A história da Terra, desde a formação do planeta até aos dias de hoje, escrita de uma perspetiva ambiental. É esse o objetivo de The Earth Transformed – an Untold History” (“A Terra Transformada – uma História Não Contada”), o último livro de Peter Frankopan.
Apesar de citar investigadores que alegam que já entrámos num período de extinção em massa, o historiador e autor britânico de 52 anos recua ao passado para encontrar eras históricas em que os humanos se depararam com contextos ambientais adversos.
Dos episódios bíblicos à perseguição dos judeus, da escravatura transatlântica ao declínio de civilizações antigas, juntando a evolução da Humanidade aos fenómenos ambientais e climáticos, numa relação que sempre causou impactos e transformações recíprocas num ténue equilíbrio que podia ter desabado no período da Guerra Fria, o diretor do Centro para a Investigação Bizantina da Universidade de Oxford acredita que os tempos atuais são mais preocupantes.
No dia em que sobe ao palco como orador da conferência We Choose Earth Tour’23, organizada pela EDP em Madrid, autor de vários livros traduzidos e vendidos pelo mundo inteiro (nomeadamente As Novas Rotas da Seda, que esteve vários meses no top dos mais vendidos no Reino Unido) responde ao Observador sobre como podemos encontrar no passado respostas para as maiores desafios de hoje.
No seu novo livro, The Earth Transformed – an untold history, diz que muitos investigadores defendem que talvez já tenhamos estejamos período de extinção em massa devido às alterações climáticas. Devemos entrar em pânico?
A principal preocupação é a perda de biodiversidade. Os ecossistemas são complicados, precisam de todos os elementos para funcionar. Se polinizadores, como abelhas e outros insetos, sofrem razias bruscas ou morrem completamente, isso afeta as plantas que deles dependem — o que, por sua vez, afeta outras plantas, os animais, os solos que dependem dos nutrientes e assim por diante. Portanto, pode haver efeitos em cascata. Da mesma forma, a dispersão de nova flora e fauna para partes do mundo onde não são nativas pode impactar e afetar os equilíbrios existentes. Estes processos nem sempre são negativos, mas muitas vezes são – e podem ser devastadores. De momento, estão a perder-se espécies mais rapidamente do que em qualquer outra das extinções em massa anteriores, a mais famosa delas causada por um asteróide que provocou o fim dos dinossauros. Isso é seguramente bastante alarmante.
Os seus livros anteriores eram mais centrados em eventos históricos como a Primeira Cruzada e processos como a ascensão e a queda de grandes impérios, principalmente focados na intervenção humana. Agora incidiu em como a natureza e o clima moldaram a História. Porquê?
Bem, este livro também é sobre História – desde a criação da Terra até aos dias atuais. Suponho que por as mudanças climáticas e as grandes transformações atuais do mundo se assumirem como preocupações tão urgentes, é inevitável que muitos leitores se concentrem nos dias de hoje. Mas o meu foco neste livro é perceber como todos os impérios incidiram sobre a expansão ecológica e o aproveitamento de recursos naturais. Escrevo ainda sobre como diferentes religiões têm contextos e mensagens ambientais na sua essência. Na prática, ainda estou a trabalhar como historiador. É claro, para mim, que o clima e a transformação do mundo natural são dos principais temas e desafios do nosso século – talvez até o maior problema do nosso tempo. Assim, parece-me normal pensar em como chegámos ao ponto de nos questionarmos com tanta preocupação sobre o presente e o futuro. Na minha opinião, as respostas surgem sempre com o passado.
Começa a sua obra com uma narrativa religiosa, o Jardim do Éden. Porquê?
Existem três boas razões. Em primeiro lugar, é uma história com a qual a maioria das pessoas está familiarizada. Segundo, diz respeito diretamente à história da criação da Terra, central para as crenças e contextos culturais da maioria das pessoas, hoje e no passado – porque é uma história comum aos judeus, cristãos e muçulmanos. Finalmente, porque é uma das histórias mais antigas escritas – e com uma com mensagem ambiental explícita. No Paraíso, tudo estava em harmonia. Fora dele, depois da desobediência de Adão e Eva, a vida era ecologicamente precária, com secas e cheias, solos inférteis que exigiam muito trabalho, ervas daninhas e cardos que dificultavam a vida. Parece-me importante que três das grandes religiões do mundo se debrucem sobre esta história e a liguem às origens da nossa espécie.
Algo também evidente no episódio bíblico do Dilúvio?
O Dilúvio aparece não apenas no Antigo Testamento, mas em muitas fontes da Mesopotâmia e do Egito – e, novamente, também na Torá e no Alcorão. A conclusão desta história é que ela relaciona o mau tempo com a moralidade. Uma grande inundação é enviada para destruir os humanos devido ao seu mau comportamento, egoísmo e desobediência. Procura vincular as boas condições climáticas às escolhas feitas pelas pessoas. Houve histórias semelhantes noutras partes do mundo, como no sul da Ásia ou na cultura chinesa, onde o “mandato do céu” era uma forma fundamental de os governantes reivindicarem legitimidade: condições benignas eram dadas àqueles que as mereciam, enquanto as más ficavam para aqueles que deveriam ser castigados.
Já referiu numa entrevista que os movimentos ambientais modernos, como o Fridays for Future, também podem ter semelhanças com movimentos religiosos. Como?
Bem, as previsões apocalípticas de uma catástrofe iminente parecem-me semelhantes. Assim é também o evangelismo daqueles que procuram espalhar a sua mensagem. E mesmo a maneira como os apaixonados estão dispostos a serem presos me parecem bastante semelhantes às narrativas de martírio, embora não envolvam a morte. Muitos dos envolvidos em tais movimentos são inspirados pela convicção, coragem e pela missão de salvarem um mundo que caminha cegamente para o desastre. Admiro muitos desses ativistas, assim como respeito e admiro aqueles com fortes crenças religiosas.
Não é a primeira vez na história que as civilizações se preocupam com fortes mudanças no clima? Encontrou exemplos anteriores? E como é que as civilizações antigas enfrentaram os riscos
Muitas vezes, não conseguiram fazê-lo. É por isso que precisamos de pensar mais amplamente sobre a História. Existe mais mundo fora da Europa. Mas por nos concentrarmos apenas no nosso próprio continente e somente nos últimos séculos da História, esquecemo-nos de procurar uma perspectiva cronológica ou geográfica mais ampla do passado e, consequentemente, do presente. As grandes cidades do passado – como Uruk, Nínive ou Merv – praticamente desapareceram não apenas da História, mas também da face da Terra. Civilizações antigas falharam por muitas razões diferentes, mas nenhuma falhou devido a eventos climáticos ou mudanças climáticas. Falharam porque não se conseguiram adaptar ou lidar com circunstâncias desafiantes. Quase sempre, incluíam fatores ambientais, entre os quais a sustentabilidade, a escassez de recursos naturais ou ameaças e riscos que se revelaram esmagadores.
É surpreendente que uma parte do seu livro seja dedicada ao tráfico transatlântico de escravos, um acontecimento histórico muito significativo para os portugueses. De que forma Portugal – ao deportar milhões de africanos para o Novo Mundo – teve impacto na transformação da Terra?
Havia um propósito em acorrentar milhões de pessoas e escravizar os seus descendentes. Nós, simplesmente, não pensamos nisso dessa maneira. Mas tudo isso ocorreu porque os colonos europeus, inclusive os portugueses, queriam a mão de obra mais barata possível. E o propósito desse trabalho era transformar a Natureza. Vidas africanas foram dadas para transformar ilhas das Caraíbas e terras na América do Norte e do Sul, para criar plantações que produziam açúcar, tabaco, algodão e outras culturas pouco adequadas aos solos europeus. Isso originou enormes lucros, é claro, e também sofrimento e dor indescritíveis. Mas também levou a uma redistribuição global de colheitas – sobretudo das Américas para a Europa, África e Ásia, como batatas, malaguetas, ananás, borracha, etc, e, portanto, enormes alterações nos ecossistemas.
Existe uma discussão muito grande em Portugal – tal como no Reino Unido, calculo – sobre a forma como o país, como ex-potência colonial e responsável pela deportação em massa de milhões de indivíduos, deve olhar para o passado. Com culpa ou resignação? Qual é a sua opinião?
Com culpa e remorsos, é claro. Mas também com compreensão. Muitas das glórias de Portugal não teriam sido possíveis sem a exploração de outros humanos. Não vejo razão para alguém achar isso difícil de aceitar ou entender. Só precisamos de ser honestos sobre isso.
Relaciona os problemas climáticos e consequentes quebras nas colheitas agrícolas à perseguição aos judeus, por exemplo. Qual é a ligação?
Esta é uma investigação feita por colegas que analisaram as mudanças nas épocas de plantações e a sua ligação a padrões climatéricos e a perseguições de minorias. Sabemos bem que, quando as condições económicas se deterioram, as minorias tendem a ser vistas como culpadas, porque muitas vezes têm uma aparência diferentes, usam outras roupas e falam outra língua, rezam de forma diferente e têm hábitos distintos. Por isso, são frequentemente acusados de serem responsáveis pelas dificuldades de outras pessoas. Uma pequena queda nas temperaturas na Europa em mil cidades entre 1100-1800 sugere uma ligação direta aos ataques aos judeus. O motivo é que um clima desfavorável resulta em safras menores e produtos mais caros. Essa combinação pode ser mortal.
Acredita portanto que os atuais movimentos de refugiados de África, Médio Oriente e Ásia Central para a Europa ou da América Central para os EUA também estão ligados à transformação do clima?
Precisamos de ser um pouco mais cuidadosos e não pensar em todos os refugiados como iguais. Cada um de nós nesta Terra tem suas próprias histórias, e é desumano colocar a todos o mesmo rótulo. Devemos lembrar-nos que 80% dos refugiados ficam em países vizinhos ou na mesma região do país de origem. Não vão todos para a Europa e para os EUA. Porque falamos sempre de refugiados de África, do Médio Oriente e da Ásia Central, e não sobre a Ucrânia? De qualquer forma, a grande maioria das pessoas que sofre não tem simplesmente capacidade para sair e está a tentar desesperadamente sobreviver em condições terríveis. Existem mais de vinte milhões de pessoas a enfrentar atualmente fome severa e subnutrição na África Oriental. Gastamos pouco tempo a pensar neles ou a tentar ajudá-las. Talvez devêssemos fazê-lo.
Costuma destacar a década de 1980, período da sua infância e adolescência, como especialmente relevante para a forma como sentimos a ameaça de catástrofes naturais e humanas. Porquê essa década?
Chernobyl, a catástrofe de Bhopal [Índia], chuva ácida, a camada de ozono, poluição crónica, uma fome catastrófica na Etiópia, a ameaça de uma guerra entre os EUA e a União Soviética que resultaria num inverno nuclear. A minha geração cresceu profundamente preocupada com o meio ambiente. Acreditávamos que vivíamos num mundo perigoso e onde a cooperação era a única forma de construir uma paz duradoura. Isso parece muito diferente do que se passa hoje.
Acredita que o período que estamos a viver, com a guerra na Ucrânia, na Síria, movimentos maciços de refugiados e novamente a ameaça de uma guerra nuclear, é melhor do que o período da Guerra Fria?
É uma boa pergunta e sobre a qual penso muito. E pode juntar aí China e Taiwan. As oportunidades, mas também os desafios das novas tecnologias. Pandemias e doenças infecciosas emergentes. Fragilidades das cadeias de abastecimento e da economia global. A privação de direitos e a falta de oportunidades para os jovens. O comportamento dos políticos nas grandes democracias. É uma lista bastante longa. E temo que fique maior – especialmente por causa das mudanças climáticas e fatores ambientais. Vejam as temperaturas, a seca e os problemas que trouxe a Portugal nos últimos 18 meses. Acho que entendemos os problemas da Guerra Fria. Mas a complexidade dos dias atuais é mais profunda e, portanto, mais preocupante.
Os negacionistas foram o primeiro obstáculo que a ciência enfrentou em relação ao aquecimento global. Agora, são poucos. Então, porque está a demorar tanto tempo a implementação de medidas eficazes para diminuir as emissões globais de carbono?
É uma pergunta para os políticos. Medidas eficazes requerem visão, ambição e coragem. Não faço ideia do motivo de estes três ingredientes serem escassos na política. Vejo-os todos os dias em quase todas as outras esferas da vida – das salas de aula aos hospitais, daqueles que cuidam dos outros aos que lutam para pagar as suas contas. Merecemos melhor.
A geração mais jovem é normalmente considerada muito mais informada e preparada para lidar com os riscos ambientais. Mas, como referiu numa entrevista ao Channel 4, mais de 50% da população britânica com menos de 45 anos não é particularmente adepta da democracia liberal. Como é que esses dois factos se podem combinar ou colidir num futuro próximo? Quero dizer, ser um ativista ambiental e um não-democrata ao mesmo tempo… isso pode dar certo?
Não é que os jovens não sejam adeptos da democracia. A questão é que eles sentem-se dececionados. O facto de 50% do carbono queimado pelos humanos ter ocorrido nos últimos trinta anos é um dos motivos. Mas também a falta de perspectivas de emprego, o custo da habitação, o comportamento de elites de todos os tipos – não apenas políticas, mas também outras. A riqueza obscena que pode ser gerada por alguns indivíduos, às vezes pagando poucos ou nenhuns impostos, enquanto tantos passam fome. E basta olhar para os EUA, a maior democracia do mundo: os candidatos a Presidente, assim como muitas outras figuras importantes, têm mais de 80 anos. Ou o primeiro-ministro Modi, na Índia, que concentrou os poderes em seu redor. São exemplos que não transmitem ilusão nem esperança. Acho que essas coisas podem e vão-se reconciliar. Mas levará tempo. E talvez seja preciso uma crise para que haja reformas e novas ideias floresçam. É assim que giram as rodas da história. Basta olhar para Portugal, em meados dos anos 1970, ou para a Espanha no início dos anos 1980. O problema é que a crise também pode fornecer uma plataforma para aqueles que são implacáveis tomarem o poder. Rússia, Irão, China…
O que podemos fazer, como cidadãos comuns, para travar esse processo que pode levar a uma extinção em massa?
Acho que precisamos de outra entrevista para responder a essa questão.