A dada altura, um “silêncio constrangedor”. “O.K., então mas como fazemos?”. Na habitual reunião que juntou esta terça-feira, na sede do Infarmed, a elite política, os parceiros sociais, os representantes do Conselho Nacional de Educação e as equipas de epidemiologistas da DGS, do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge e da Escola Nacional de Saúde Pública, os peritos tinham acabado de apresentar os mais diversos cenários sobre em que estado ficaria a curva se as restrições começassem a ser levantadas, isto é, como ficariam previsivelmente os números de infetados se as escolas começassem a reabrir. Problema um: os números variavam bastante. Problema dois: a estratégia de Portugal nunca foi a da imunidade coletiva, pelo que a percentagem de imunidade entre os portugueses ao novo coronavírus está na ordem dos 0,8 a 1%, muito baixa se comparada com a de Espanha, que, mesmo assim, também é preocupante: apenas 15%. Então, sem vacina pelo menos até ao verão do próximo ano, nem tratamentos anti-virais infalíveis, como é que se levantam as restrições? Corremos o risco de ter uma segunda vaga de contágio? Provavelmente sim.
Foi aí, no meio da troca de impressões sobre o próximo passo a dar, que se instalou um silêncio momentâneo na sala. Tinham chegado a um beco sem saída. Então, como fazemos? Ficamos em casa durante quanto tempo mais? Nem a economia nem a saúde mental da população aguentam tanto tempo de confinamento. A decisão, todos concordam, é “a decisão mais difícil que teremos de tomar“, e está nas mãos de António Costa. A equipa de especialistas de saúde não facilitou a vida ao primeiro-ministro e, apesar de ter lançado vários dados e cenários para cima da mesa, não escolheu aquele que possa ser considerado o mais adequado.
Para quebrar o silêncio, a resposta imediata dos epidemiologistas foi de que Portugal está “uns dias, semanas” atrás de vários países nesta corrida em contrarrelógio, pelo que poderá avaliar como vai correr o levantamento gradual das restrições em países como a Dinamarca, a Áustria ou até Itália, para seguir os mesmos passos, ou dar outros passos diferentes. A sala respirou — momentaneamente — de alívio. Não há respostas concretas, mas há uma janela temporal a funcionar como balão de oxigénio.
Uma luz ao fundo do túnel: o pico já foi e cenários como o de Espanha e de Itália já estão descartados
Mas comecemos pelo lado bom. Ao que o Observador apurou junto de várias fontes políticas, partidárias e parceiros sociais presentes na reunião, uma avaliação fria dos números portugueses dá razões para respirar de alívio. Por três razões: primeiro, com a taxa de crescimento de novos casos a rondar os 6% esta terça-feira, e os 4% de ontem, a tendência é positiva; depois, os especialistas concordaram que “o pico pode já ter sido atingido na última semana de março”, embora só se consiga concluir isso ao fim de mais algumas semanas; e, depois, mostraram-se confiantes de que, devido às medidas de contenção tomadas, “não iremos chegar aos níveis de Espanha e Itália”. Ou seja, o pico, pode já ter sido, e pode ter sido mesmo na forma de planalto — menos acentuado e mais distendido no tempo. Ou, como disse Marcelo Rebelo de Sousa no final da reunião, a evolução da curva está a ser “lenta mas positiva”.
É a tal “luz ao fundo do túnel” de que António Costa fala, que já parece começar a ver-se, mas ainda sem certezas. “Ao que tudo indica, já estamos numa fase descendente do número de infetados que podem infetar outras pessoas”, disse ao Observador um dos parceiros sociais que assistiu à reunião mas não quis ser identificado. Este cenário indica que “o mal que possa vir já foi feito”. Resta apenas esperar pelo amainar da curva, respeitando as restrições. Mas isto, claro, vale apenas se as restrições se mantiverem — e se os portugueses continuarem em casa.
Em todo o caso, é cedo para concluir que a curva está mesmo em sentido descendente. É preciso mais dias, alertaram os especialistas. É que não basta estabilizar, tem mesmo de descer. “Os dados não são conclusivos o suficiente [para saber se já passámos o pico de contágio em março ou não]. Pelo menos não são conclusivos o suficiente para começar a abrir as medidas de restrição. E as empresas estão a ver as semanas a passar, as receitas a cair. Sentem que não dá para dar mais tempo”, disse ainda ao Observador o responsável da CAP, Luís Mira, que se mostrou preocupado por ainda não haver luz verde dos técnicos para o Governo pôr a economia a funcionar.
Os especialistas, sendo técnicos, são os primeiros a descartar-se de decisões políticas. “Os técnicos não respondem claro… aliás, eles nunca respondem claro. São muito técnicos”, notou Luís Mira. Preocupam-se sobretudo em medir o risco de qualquer alteração. E desta vez deixaram um aviso: só quando houver uma redução sustentada da curva de tal forma que ela fique reduzida a casos esporádicos é que se conseguirá perceber que o pior já passou e que o nível de risco é controlado. Caso contrário, poderá haver um descontrolo. “Se neste momento abríssemos as escolas, os números cresciam”, afirma um líder partidário ao Observador, referindo-se aos gráficos que foram mostrados pelo conjunto de especialistas que orientou a reunião.
Do lado dos parceiros sociais, a maior preocupação residiu em saber quando é que as empresas encerradas vão poder começar a abrir portas, ou quando é que os consumidores poderão começar a movimentar-se com mais liberdade. Nesse ponto, a conclusão geral da reunião foi clara, e semelhante à conclusão em relação às escolas: “é preciso mais algum tempo” para responder à derradeira questão sobre a reabertura de portas. “Qualquer abertura neste momento, seja de escolas seja de lojas, pode fazer disparar o número de mortes. Foram estes os cenários mostrados pelos técnicos. Ou seja, os números não estão ainda suficientemente baixos para que seja seguro afrouxar as medidas de restrição”, salientou uma fonte do lado dos parceiros sociais que pediu para não ser identificada.
Luís Mira, secretário-geral da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP), reteve a mesma conclusão. “Se abrirmos as restrições agora o número de mortes dá um pulo. E significativo”, relatou ao Observador.
Abril, portanto, está fora de questão, tal como revelou o Presidente da República à saída: até ao final deste mês as escolas não podem abrir. “A sensação com que fiquei foi de que antes de maio não haverá condições para fazer nada disso. Porque quanto mais se abrir, mais mortes haverá, seja em que cenário for”, notou Luís Mira. Resta saber se em maio haverá possibilidade de retirar pressão da mola. Há quem duvide. “Ficou explícito e consensual que as escolas não podem abrir para já, mas a sensação com que fiquei foi de que talvez nem em maio seja possível…”, notou um outro líder partidário ao Observador. Ninguém se compromete.
Objetivo: início de maio. Abertura será “gradual e assimétrica”
Foi o próprio primeiro-ministro, segundo apurou o Observador junto de fontes presentes na reunião, que sublinhou que a data de 4 de maio, que tem usado regularmente para apontar ao cenário mais otimista de reabertura de algumas escolas, é apenas indicativa. “Só usei o 4 de maio como data de referência”, terá admitido António Costa, que esta quarta-feira vai ouvir os partidos com assento parlamentar para decidir formalmente como vai ser o arranque do terceiro período do ano letivo. Um “pró-forma”, notam já alguns partidos, na medida em que a decisão parece tomada: tudo fechado para já. Haverá uma reunião com os especialistas de Saúde no próximo dia 15 de abril, e outra no fim do mês, onde, a cada momento e perante os números, se fará nova avaliação.
A questão que mais preocupou o primeiro-ministro e o Presidente da República nas intervenções que fizeram foi a possibilidade de haver uma segunda vaga de contágios caso sejam levantadas as restrições. “Eles estão preocupados”, notou uma fonte partidária ouvida pelo Observador. Preocupados, por um lado, “com a depressão generalizada que vai havendo nas pessoas devido à paralisia”, e, por outro, com a ameaça de estragar o trabalho feito se a descompressão for feita cedo demais. Marcelo Rebelo de Sousa foi o primeiro a dizer que não faz sentido andar com as medidas “para trás e para a frente” — mais vale manter a mola apertada durante “mais um mês ou um mês e meio” e depois ir descomprimindo de forma faseada.
Portugal com evolução “lenta mas positiva” no combate à Covid-19. Marcelo pede mais um esforço
A única certeza com que as várias fontes ouvidas pelo Observador ficaram no final desta reunião foi de que o regresso à normalidade será feito de forma “gradual e assimétrica”. Ou seja, em função das faixas etárias, dos grupos de risco, e das regiões do país. “Há zonas do país onde o risco de contágio é menor, mas também são as zonas que têm menor impacto para a economia”, disse um líder partidário ao Observador, referindo-se sobretudo às ilhas e ao Alentejo, que têm tido a situação mais controlada. “Também há grupos etários que têm uma probabilidade menor de ficar doentes mesmo que contraiam o vírus”. Portanto, o regresso à normalidade será sempre por fases, e não será igual para todo o país.
Idades dos pais e idades dos professores também contam
A exposição dos técnicos incluiu diferentes cenários sobre o impacto da abertura imediata das escolas, creches e infantários. Mas sem conclusões óbvias nem datas à vista.
Segundo conta Luís Mira ao Observador, foram apresentados dados relativos a dois grupos de alunos: crianças até aos 12 anos e jovens dos 16 aos 19 anos. Segundo o responsável da CAP, os resultados (mesmo com cálculos prudentes) são elucidativos. “Uma decisão de abrir as aulas ao primeiro grupo (até aos 12 anos) engloba uma população de 1.221 milhões de pessoas (entre crianças e pais). Ora os pais destas crianças têm, em média, entre os 25 e os 49 anos. Este grupo etário dos pais tem uma taxa de letalidade de 0,19%. A decisão de abrir as aulas aos jovens entre os 16 e os 19 envolve uma população de 250 mil pessoas, com pais – em média – entre os 45 e os 56 anos. Neste grupo, a taxa de letalidade duplica, para os 0,38%”. É preciso ter tudo em conta.
Houve ainda outro dado que uma outra fonte partidária ouvida pelo Observador reteve: “Há 240 mil pessoas que têm simultaneamente pessoas com mais de 65 anos e pessoas com menos de 18 anos em casa”, sendo que nos outros casos, ou têm apenas idosos em casa, ou apenas jovens, não em simultâneo.
Outra questão, também a ter em conta, é a da idade dos professores. Até ao primeiro ciclo escolar há uma percentagem de professores com mais de 50 anos (idade a partir da qual o risco relacionado com a Covid-19 aumenta bastante) de 38%. No segundo ciclo, esta percentagem sobe para 52% dos professores.
Foi nesse sentido que Marcelo Rebelo de Sousa questionou os especialistas, defendendo que a decisão de reabrir escolas até aos 12 anos, por exemplo, não pode ser tomada de ânimo leve por tudo o que isso implica. “Quem pensa que as crianças até aos 12 anos vão voltar para a escola e vão limitar-se a fazer o percurso casa – escola com o mínimo de risco, desengane-se. Porque há sempre um pai que tem de levar a criança à escola e há um irmão mais velho que questiona porque é que o mais novo pode ir para a escola e ele não”, terá alertado o Presidente da República, pedindo que todos os fatores sejam tidos em conta na equação.
“Os especialistas colocaram vários cenários teóricos em cima da mesa mas não apontaram preferência por nenhum”, completou ainda ao Observador outra fonte partidária. Ou seja, os peritos não arriscaram aconselhar António Costa a abrir primeiro o ensino secundário, ou a abrir primeiro as creches ou o ensino básico. Os dados estão lançados, agora é pesar os prós e contras.
Imunidade coletiva entre 0,8 a 1%. Risco de segunda vaga é elevado
É que há dois critérios para voltar à “normalidade”: o estado da curva e o nível de imunidade coletiva. E é neste último que está o problema maior. “Não podemos ter o melhor dos dois mundos”, notou uma fonte partidária ao Observador, referindo-se ao facto de não podermos achatar a curva ao máximo através de medidas de contenção e, ao mesmo tempo, querer que os níveis de imunidade entre a população sejam elevados. Não são. Segundo os dados dos técnicos, são muito baixos: entre 0,8 e 1%. Espanha tem a taxa de imunidade mais alta e é de 15%. Em Itália é de 10%. Números muito baixos fazem aumentar os receios de haver uma nova vaga de contágios quando as pessoas saírem à rua.
Essa foi uma das dúvidas que surgiu no decorrer da reunião: qual seria o nível de imunização necessária entre a população para resistir a uma segunda vaga de contágios por Covid-19. “Sem vacina, é preciso uma imunização entre os 60 e os 70%. Os técnicos mostraram uma comparação internacional, em que Espanha é o caso em que há maiores taxas de imunização”, contou um dos representantes dos parceiros sociais presente no encontro.
Ao que o Observador apurou, os especialistas deram conta de que Portugal vai agora começar a apostar nos testes serológicos de imunidade, para usar esses dados na hora de decidir o levantamento das restrições. Mas o risco de uma segunda vaga de infetados é real: o ideal é que não ocorra nos grupos de risco nem na população mais vulnerável.
Testes, lares, máscaras. As respostas evasivas dos técnicos
Estamos, isso é seguro, a entrar numa nova fase, notaram várias fontes ouvidas pelo Observador. É preciso tomar decisões difíceis: qual é o risco que estamos dispostos a correr para abrir a economia? Se relaxarmos aqui ou ali alguém vai ficar doente, que de outra forma não ficaria. Foi esta a sensação com que todos ficaram no final da reunião: os técnicos da DGS não tomaram uma decisão, não concluíram nada, apesar de todos os cenários que apresentaram, pelo que a batata quente ficou nas mãos do Governo, que terá de avaliar o grau do risco.
“O que eu perguntei foi: ‘Os senhores dizem que para se abrir as medidas de restrição é preciso que as delegações regionais de saúde estejam bem preparadas para fazer as seguintes tarefas: detetar, rastrear e isolar casos de contágio. Senão aquilo espalha-se como fogo. Então, em que ponto está esse trabalho de preparar as direções regionais?'”, revelou ao Observador o responsável da confederação dos agricultores, adiantando que a resposta dos técnicos foi ambígua: “Estamos melhor do que estávamos. Estamos a ganhar capacidade”.
A falta de dados concretos até levou um dos deputados presentes a fazer uma pergunta deste género: “Mas estamos a falar de quê exatamente?”. Ao que os técnicos continuaram sem responder de forma clara. As questões sobre os testes (“testar, testar, testar”) e dos lares, que são o atual principal foco do problema, como é o caso do lar de Aveiro que está há 15 dias à espera de testes, também foram respondidas de forma pouco clara. “Disseram que se deve priorizar os testes nos lares, mas só isso”, afirmou um líder partidário ao Observador, notando que as respostas dos peritos foram sempre “evasivas”.
E quem são os técnicos que costumam estar na sala a apresentar os dados e a responder aos partidos e aos parceiros sociais? Três especialistas de Lisboa e um do Porto, que participa por videoconferência. Os especialistas de Lisboa são Rita Sá Machado, Chefe de Divisão de Epidemiologia e Estatística da Direção-Geral de Saúde; Baltazar Nunes, responsável pela Unidade de Investigação Epidemiológica no Departamento de Epidemiologia do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge e Manuel do Carmo Gomes, professor de Epidemiologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. O especialista do Porto é Henrique de Barros, professor Catedrático de Epidemiologia do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto. Por vezes, também o presidente do Infarmed [Rui Ivo] responde a algumas perguntas.
Muitas teorias, poucas certezas, logo, poucas conclusões. A bola está na mão do Governo, que, para já, deverá manter tudo fechado em abril. Em maio, logo se vê. Do lado dos técnicos, apertar medidas não é preciso. Apenas manter. Até quando?