Índice
Índice
Foi uma das melhores notícias de 2020: nove meses depois de a Covid-19 ter sido declarada uma pandemia, estava aprovada uma vacina — a que se seguiram outras — segura e capaz de travar a sua propagação. O que parecia longínquo em março do ano passado tornou-se uma realidade no final do ano e podia significar o regresso aguardado à normalidade. A 2 de dezembro, o Reino Unido foi o primeiro país do mundo a aprovar uma vacina contra o SARS-CoV-2 desenvolvida pela empresa farmacêutica norte-americana Pfizer em parceria com a alemã BioNTech. A Agência Europeia do Medicamento tomou a mesma decisão a 21 de dezembro.
Foi um sinal de esperança e de algum alívio: criada a vacina, agora era só multiplicá-la, ou seja, produzi-la em massa, certo? Sim, mas isso é mais difícil do que parece. Assoberbadas pela quantidade de encomendas, as farmacêuticas viram-se em dificuldades para assegurar uma capacidade logística capaz de fazer face à procura e conseguir fornecer vacinas à escala global. Já se contava com isso mesmo e, antes mesmo das vacinas estarem prontas, os países estabeleceram prioridades nos seus planos de vacinação.
O problema é que mesmo essas primeiras previsões de distribuição das doses, ainda que faseadas por vários meses, acabaram por ter de ser ajustadas. Já com os programas de vacinação em marcha, os Estados-membros da União Europeia (UE), por exemplo, tiveram de adiar as suas campanhas devido a atraso nas entregas, o que motivou várias queixas. A Comissão Europeia, Itália e Alemanha chegaram mesmo ameaçar com processos judiciais à Pfizer, e admitem reter as vacinas produzidas em território comunitário. Aliás, na passada quinta-feira, Itália chegou a bloquear 250 mil doses das vacinas da AstraZeneca para a Austrália devido à “escassez de vacinas”.
As empresas farmacêuticas, que se viram longe do obscurantismo que as caracterizava antes da pandemia, justificam os atrasos com problemas na produção de vacinas, prometendo melhorias no futuro — a Pfizer fez isso em janeiro. Mas será assim tão difícil montar em larga escala um processo de vacinação como o da Pfizer? Quais são as etapas? E o que se faz em cada uma? O que está a motivar os atrasos? O virologista Celso Cunha ajuda a responder a estas questões. E é melhor preparar-se: a viagem ainda é longa.
Para duplicar o ARN do SARS-CoV-2 são preciso 17 dias
Numa vacina como a da Pfizer, a primeira etapa passa por extrair a parte da informação genética referente à proteína spike do SARS-CoV-2, que o vírus utiliza para conseguir entrar nas células do organismo. Depois de extraído, produz-se aquilo a que se chama de plasmídeos, moléculas circulares que contêm a sequência genética daquela proteína.
Depois, estes plasmídeos são introduzidos em bactérias E.coli, guardadas numa solução rica em nutrientes, através de um estímulo elétrico que as torna permeáveis a serem invadidas por essas moléculas. As bactérias multiplicam-se, podendo chegar aos biliões em quatro dias. A solução é escoada e filtrada, sobrando apenas as moléculas circulares com a informação genética, que acabam em forma de fio ao serem cortadas por enzimas. Este processo dura cerca de 17 dias e é comum nas restantes vacinas. O Wall Street Journal diz que um dos objetivos da Pfizer é torná-lo mais rápido no futuro.
Dos fios para mRNA demora 16 dias
A segunda etapa é a que vai permitir que estes fios se transformem no ARN mensageiro (mRNA). O tal “veículo de introdução nas nossas células”, como descreve Celso Cunha, o que vai permitir ativar a “maquinaria celular” e, com isso, induzir uma resposta imunitária no organismo, mobilizando defesas suficientes para combater o vírus.
Nesta fase, que dura aproximadamente 16 dias, os fios de ARN são misturados com as enzimas, transformando-se em moléculas mensageiras, que transferem informação genética de um lado para o outro. Posteriormente, as enzimas e os químicos são filtrados para apenas restar o mRNA, que depois é armazenado em temperaturas baixas, dado ser “potencialmente muito instável”, afirma Celso Cunha, sendo facilmente destruído por outras proteínas “que se podem encontrar em todo o lado”.
A gordura é o principal problema (ainda que dure 12 dias)
Colocar o mRNA num invólucro de gorduras é a terceira fase. Com o invólucro de gordura, uma nanopartícula feita de lípidos e com a forma de uma bola, o mRNA mantém-se estável no percurso da seringa para a célula. Como a membrana das células também é feita de lípidos, o invólucro de gordura, que protege a molécula contra as agressões exteriores, funde-se com ela. Assim, o mRNA entra em circulação no organismo.
O invólucro de gordura e o mRNA fixam-se porque são expostos a cargas elétricas opostas, que se atraem. Seguidamente, a solução é filtrada, para que sobrem apenas a molécula, o invólucro de gorduras e alguns aditivos que “servem para estabilizar o princípio ativo da vacina”. São “inócuos e ajudam a estabilizar durante o transporte e o armazenamento”, detalha Celso Cunha.
Esta fase da preparação da vacina é a mais curta — dura cerca de 12 dias —, mas é aquela que tem dado mais dores de cabeça. Não há fornecedores em número suficiente de compostos lípidicos e a Pfizer até já começou a produzi-los internamente, mas as carências subsistem, segundo o Wall Street Journal.
Testar e testar (e também embalar) demora mais 19 dias
Quando a composição química da vacina está finalmente pronta, é tempo de enfrascar, rotular e empacotar as seis doses que vão formar cada injeção — e só este processo dura dois dias.
Mas, depois, o lema passa a ser testar — a Pfizer fotografa os frascos das vacinas já embalados de cem diferentes ângulos, de modo a detetar possíveis falhas. E não se fica por aqui. Uma amostra de cada lote de vacinas é testada, de maneira a comprovar que está livre de microorganismos, averiguando-se também a sua potência. Só após tudo isso, as doses são armazenadas em temperaturas negativas enquanto esperam para ser transportadas para outros locais.
Embora estando encapsulado num invólucro lipídico, o mRNA pode continuar a sofrer agressões de enzimas exteriores, que estão presentes em tudo o que é sítio. Daí necessitarem de um armazenamento a temperaturas tão baixas: não só porque conferem maior capacidade de proteção ao invólucro, mantendo-o intacto, como as enzimas que degradam o mRNA não funcionam em temperaturas tão baixas”, explica Celso Cunha.
Os problemas de exportação e o preço
As fábricas da Pfizer localizam-se nos Estados Unidos, na União Europeia e no Reino Unido. Tendo em conta os problemas de logística (que envolvem principalmente a manutenção de temperaturas frias no transporte), Celso Cunha considera que as vacinas desta farmacêutica não devem exportadas para os países de baixa renda. “Há uma cadeia de transporte que exige que as vacinas permaneçam no frio, num ambiente gelado até chegar ao destino final, o que torna muito difícil chegar a populações remotas e a grandes cidades de países de baixas rendas”, justifica.
Apesar da produção em linha não ser tarefa fácil, Celso Cunha considera as vacinas do género da Pfizer “não são caras” e o que preço poderá ser “especulativo”. E também destaca que o mecanismo por detrás deste tipo de imunizantes é facilmente alterável — uma vantagem face às novas variantes que poderão pôr em causa a sua eficácia. É “mais fácil nesse aspeto”, resume.