As duas medidas foram apresentadas como extraordinárias e temporárias e tiveram a finalidade de travar o impacto do choque de preços de bens essenciais e, dessa forma, moderar a subida da inflação. Mas se o IVA zero na alimentação acabou definitivamente no início deste ano (depois de um prolongamento de três meses face ao calendário original), a subsidiação ao preço dos combustíveis feita por via fiscal resiste e os governos (o atual e o anterior) parecem recear retirar de vez este apoio.
Se, por um lado, custa muito dinheiro — mil milhões de euros anuais em números redondos —, é contrário às políticas de transição energética — porque alimenta o consumo de combustíveis e o uso do automóvel — e valeu já a Portugal críticas de instituições internacionais. Por outro, há poucas medidas mais impopulares do que o aumento da carga fiscal sobre os combustíveis, como aliás foi visível quando uma notícia sobre essa possibilidade (publicada no Jornal de Negócios) gerou reações do Chega e perguntas por parte dos deputados socialistas. Foi o Governo PS que introduziu estes apoios em 2021 e que dois anos depois ainda os mantinha, ao contrário de Espanha que, no final de 2022, limitou o desconto de 20 cêntimos por litro a alguns setores, quando tinha chegado a ser um desconto generalizado.
Bruxelas avisa Portugal que deve eliminar apoio generalizado ao preço dos combustíveis
Em Portugal, o descongelamento parcial da taxa de carbono, com um aumento de três cêntimos por litro que entrou em vigor na semana passada, reverte uma pequena parte desta ajuda que tem sido lentamente retirada e, procurando as marés baixas favoráveis nos preços internacionais para provocar o menor sobressalto possível.
O impacto orçamental desta ajuda é, no entanto, pesado e há pressões de vários lados para a retirada das ajudas — as externas por via da Comissão Europeia mas também internas, resultantes da necessidade de encaixar no saldo orçamental outras políticas de cortes de impostos de grande impacto como o IRS Jovem ou a baixa do IRC.
Em 2023, os apoios dados aos combustíveis custaram 2.000 milhões de euros, segundo a proposta de Orçamento do Estado para 2024, o que representa três vezes mais do que o custo do IVA zero na alimentação. Nos primeiros sete meses do ano, a execução orçamental aponta para um gasto de quase 600 milhões, uma cifra que não inclui o efeito do congelamento parcial da taxa de carbono.
A decisão sobre os apoios será provavelmente tomada na próxima proposta de Orçamento do Estado, sendo certo que o programa económico da AD, que serviu de base à fundamentação das principais medidas de redução de impostos — do IRS Jovem ao IRC —, não previa a retirada destes apoios. E o quadro de políticas invariantes enviado ao Parlamento pelo Ministério das Finanças também não identifica qualquer poupança orçamental resultante de uma eventual remoção destes apoios.
Apoios chegaram primeiro aos combustíveis…
A descida dos impostos sobre os combustíveis para contrariar a subida dos preços começou antes da guerra da Ucrânia, no final de 2021, e com cortes suaves, mas ganhou força em 2022 quando o Governo de António Costa, reconduzido, no início de 2022, mas dessa vez com uma maioria absoluta, usou o imposto petrolífero (ISP) para baixar o fardo fiscal com esse bem depois de não ter conseguido convencer Bruxelas a aceitar a redução do IVA para a taxa intermédia de 13%.
Além desta baixa significativa e inédita do ISP sobre gasolina e gasóleo — e 11 cêntimos por litro –, foram introduzidos em paralelo outros dois mecanismos:
- A devolução no imposto petrolífero, através de baixas adicionais, dos ganhos que o Estado ia tendo no IVA dos combustíveis induzidos pela subida dos preços;
- E a suspensão da atualização anual da taxa de carbono.
No auge desta política, as ajudas fiscais aos combustíveis ultrapassaram os 20 cêntimos por litro, e nem sempre conseguiram contrariar aumentos de preço semanais que chegaram a ultrapassar os dois dígitos durante os primeiros meses de conflito na Ucrânia na primeira metade de 2022. A situação só acalmou no final desse ano com os mercados internacionais a estabilizarem, mas então já era evidente que a inflação, inicialmente vista como um fenómeno temporário de reação da procura à fase pós-pandemia, ia ter um efeito mais duradouro nas economias ocidentais.
… e só mais tarde aos alimentos
O preço da energia — a guerra a leste afetou ainda mais os preços do gás natural que, por seu turno, contaminaram o setor elétrico — era um dos grandes culpados. Mas não de forma isolada. O setor das matérias-primas agrícolas também sentiu fortes perturbações na cadeia de abastecimento e a escalada dos preços chegou aos alimentos.
A inflação em Portugal atingiu o pico em outubro de 2022, batendo nos 10%. Uma parte da aceleração é explicada pela subida acentuada da fatura do gás natural que só nesse mês chegou aos consumidores domésticos, mas os alimentos eram o fator estrutural que mais puxava para cima os preços. E vários países começaram a baixar o IVA da alimentação.
O então ministro das Finanças ainda resistiu durante a preparação do Orçamento do Estado para 2023 a uma medida desse tipo. Fernando Medina temia que a margem gerada pela baixa do IVA fosse apropriada pelas empresas, em vez de refletida nos preços aos consumidores. Mas acabou por mudar de ideias e em abril de 2023 o Governo avança com a taxa zero sobre um cabaz de 46 produtos essenciais por um período (inicial) de seis meses com muitos avisos à navegação (neste caso à distribuição) para passar o efeito ao preço final. A medida acabaria por ser estendida até ao final desse ano (com um custo estimado de 550 milhões de euros).
O Banco de Portugal validou o impacto do IVA zero na variação negativa dos preços daqueles produtos em 2023, ainda que já se sentisse uma descida da pressão inflacionista sobre os produtos alimentares, concluindo que os artigos com IVA zero tiveram uma descida nos preços mais acentuada.
Apesar dos receios de Medina, supermercados fizeram (mesmo) o IVA Zero chegar às famílias
Mas, apesar dos efeitos positivos que terá tido no controlo da inflação e, em particular, no preço dos alimentos, o Governo socialista pôs um ponto final definitivo ao IVA zero em janeiro deste ano. Este travão repentino teve impacto na inflação, mas limitado, não colocando em causa a trajetória de descida da inflação que em julho se situou em 2,5%.
Choque nos preços da energia tem impacto mais forte nos alimentos
Numa outra análise publicada no boletim económico de junho, o Banco de Portugal analisou o impacto do choque dos preços da energia na evolução do índice de preços ao consumidor e a sua transmissão à inflação.
A análise pondera os efeitos diretos e os efeitos indiretos nos preços de outros bens e serviços — o exemplo mais evidente é o dos transportes — que, por sua vez, chegam aos alimentos e à inflação subjacente (indicador que exclui energia e alimentação não transformada). E conclui que a energia tem um impacto mais forte no preço dos alimentos do que outros fatores, sendo que os combustíveis representam cerca de 50% dos preços energéticos.
Olhando para o pico da inflação atingido em outubro de 2022 (10,6%) e, segundo o modelo estimado, “o impacto direto via preço da componente energética foi de cerca de 1,9 pontos percentuais, enquanto o contributo indireto foi de 2,4 pontos percentuais — 1,5 pontos por vias alimentares e 0,9 pontos via inflação subjacente”. A conclusão é a de que “o impacto total dos bens energéticos explicava 41% da inflação (homóloga) observada nesse mês”. A análise do Banco de Portugal aponta ainda para “a persistência dos efeitos indiretos do preço da energia sobre o preço dos alimentos e dos outros bens e serviços que continuam a ser positivos”.
O Banco de Portugal destaca igualmente que o “impacto do aumento no preço dos bens energéticos na dinâmica do preço dos bens alimentares é, em média, quatro vezes superior ao impacto da dinâmica da inflação subjacente” (aquela que não inclui precisamente os preços mais voláteis). Isto significa que o contributo da energia para a inflação dos alimentos é especialmente relevante. E os bens alimentares representam cerca de um quarto da inflação total.
Foi ainda no tempo do Governo socialista que os preços dos combustíveis recuaram para os níveis a que estavam antes do aumentos provocados pela guerra. E por várias vezes ao longo dos últimos dois anos. No entanto, nova crise geopolítica com epicentro no Médio Oriente — a guerra de Israel contra o Hamas — e os riscos acrescidos que trouxe aos preços do petróleo contribuíram para a manutenção dos apoios aos preços.
António Costa, que viu o primeiro governo da geringonça colado à fama de carregar no imposto petrolífero, não quis ir muito longe na retoma da receita fiscal. Em 2023, os socialistas iniciaram um caminho de recuperação de imposto, mas focado no descongelamento parcial da taxa de carbono que no ano passado aumentou (de forma gradual e tirando partido da conjunturas favoráveis de preços internacionais baixos) 8 cêntimos no gasóleo e 7 cêntimos na gasolina.
Governo quer recuperar (aumentando) 6 cêntimos na taxa de carbono dos combustíveis em 2024
O Orçamento do Estado para 2024 previa que essa recuperação gradual prosseguisse este ano, mas a instabilidade política e as eleições interromperam o processo. O novo Governo tomou posse em abril, mas só em agosto retomou o descongelamento da taxa de carbono, aproveitando a margem proporcionada por uma descida acentuada dos preços internacionais. O adicional de CO2 cobrado no imposto petrolífero subiu 3 cêntimos por litro e terá de subir outro tanto para concluir a atualização da taxa em função das cotações internacionais do mercado do carbono.