Os peritos já estão a planear o desconfinamento total de Portugal para depois do inverno. Desde a semana passada, aos primeiros sinais de que o pico da quinta vaga estaria iminente, os cientistas começaram a conferenciar entre si para monitorizar ao detalhe a situação epidemiológica em Portugal; e assim estudar em que condições o país pode avançar para um alívio generalizado comparável ao da Dinamarca.
A própria Direção-Geral da Saúde (DGS) está a debater o assunto internamente, apurou ainda o Observador, embora não tenha delineado ainda os critérios necessários para o país repetir a estratégia de outros países da Europa, nem estimado quando é que tal poderá acontecer. Uma coisa é certa: está para “muito breve”, provavelmente dentro dos próximos 30 dias, até porque alguns peritos consideram que Portugal está a perder uma oportunidade de liderar uma “mudança de paradigma”. As propostas devem estar prontas para apresentar à classe política na próxima semana.
Na mente de alguns peritos está o abandono da estratégia de testagem massiva, a mesma que já permitiu realizar uma média semanal de 30 testes diários por cada mil pessoas no fim do mês passado. A ideia é mimetizar a vigilância do vírus da gripe e entrar num sistema de sentinela — através não só de médicos de saúde geral e familiar e redes hospitalares, tal como na gripe, como também através de análises regulares às águas residuais para deteção de agentes patogénicos (neste caso, o SARS-CoV-2); e da implementação de escolas-sentinela, para o reconhecimento precoce de eventuais surtos de Covid-19.
Com as análises de águas residuais, os cientistas pretendem calcular a incidência da doença tendo em conta a quantidade de partículas virais nas amostras — algo que, de resto, já está a ser estudado desde outubro de 2020 no projeto “Vírus4Health” da Águas do Porto, ACES Porto Oriental, ACES Porto Ocidental e o Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP). Quanto à vigilância das escolas, polos habituais de surtos, a lógica será a mesma que a da gripe: a percentagem de casos detetados num número significativo de amostras será proporcional à realidade da sociedade.
As atuais regras de contenção, que implicam a recomendação do teletrabalho, um limite de lotação nos estabelecimentos comerciais e a exigência de certificado em restaurantes, por exemplo estarão em vigor pelo menos até à próxima semana, mas o alívio generalizado vai ter de esperar por dois momentos-chave: o atingir dos picos relativos aos internamentos nas alas Covid-19 e aos óbitos atribuídos à Covid-19, que acontecem sempre duas a três semanas após o pico dos diagnósticos de casos positivos (que aconteceu nos últimos dias de janeiro); e o fim do inverno e entrada na primavera, quando o risco de contrair doenças infecciosas decresce. Só então o levantamento generalizado das regras pode acontecer em segurança — e só se nenhuma outra variante de risco vier trocar as contas aos especialistas.
Até lá, o país aliviará progressivamente as medidas. Em vez de obrigações, as medidas impostas contra a Covid-19 serão baseadas em recomendações e na perceção individual do risco: recomenda-se a testagem antes de ajuntamentos, mas será obrigatório em cada vez menos situações (nas discotecas, deve manter-se, mas o certificado poderá ser dispensado em restaurantes); recomenda-se o distanciamento físico e o uso de máscara quando se está em multidões, mas não se obrigará ninguém a seguir essas normas.
As propostas devem ser apresentadas ao Governo na próxima semana e a política de recomendações, substituindo a das obrigações, ficará em linha com aquilo que já está a acontecer na Dinamarca. Mas os especialistas querem também sugerir uma abordagem europeia — não apenas a nível nacional —, para que toda a União tenha um sistema de vigilância uniformizado.
Mesmo com o fim transversal das regras contra a Covid-19, uma das medidas que os especialistas pretendem manter por perto, para ser utilizada em circunstâncias excecionais, é o uso generalizado de máscaras de proteção individual. O abandono das regras de contenção tal como as temos hoje, ou mesmo a eventual passagem da pandemia para uma endemia, não significa o fim das máscaras: os peritos querem a medida seja recuperada sempre que a incidência de doenças respiratórias — não só a Covid-19, mas também a gripe ou qualquer outra — simbolize um descontrolo na saúde pública. Por isso, pelo menos durante o inverno ou quando a incidência subir a níveis preocupantes (que níveis são esses, ainda se está a debater), elas podem continuar a ser uma realidade que veio para ficar.
O que se faz nos outros países? O exemplo da Dinamarca, Noruega e França
Na Dinamarca, a incidência na última semana foi 1,5 vezes superior à de Portugal e a taxa de vacinação, embora sendo uma das maiores da União Europeia, continua quase dez pontos percentuais abaixo da portuguesa. O número de casos positivos detetados em cada 100 testes revela que as autoridades de saúde dinamarquesas têm menos capacidade de controlar o vírus do que Portugal, a variante altamente transmissível Ómicron está ainda mais disseminada do que por cá e os últimos cálculos colocam o R(t) num patamar superior ao de Portugal.
Mesmo assim, a Dinamarca tomou um passo que, em Portugal, só deve ser tomado no fim do mês: levantou todas as medidas para a contenção da pandemia, porque “o coronavírus simplesmente vai ser parte da sociedade” e “podemos finalmente seguir em frente”.
Apesar de a situação dinamarquesa ser comparável à de Portugal, por lá o número de internamentos, incluindo nas unidades de cuidados intensivos (UCI), e de óbitos é inferior ao registado pela DGS — embora os dados portugueses tenham limitações, uma vez que, tal como o Observador noticiou na semana passada, as autoridades sanitárias contabilizam como internamento Covid-19 qualquer caso positivo que necessite de hospitalização, mesmo que o motivo seja outra doença. As máscaras deixaram de ser obrigatórias, o certificado digital já não é exigido em nenhum estabelecimento e mesmo quem testa positivo à infeção por SARS-CoV-2 já não precisa de isolamento.
Soren Brostrom, diretor-geral da saúde da Dinamarca, assume que a desconexão entre o número elevado de casos e os internamentos por Covid-19 é o motivo pelo qual o país avançou para o desconfinamento total. “As infeções estão a disparar, mas os doentes internados em cuidados intensivos estão realmente a diminuir. Temos cerca de 30 pessoas em camas de UCI com diagnóstico de Covid-19, de uma população de seis milhões”, relativizou o especialista.
Magnus Heunicke, ministro da Saúde da Dinamarca, admite que todo o alívio pode voltar atrás: afinal, “ninguém poderá saber o que vai acontecer no próximo dezembro”. “Mas prometemos aos cidadãos da Dinamarca que só teremos restrições se forem realmente necessárias e que as suspenderemos assim que pudermos. Isto é o que está a acontecer agora”, justificou o governante. Todas as regras foram dispensadas mesmo sem qualquer obrigatoriedade da toma da vacina — algo que acontece, na prática, noutros países, mas não na Dinamarca e que também não está em cima da mesa em Portugal. “Felizmente, não precisamos disso na Dinamarca. Estou muito feliz por não precisarmos, porque é um caminho muito problemático seguir dessa maneira”, continuou Magnus Heunicke em entrevista à CNN.
A Noruega, que está com uma incidência inferior à portuguesa, vai entrar no mesmo esquema a partir de segunda-feira, agora que estão “bem protegidos com as vacinas”: “Isto quer dizer que podemos relaxar em muitas medidas, mesmo que o número de novos casos aumente rapidamente”. Os restaurantes não terão limitações horárias para servir bebidas alcoólicas, o teletrabalho deixará de ser obrigatório e o limite de dez visitantes em casa também será levantado — tudo regras que já não estão em vigor em Portugal. Mas a utilização da máscara continuará obrigatória em locais onde não seja possível manter o distanciamento social, algo que ainda existe por cá também.
Desde esta quarta-feira que em França, um país cuja situação epidemiológica é muito semelhante à portuguesa, as máscaras não são obrigatórias ao ar livre e o teletrabalho passou a ser apenas recomendado. Os estádios, cinemas, teatros e outros espaços culturais deixarão de ter capacidade máxima; e os bares e discotecas abrirão portas a 16 de fevereiro, mas todos estes espaços continuam a exigir certificado digital de vacinação. Na Áustria, a 5 de fevereiro, as lojas e restaurantes vão poder voltar a funcionar até à meia-noite e a quarentena mesmo para não-vacinados vai ser levantada, mas a obrigatoriedade da toma da vacina vai ser implementada já esta quinta-feira.