Jaime ter ocorrido sem que tivéssemos (os pais) qualquer culpa. A ausência de sentimentos de culpa é importante e pode fazer a diferença”.
Terapia, amigos ou o silêncio… Como fazer o luto?
Oito anos depois, o jornalista diz que nunca recorreu a terapia para ultrapassar esta dor, que nunca passará, e voltar a viver. Rodeou-se de amigos mais próximos, uma delas era psiquiatra e fazia-lhe as perguntas certas. Entre os amigos, com que à noite saía para um copo e vários dedos de conversa, estavam dois amigos que também tinham perdido filhos, embora em situações acidentais. “Estávamos horas a conversar, mas nunca sobre essa nossa história comum. Ela funcionava como uma espécie de elo comum invisível que nos unia numa certeza: estávamos vivos, tínhamos sobrevivido e a morte não nos vai vencer”.
Filomena ainda frequentou ao longo de um mês os grupos de auto-ajuda para ouvir e partilhar histórias e dores de outros pais. “Os pais choram, riem, ficam chocados, dos conselhos, tornam-se solidários”, explica Céu e Silva. Aqui os pais aprendem a “tapar esse buraco” no coração. “Quando temos um membro amputado, temos a memória do membro fantasma. É o mesmo com o filho, ele deixa de existir, mas aquele buraco pode ser arranjado, florido, dependendo da forma como encarar a morte do filho”. A mãe de David, Filomena, desistiu de ir. Sentiu a certa altura que ouvir a dor dos outros estava a fazer-lhe mal.
Espera agora que o filho mais velho, o Pedro, que acabou por voltar a viver com ela para a ajudar no luto, regresse à sua casa e não se preocupe tanto com ela. Continua a ser acompanhada por um psicólogo e preocupa-a o fim do processo judicial. Há já três arguidos condenados a uma pena de 23 anos de cadeia pela morte de David. Corre agora um segundo julgamento por homicídio contra uma arguida que tinha sido apenas condenada por roubo. “Chorei porque a justiça não aplicou a pena máxima, mas fui a todas as sessões de julgamento, porque isso também me mantém viva”.
Passaram mais de dois anos desde que David esteve pela última vez em casa, mas o quarto está como o deixou (embora sem alguns bens que os suspeitos da sua morte roubaram). “Costumo ir para lá ver filmes. Faz-me bem estar com as coisas dele. Parece que ele está mais próximo”.
“O quarto do filho representa o corpo do filho. Naquele quarto estão as roupas, o computador, os seus objetos pessoais. “Mais do que a cama e a secretária é a questão física do filho, por isso é muito difícil para um pai e uma mãe substituírem o quarto. Os pais resistem o máximo de tempo em tocar nos armários, nas gavetas, nas roupas e em tudo o que têm, têm a ideia que não mexendo no quarto não estão a trair o filho. Quando conseguem, ganham uma certa autonomia emocional”, constata o psicólogo, que aponta que em grande parte dos casos este espaço acaba a ser usado pelos irmãos como um espaço lúdico.
Ronaldo também falou disso, do local onde guardou as cinzas do filho bebé, ao lado das do pai, numa capela na cave da casa, e onde disse ir todos os dias, para falar come eles, buscar paz de espírito. E de como os filhos quando fazem coisas dizem muitas vezes ser para Angel, o irm~ºao que não conheceram. Manuela tem sido o apoio da outra filha. É uma mulher forte que antes da morte da filha dava apoio a uma colega de trabalho que tinha perdido um filho e que nunca mais conseguira voltar ao trabalho.
“A maior parte dos pais que perdem filhos sobrevivem a isso”, arrisca João Pedro Henriques. Sobrevive-se sim, mas sem felicidade. “A felicidade fica-me vedada mas nada me impede de continuar a procurar a alegria e é o que faço”. Filomena, que não conhece ou falou com o jornalista João Pedro Henriques, partilha do mesmo sentimento. “A felicidade é a única coisa que conseguimos dar aos outros sem a ter”.
João Pedro, Manuela e Filomena partilham, além da dor da perda de um filho, o medo do que possa acontecer aos filhos que têm vivos. Tornaram-se mais protetores, mais preocupados. Mas o vazio deixado continua sempre lá, como um buraco no coração que não sara. O mesmo parece ter acontecido a Ronaldo.