É o caso mais recente, mas não é inédito. Na semana passada, uma bebé de dois anos acabou por morrer depois de ter sido deixada esquecida dentro de um carro, em Lisboa. A mãe, convencida de que a tinha deixado na creche, só se apercebeu cerca de 7 horas depois. De imediato, uns apressaram-se a apontar o dedo à progenitora, acusando-a de irresponsabilidade e de negligência; outros defenderam que o que aconteceu pode ter sido fruto de um esquecimento involuntário ou motivado por uma agenda caótica — o que levou à partilha de várias histórias nas redes sociais com a hashtag #podiatersidoeu ou simplesmente #podiasereu.
O movimento “Podia Ter Sido Eu” começou pela autora de um blogue sobre maternidade, Susana Almeida, que partilhou um texto nas redes sociais no qual se solidarizava com o sucedido: “Quando li a notícia daquela mãe, que, numa hora negra, se esqueceu da filha dentro do carro, o meu primeiro pensamento foi ‘Podia ter sido eu'”. Com mais de 20 mil gostos e cerca de cinco mil partilhas no Instagram, o post tornou-se viral e deu aso a que várias mães também partilhassem as suas próprias histórias em que tudo podia ter corrido mal.
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Sónia Morais Santos, autora do blogue Cocó na Fralda, é um desses exemplos. Ao Observador diz que “nem tem dormido bem à noite desde que isso aconteceu”, assinalando que “cada vez que acontece este tipo de coisas” não se consegue não se colocar “do outro lado”, do lado da mãe. “A sociedade põe um grande peso nas mães. E ninguém podia dizer que isso não lhe podia ter acontecido a mim ou a si”.
Neste caso, a mãe terá deixado a bebé às 9h da manhã dentro do carro estacionado na Avenida de Miguel Bombarda, em Lisboa, depois de ter levado os dois filhos mais velhos — de sete e cinco anos — à escola. Não se tendo dado conta de que se tinha esquecido da filha, voltou para casa e começou a trabalhar. Durante a tarde, pediu à empregada doméstica que fosse buscar os filhos à escola e à creche, mas a criança de dois anos nunca lá tinha chegado. Só aí os pais perceberam o que tinha acontecido. Acorreram ao carro, mas já era tarde.
O Ministério Público abriu um inquérito para investigar o caso. Em cima da mesa, poderá estar a possibilidade de homicídio negligente ou abandono agravado, comprovando-se o esquecimento, muitas vezes provocado pelo cansaço, pelo stress e por uma espécie de “piloto automático” que entra em ação. Casos como este, porém, acabam por ser suspensos ou terminam sem penas efetivas, por se considerar que os pais já foram sujeitos à condenação mais pesada com a perda de um filho.
E as consequências afetam não só o pai ou a mãe, mas toda a família. Como é que se ultrapassa o sentimento de culpa? E como se pode perdoar o outro?
Criança de dois anos morre depois de alegadamente ficar esquecida dentro do carro
Como é possível uma mãe esquecer-se do filho?
Para João Veloso, psicólogo do Observatório do Trauma da Universidade de Coimbra, uma das justificações para o caso da semana passada pode até estar na pandemia e em mais de um ano “de stress individual e coletivo”. “Esta mãe, como outras pessoas, está a vivenciar muitas coisas a acontecer ao mesmo tempo. Isso faz com que nos desgastemos e entremos em estado de stress, em que é mais fácil desligar e distrairmo-nos”, explica o especialista.
No momento em que a mãe saiu do carro, pode ter mesmo havido, segundo o psicólogo, um “processo dissociativo anormal”, em que “a cabeça está ausente e há uma maior distração”. Neste tipo de episódios, há uma construção de uma “narrativa”, que elabora “todo o processo” que deveria acontecer, mas que, na verdade, nunca ocorreu. “As pessoas não se lembram do que deixaram de fazer”, salienta João Veloso, que acrescenta que situações destas ocorrem “em função de cansaço e do stress”.
Para José Carlos Garrucho, psicólogo de família, “um acontecimento desta ordem” é uma “crise inesperada” e que “e que resulta da existência naquela mulher de uma dimensão de stress quase completo”. Alguém que se “consegue abstrair, sair do carro e deixa uma criança significa que vive sob um stress extremo” que a faz apenas ter “consciência dos compromissos e das tarefas” e esquecer-se de outras coisas.
A psicóloga e investigadora do Instituto de Apoio à Criança (IAC) Fernanda Salvaterra aponta no mesmo sentido: a mãe poderia estar sob um “elevado nível de stress” — e até mesmo em exaustão emocional — e, mais uma vez, a pandemia pode não ser alheia ao que aconteceu, pelas alterações que provocou nas famílias. A partir de um estudo que desenvolveu no IAC sobre os efeitos da pandemia a nível familiar, a especialista explica que em “20% dos pais havia mais ansiedade, mais depressão e stress”, sendo que nas mães os níveis de stress eram mais elevados — rondavam os 30%.
Fernanda Salvaterra aponta que as “mulheres que são mães têm sempre uma dupla jornada de trabalho, para além do emprego — do trabalho formal — têm de cuidar das tarefas da casa. É um grande peso e esses fatores são uma enorme carga, quer física quer psicológica”. Neste caso, ainda havia uma maior “exigência”, uma vez que havia “três crianças pequenas”. Tudo isto pode “provocar ansiedade” e criar quadros de “exaustão emocional”, sinaliza.
A psicóloga Bárbara Ramos Dias diz mesmo que os “pais estão exaustos e desesperados”. “Tenho vários a ligarem-me e a pedirem-me ajuda”, conta, destacando que está a acontecer tudo “ao mesmo tempo: foi a escola, foi o teletrabalho, foi cuidar das crianças em casa”. Muitos progenitores entraram, por isso, em “burnout parental”. A psicóloga considera que, no caso da gestora de 40 anos, poderá ter acontecido que a mãe se tenha habituado a “estar em casa sempre”. De repente, foi “para a rua” e as rotinas alteraram-se drasticamente, contribuindo para o que aconteceu.
#Podiatersidoeu. Redes sociais encheram-se de relatos idênticos
Após uma onda de comentários que responsabilizava e acusava a mãe de negligência, várias mães partilharam as suas histórias em solidariedade. Através da hashtag #Podiatersidoeu é possível encontrar algumas delas.
Marta Nabais, por exemplo, revela que também se esqueceu da filha no carro: “Ela tinha menos de um ano de idade e adormeceu no ovo. Naquele dia eu fiz um percurso diferente. O mais comum era levar o irmão a pé à escola. Naquele dia fui com os dois no carro. Estacionei em frente à escola. Saí com o mais velho, tocámos à campainha e esperámos que nos abrissem o portão. Já estávamos a entrar depois da hora normal. Deixei-o à entrada da sala e quando vou colocar a mochila no cabide deu-se o click. Corri que nem uma louca, não voltei a olhar para trás. Abano o portão e toco para me deixarem sair. Chego ao carro, ela tinha acordado e estava a chorar”.
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“Tirei do ovo e desatei a chorar”, prossegue, desabafando ainda que teve “vergonha”. “Pedi-lhe desculpa. Por segundos pedi para que ninguém me tivesse visto.” Marta Nabais descreveu a experiência como uma das “mais horríveis que passei com um filho”. Na origem, esteve “uma mudança na rotina” e “cansaço”. Uma “tarefa habitual que saia fora da rotina” pode mesmo fazer, de acordo com Fernanda Salvaterra, que a pessoa aja “quase em piloto automático”, havendo “alterações a nível do comportamento” e um “alheamento à pressão que se sente”.
Outra mãe relata que, após os gémeos nascerem, teve “umas semanas em piloto automático”, em que não se lembra “de muita coisa a não ser das rotinas e lista de tarefas, de dar de mamar em loop, do som de gente que entrava e saía para ver os bebés, sem me ver… Lembro-me de me sentir invisível, de gritar cá dentro e ninguém ouvir”.
“Durante o primeiro ano tinha pesadelos”, confessa, sendo que “achava que um dia os ia perder num supermercado, não conseguir segurá-los quando uma onda viesse, que ao atravessar a estrada não ia dar conta do recado”. A primeira coisa que esta manhã diz ter sendido após saber do sucedido com a gestora de 40 anos foi “empatia”, “vontade imensa de ir abraçar uma mãe que nunca mais será a mesma” e “que precisa de apoio” como ela própria espera nunca precisar.
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Outra mãe refere que, após o nascimento da filha, a memória “ficou completamente desfeita” e esquecia-se “frequentemente das mais básicas coisas como lavar os dentes ou meter desodorizante”. Confessa ainda que só “queria dormir, só queria que ela não chorasse, só queria que tudo acabasse”. Isso, porém, não era possível: “Tinha de ser mãe, esposa e profissional. A vida não parou porque eu não dormia. O meu trabalho não se fez sozinho porque eu estava cansada, o orçamento familiar não esticou porque eu não tinha cabeça para cozinhar e ia comprar comida”.
“Um dia, estava tão cansada que a deixei a chorar no berço, fechei a porta e liguei à minha mãe a soluçar e a pedir, por favor, para me vir ajudar a tomar conta dela porque eu já não aguentava mais. Eu tive esta rede, este suporte que me amparou, mas nem toda a gente tem”, continua, afirmando ainda que “quem nunca passou pela privação de sono nunca vai entender tudo o que isso implica, e, em jeito de julgamento, vai sempre achar que quem conta a história exagera”.
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Sónia Morais Santos, autora do blogue Cocó na Fralda, contou que também se esqueceu da filha num ovo num supermercado. “Estava com o cesto de compras, com um peso nos braços, e com mais dois filhos”, relata, não se tendo lembrado sequer de que estava com a filha. Assim que se apercebeu que tinha deixado a criança para trás, apanhou um “susto”, sentindo uma “sensação de perda e vazio”. Ficou, garante, a sentir-se uma “mãe terrível”.
A jornalista sensibilizou-se com o caso conhecido na semana passada, agradecendo mesmo que quem culpabilizasse a mãe a deixasse de seguir. As mães sentem “cansaço”, podem “estar dormir mal”, a sentir muita “preocupação”, lembra. “Há muita exigência, além de estar a trabalhar em confinamento é muito violento.”
Sobre a eventual culpa que vários colocam na mãe, João Veloso diz, tendo em conta a sociedade que segue uma tradição “judaico-cristã”, há a tendência de haver um “julgamento subjacente a tudo o que as pessoas fazem — há sempre um responsável e um culpado, alguém que faz o mal e o bem”. “O que acontece é que é fácil culpabilizarmos alguém, ou seja, responsabilizar alguém pela irresponsabilidade”, salienta o psicólogo.
Fernanda Salvaterra considera ainda que nas “redes sociais há sempre uma tentativa de ir pela superficialidade, por culpar de ser negligente”, mas, tratando-se “de uma situação inesperada, devido a um stress psicológico”, não se deve “diabolizar sem ajudar”.
Como é que se supera uma perda deste tipo?
Certo é que, quando algo como isto acontece, os pais passam a ter de lidar com uma dor difícil de ultrapassar. José Carlos Garrucho explica que alguém que esteja nesta situação sente-se a “desmoronar” e vive “uma realidade intolerável”. “Não é expectável que uma mãe se esqueça da cria, não é expectável que uma criança se baste a si próprio e que consiga tomar conta dela”, diz, acrescentando que, inevitavelmente, a pessoa vai sentir que falhou “enquanto mulher e mãe”.
Para além disso, a mãe vai também ter de processar a informação de que esta realidade é “irreversível, irresoluta e também contranatura”, o que vai ainda agudizar mais a dor.
João Veloso admite que “numa fase inicial vai ser muito difícil”. O psicólogo considera que será necessário que a gestora aprenda “a ressignificar a experiência”, com apoio psicológico na área do trauma. “Vai ter de aprender a lidar com isto, sendo que, potencialmente, para além do luto e da culpa, pode desenvolver um stress pós-taurmático”, refere.
Na fase inicial, de acordo com José Carlos Garrucho, vai ser necessário “fazer um desprendimento”, um “luto”, que vai ser “traumático”, mas a pessoa vai ter de se “despedir”, ainda que vá sentir que a vida é impossível de “progredir”. Vai ter, portanto, de “reorganizar a sua existência”. Mas uma “recuperação completa” é muito difícil, uma vez que não “há uma solução para o problema”.
Uma estratégia pode passar por “desconstruir a experiência”: em vez de a culpa ser posta na mãe, deveria ser colocada na estrutura, isto é, “no estilo de vida”, em que as “pessoas trabalham muitas horas, não têm tempo para o ócio”, sendo “vítimas”, por isso, de “um acontecimento maior”. “Vivemos numa sociedade em que não existe espaço para dizer que se está cansado”, explica também João Veloso, que defende que era importante “sermos francos para partilharmos um conjunto de emoções e reações”, porque isso permitiria uma maior descompressão emocional.
Neste caso específico, o papel do marido será fundamental. O “papel do pai vai ser muito importante, de ser um grande organizador”, apesar de, “quando há a morte de um filho”, “a probabilidade de haver um aumento de tensão existe”, admite o psicólogo. Ainda assim, é “muito importante” o papel paterno, porque pode ser um “organizador da história, da narrativa e da coerência”.
A relação com os outros dois filhos também sairá afetada: “Esta mãe vai relacionar-se com os filhos em função de uma experiência negativa e estes filhos vão ver esta mãe triste, aflita, preocupada, vão ver esta mãe diferente pelo que aconteceu”, descreve João Veloso, que diz que tem de haver uma “narrativa coerente, plausível, entendível e verdadeira para estas crianças”.
Também Fernanda Salvaterra explica que as dinâmicas familiares se vão alterar “a curto e a longo prazo”, pelo que a mãe se vai tornar “super protetora”.
Este caso não é o único — mais pais se esqueceram dos filhos no carro
O caso da gestora de 40 anos não é único, em Portugal e no estrangeiro. Há outros e com desfechos penais são diferentes. Em março de 2009, um pai deixou o filho de nove meses no carro, em Aveiro, durante três horas. Eram 9h30 da manhã e devia tê-lo levado à creche, que ficava mesmo ao lado do seu local de trabalho.
Foram as funcionárias da creche que alertaram a mãe de que o bebé, naquele dia, não tinha sido levado — e foram elas que descobriram a criança dentro do carro por volta das 12h30, mas já era demasiado tarde. O pai alegou que não costumava levar o filho à escola e, nesse dia, estava bastante atarefado. Foi acusado de homicídio por negligência, mas, no final de 2011, o Ministério Público suspendeu o processo — ainda que tenha sido obrigado a doar uma verba a uma instituição de solidariedade social de apoio a crianças.
Na Austrália, uma mulher de 37 anos também se esqueceu da filha dentro do carro, a 27 novembro de 2020 — dia em que as temperaturas chegaram aos 33ºC na cidade de Townsville, em Queensland. A mãe terá deixado a menina de três anos desde as 9h até às 15h dentro do carro, após ter deixado as outras três filhas na escola. Acabou por ser acusada de negligência, com o atual parceiro, e ambos ficaram em prisão preventiva. Agora aguardam o julgamento em liberdade depois de terem pago uma fiança.
Nos Estados Unidos, desde 1998 e até 2019, foram contabilizadas 440 crianças que ficaram nos carros e acabaram por morrer, segundo o The New York Times. Mas os desfechos judiciais são diferentes: enquanto, por exemplo, um assistente social de Rockland Country, em Nova Iorque, foi condenado por homicídio por negligencia após se esquecer dos dois filhos gémeos de um ano no carro, um outro pai que também deixou um bebé de um ano no carro foi absolvido.