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Pais abraçam-se enquanto observam balões com o nome dos filhos a voar
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Pais abraçam-se enquanto observam balões com o nome dos filhos a voar

Pais abraçam-se enquanto observam balões com o nome dos filhos a voar

Perda gestacional. "Não é um feto nem uma coisa. É um filho"

Miguel. Tomás. Mariana. Francisco. Camila. Sara. São apenas alguns dos nomes de bebés que morreram cedo demais. Para os pais, esta é uma dor sem prazo para acabar e ainda desvalorizada pela sociedade.

Joana Neto e o marido tentaram ter filhos durante 10 anos através de tratamentos de fertilização in vitro, sem sucesso. A boa notícia chegou finalmente no dia 30 de julho de 2021, quando os dois seguiam de carro para uma festa. Joana recebeu uma chamada da clínica de fertilidade e pediu logo ao marido: “Encosta, encosta que é da clínica! Devem ter novidades.” E tinham: “Do outro lado do telefone a enfermeira diz-me que é um ‘sim’. Estava grávida.”

Nem queria acreditar que tinha finalmente conseguido o que tentou ao longo de mais de uma década. Apesar de manter a saúde e a gravidez controladas por causa dos tratamentos de fertilidade, preferiu fazer um teste genético adicional oito semanas depois, para ter a certeza de que estava tudo bem com o bebé. E estava. Nesse dia, Joana não só acreditou que tudo iria correr bem como também ficou a saber que ia ter uma menina. “Lembro-me como se fosse hoje. Eu estava a passar a ferro e disse ao pai da minha filha que, agora que já sabíamos que era uma menina, podíamos escolher o nome. Ele perguntou se eu gostava de Mafalda. Não fazia parte dos nomes que tínhamos na lista, mas adorei. E decidimos nesse momento que a nossa filha ia chamar-se Mafalda”, lembra.

“Lembro-me de estar a preparar o meu corpo para a morte da minha filha. Eu sabia que ela ia morrer assim que nascesse”.
Joana Neto

Joana começou a preparar tudo para receber a bebé, e rendeu-se a um mundo cor-de-rosa. Pintou o quarto, pendurou os cortinados, encomendou a cama, comprou roupa, mochilas e até a cadeira da papa. Estava tudo pronto para a chegada de Mafalda. Os dias eram passados a conversar com a filha, sobre como a vida iria ser quando estivesse nos seus braços. “Passei a gravidez a falar com ela, a dizer que a amava. ‘Filhota, tu nem sabes a quantidade de beijos que a mãe te vai dar quando saíres cá para fora’, dizia eu. Estava sempre a falar com ela.” Até à noite em que tudo mudou.

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Acordou com a sensação de que alguma coisa estava errada e levantou-se. Quando percebeu que estava a perder sangue, pediu ao marido para ligar de imediato para o INEM e foi levada para o hospital. Uma hora depois, o médico entrou no quarto com a pior notícia. Joana estava com uma septicemia, e a infeção era tão agressiva que o parto da bebé teria de ser provocado para salvar a vida da mãe. Caso contrário, morreriam as duas. Joana não tinha outra opção. Às 20 semanas, a bebé ainda não tinha condições para conseguir sobreviver. Nesse momento, o mundo de Joana desabou. “Lembro-me de estar a preparar o meu corpo para a morte da minha filha. Eu sabia que ela ia morrer assim que nascesse”, recorda.

Nesse instante, esta mãe teve de escolher se queria ou não ter a filha no colo para se despedir. Por opção, preferiu não ter. Viu a bebé ser levada embrulhada num lençol nos braços de uma enfermeira. Foi a primeira e última vez que Joana teve contacto com Mafalda. “Eu quero acreditar que não a quis ver por egoísmo. É o que eu sinto do fundo do meu coração, porque eu não ia ser capaz de a devolver. Se a agarrasse nos meus braços não ia querer largá-la.”

20% das gravidezes são mal sucedidas. Associação lamenta falta de acompanhamento psicológico no SNS

A perda gestacional afeta pelo menos uma em cada cinco mulheres em Portugal, de acordo com o mais recente relatório da Sociedade Portuguesa de Ginecologia e Obstetrícia. Estima-se que morram cerca de 30 mil bebés em Portugal, todos os anos, durante a gravidez. A grande maioria dos casos acontece nos primeiros três meses de gestação (a probabilidade de aborto vai diminuindo até às 40 semanas).

Todos os meses, dezenas de pais que procuram formas de atenuar a dor reúnem-se para partilhar a sua experiência no grupo de apoio Pais Coragem. Aqui, além de profissionais especializados na recuperação da perda gestacional, encontram outras mães e pais que passaram pelo mesmo. O Observador foi a um jardim do Parque das Nações, em Lisboa, acompanhar um dos encontros mensais do grupo Pais Coragem, que desta vez serviu também para assinalar o Dia Internacional da Consciencialização e Sensibilização para a Perda, a 15 de outubro.

Este grupo de apoio, criado durante a pandemia por Leonor Gonçalves, enfermeira em diagnóstico pré-natal e terapeuta de luto, recebeu em apenas dois anos mais de 100 pais e mães que procuram respostas que expliquem a razão de terem passado por momentos tão difíceis. Querem encontrar compreensão para o que estão a sentir, fugindo à pressão da sociedade que tenta obrigá-los a atirar o assunto para trás das costas e lhes exige que reajam com rapidez, como se o luto tivesse um prazo. “Não há prazo para o luto”, assegura Leonor Gonçalves, que realça a importância de enfrentar as emoções depois da perda de um filho, para que se possa fazer o luto de uma forma equilibrada. “Se, pelo contrário, os pais entrarem em negação, poderão mais tarde enfrentar complicações a nível de saúde mental, como depressão e ansiedade”, alerta.

Ouça aqui o episódio de “A História do Dia” sobre a perda gestacional

Como se recupera da perda de um filho?

No grupo Pais Coragem, encontram-se profissionais da área da saúde mental que orientam estes pais ao longo de todo o processo de luto. “Numa primeira fase, mães e pais estão invadidos por um turbilhão de emoções e alguma impulsividade. O importante é que ao longo do tempo se ganhe autoconhecimento para ir organizando essas emoções em etapas, para se aprender a lidar e a controlar a dor”, explica. Estes homens e mulheres são pais que sentem que a sociedade olha para estas situações como um percalço, um acidente, e não como a perda de alguém que amam. Sentem-se incompreendidos e frustrados com os habituais comentários que defendem que estes bebés ainda nem sequer eram nada, ainda nem tinham nascido. Mas, para os pais, estes bebés eram filhos desde o primeiro minuto.

A terapeuta Leonor Gonçalves aponta também para a falta de apoio psicológico prestado pelo Serviço Nacional de Saúde no período pós-perda: “Chegam-nos relatos de pais que se sentiram completamente desamparados. Sabemos que há mães que estão a perder filhos na mesma sala onde estão outras a dar à luz os seus bebés saudáveis. Isto causa-lhes uma grande frustração num momento de perda. Além disso, após a alta hospitalar, as unidades de saúde não investem neste processo. Infelizmente a saúde mental ainda é muito desvalorizada.”

Atualmente, em Portugal, as mães que perdem bebés durante a gestação têm direito a “licença por interrupção da gravidez” com duração que varia entre os 14 e os 30 dias (art. 38º do Código do Trabalho), desde que sofram complicações físicas no momento da perda. Os danos psicológicos não estão, portanto, incluídos no acesso a esta licença. Os pais também ficam de fora.

No entanto, esta semana, o luto referente à perda gestacional foi tema entre os partidos políticos, com várias propostas de lei em cima da mesa. O PS propôs uma alteração ao Código do Trabalho, que prevê a possibilidade de faltas até três dias consecutivos, sem perda salarial. Este direito é independente dos danos físicos na mãe e tem em conta o impacto emocional. O PAN vai mais longe e pede a aprovação de 20 dias de luto. Estas propostas só deverão ser votadas na especialidade depois da votação final global do Orçamento do Estado, marcada para o dia 25 de novembro.

PS propõe três dias de faltas justificadas sem perda salarial para mãe e pai em caso de perda gestacional

Leonor Gonçalves é a primeira a chegar ao mais recente encontro mensal dos Pais Coragem. A terapeuta apressa-se a ultimar os preparativos para receber estes pais: traz  sacos cheios de mantas, outros com comida, e um especial que contém balões brancos, ainda por encher. Monta uma mesa na relva e cobre-a com uma toalha branca de linho. Em cima da mesa vão ficar um par de sapatinhos de bebé, bonecos, frascos para fazer bolinhas de sabão, uma jarra com três dezenas de gerberas brancas e uma vela. Para Leonor Gonçalves, é fundamental que este dia seja assinalado de forma especial, para que a sociedade reconheça finalmente o luto por estes bebés que morreram em fase precoce.

  • DIANA ROSA/OBSERVADOR
  • Pais Coragem preparam uma mesa com objetos de bebé em homenagem aos filhos que morreram
    DIANA ROSA/OBSERVADOR

Inês Alfaiate é uma das 40 mães esperadas neste encontro. Chega com o marido, Bruno, e juntam-se aos outros pais que também procuram conforto neste grupo de apoio psicológico. Estendem as mantas na relva em círculo, sentam-se e aguardam pelo discurso de abertura da reunião. As primeiras palavras de Susana Vidigal, psicopedagoga e terapeuta, são de agradecimento àqueles pais, por terem a coragem de partilhar as suas histórias. “Quero que saibam que também eu sou uma mãe coragem, também perdi um filho às 24 semanas”, confessa. Depois deste testemunho, outros pais e mães falam à vez sobre os filhos que perderam e a forma como têm convivido com este processo de luto.

Bruno e Inês perderam Mateus às 26 semanas de gravidez. Foram mais de seis meses de expectativa e também a terceira vez que este casal chorou a morte de um filho. “Ficámos de rastos”, lembra Bruno. O casal reside em Évora, mas tinha sido aconselhado, no hospital local, a dirigir-se à Maternidade Alfredo da Costa para que a gestação de Inês fosse acompanhada. Já em Lisboa, foram atendidos por Álvaro Cohen, o médico obstetra que diagnosticou uma malformação no bebé. A única opção seria interromper a gravidez. “Apesar da tristeza, sabemos que fizemos tudo o que pudemos. Mas não há limites para este sofrimento”.

A desvalorização da perda gestacional

É difícil encontrar as palavras certas para dizer a estes pais num momento de perda. Inês ainda recorda as piores coisas que ouviu depois da morte do filho: “Lembro-me de dizerem que o meu bebé ainda não era nada”. Inês quer alertar para aquilo que nunca se deve dizer nestes casos: “Nunca digam que foi melhor assim, que é preferível do que vir com problemas, ou que não tinha de ser. Não, não foi melhor assim. Porque é um sonho. Não é um feto nem uma coisa. É um filho, o nosso filho, independentemente das semanas que tenha.”

Inês acredita que este é um escudo que a sociedade utiliza para tentar confortar estes pais de alguma forma e procurar afastá-los da dor. Mas adverte que a melhor solução continua a ser um gesto em vez de palavras: “Abracem-nos simplesmente. Digam que estão aqui para o que for preciso, mas não falem do que não sabem. É melhor assim.”

Em círculo, os pais estendem mantas na relva antes de começar a reunião

No dia em que perdeu a filha, aos cinco meses de gestação, Joana Neto voltou para casa sozinha. O quarto que estava pronto para receber Mafalda foi fechado à chave e a porta só voltou a abrir-se três meses depois. Esta mãe lembra emocionada o desespero de rever os objetos da filha que tinha perdido: “Caí no chão, chorei e gritei. A minha vida estava toda naquele quarto.” O luto afastou-a do marido, que preferiu nunca marcar presença nos encontros do grupo Pais Coragem. Pouco a pouco, o casal deixou de dialogar e de partilhar o que sentia. Meses depois, divorciaram-se.

Inês e Bruno também viveram uma crise no casamento após a morte do filho. Bruno lembra que, por ser homem, não queria mostrar vulnerabilidade. A prioridade foi apoiar a mulher mas acabou por se sentir sozinho e com a sensação de que não lhe era permitido sofrer. “Eu sou homem, tenho de estar aqui para a minha mulher, mas depois quem me dá apoio a mim? Não foi fácil, senti-me sem rede.”

Luto pode levar à rutura conjugal

Leonor Gonçalves explica que é habitual que os relacionamentos desmoronem depois da perda de um filho. Entre as razões habituais está a dificuldade em atribuir à figura paterna o mesmo direito a viver o luto. Esta diferença de tratamento da dor do pai e da mãe cria afastamento entre os dois e leva muitos casais à separação. Aos homens, diz Leonor, não é permitido chorar: “É importante desmistificar esta ideia preconcebida de que o homem sofre menos. Embora o processo de recuperação física esteja atribuído à mulher, o choque psicológico diz respeito aos dois, de igual forma. Se foi um projeto em conjunto, é importante que se reconheça que o pai também tem direito a sentir. Quando isto não acontece, o casal acaba por se desconectar. Nesse caso, o papel do grupo de apoio é fundamental na disponibilização de ferramentas que lhes permitam restabelecer o diálogo.”

Foi perto da rutura que Inês e Bruno encontraram esta terapeuta. Conheceram Leonor na Maternidade Alfredo da Costa e aceitaram fazer parte do grupo de apoio Pais Coragem. A partir daí, a relação entre os dois melhorou e iniciaram um processo equilibrado de luto. Meses depois, conseguiram finalmente ter uma gravidez de sucesso, da qual nasceu Valentim, que tem agora seis meses. Inês e Bruno dizem que têm quatro filhos, apesar de apenas um deles estar vivo. “Quando me perguntam quantos filhos tenho, respondo que tenho quatro. Sim, quatro. Três morreram”, diz Inês, que garante que todos os dias pensa nos filhos que perdeu.

Os pais escrevem em cada balão o nome dos filhos que perderam. Depois soltam-nos, num minuto de silêncio

Quase um ano depois, Joana continua a conversar com a filha que perdeu: “Todos os dias falo com a Mafalda. Digo-lhe sempre bom dia, boa noite, beijo-a e peço-lhe que me ajude”. Tentou ser mãe novamente. Chegou a conseguir engravidar, mas voltou a perder o bebé. Sem o grupo Pais Coragem, Joana não tem dúvidas de que seria muito difícil ultrapassar esta dor: “Hoje estou na parte de baixo da montanha russa, amanhã estarei na parte de cima. E é assim a minha vida. Mas tenho este grupo que é colo, é amor, e aqui falamos de igual para igual. Ajuda-me muito.”

No final do encontro no jardim, há um momento especialmente dedicado à memória dos bebés que partiram. Os cerca de 40 pais dirigem-se à mesa preparada pela terapeuta Leonor Gonçalves. Pegam em canetas azuis e, nos balões brancos levados para o encontro, escrevem os nomes dos filhos que perderam. Depois, junto ao rio, num minuto de silêncio, soltam-nos e deixam-nos voar.

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