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Porque é que o Estado está a falhar na ala pediátrica do Hospital de São João?

Porque é que a ala pediátrica do São João está por construir há anos? A resposta, que inclui rivalidades locais e a paralisia de três governos, está na nova rubrica do Observador "Onde o Estado falha"

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O Observador está a fazer uma investigação jornalística para perceber onde o Estado falha e porquê. Uma parte fundamental deste trabalho resulta da colaboração dos nossos leitores, que nos podem enviar denúncias sobre os problemas que comprometem a sua segurança, saúde e ou educação. Basta preencher este formulário, disponível de forma permanente no site do Observador, com informações que serão depois investigadas pelos jornalistas do Observador e publicadas no site de forma regular.

Pedro Passos Coelho chega ao Porto de fato azul escuro e gravata roxa. Dali a poucas horas, encerrará as jornadas parlamentares do PSD, na Alfândega. Antes, vai ao Hospital São João, onde todos estão preparados para um momento que tem tudo para ser histórico: o primeiro-ministro vai apadrinhar o lançamento da primeira pedra da futura e novíssima ala pediátrica do Hospital São João, pensada para acabar com o pesadelo em que vivem crianças, pais e profissionais de saúde. Um pesadelo que começou em 2008, quando foram pela primeira vez empurrados para uns precários contentores provisórios. Ia nascer, finalmente, o “Lugar para o Joãozinho”, uma obra idealizada por António Ferreira, presidente do Conselho de Administração do hospital, e pensada por Pedro Arroja, presidente da associação com mesmo nome.

O projeto é ambicioso. Está prevista a construção de uma estrutura de cinco pisos, com mais de 10 mil metros quadrados. Contará com equipamento de ponta, uma área de 320 metros quadrados para lazer e outra de 220 metros quadrados que servirá como escola para as crianças internadas. O custo da obra? 25 milhões de euros inteiramente financiados por privados. É uma obra de mecenato quase sem precedentes em Portugal. E tem apoios de peso: Maria Cavaco Silva, Maria José Ritta, Maria Barroso, Manuela Eanes, Margarida Sousa Uva, Laura Ferreira e D. Isabel de Bragança — todas quiseram juntar-se à comissão de honra do projeto.

No dia da cerimónia, ninguém quis faltar. Além de Rui Moreira, sentado na mesa de honra, na plateia estão algumas das mais destacadas figuras da sociedade portuense. À chegada, Passos é recebido pela tuna académica da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e não resiste a pôr a capa de estudante aos ombros. O dia é de festa.

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Mais de três anos depois do lançamento da primeira pedra, crianças, enfermeiros e médicos continuam nos mesmos contentores, tão provisórios como em 2008, agora muito mais degradados e muito mais caóticos. O que correu mal?

António Ferreira e Pedro Arroja são os primeiros a discursar. Chega finalmente a vez de Passos. O primeiro-ministro não esquece o carácter inovador da iniciativa: é digna, diz, dos países do norte da Europa, “onde os cidadãos se organizam para promover as respostas que pretendem para o seu microcosmo, para a sua cidade ou para a sua região”. E nota: “Não podemos deixar de acolher com entusiasmo este tipo de iniciativas, mas tal não significa que o Estado se deva desresponsabilizar“.

No final, terminado o discurso, o momento é em tudo simbólico: Passos coloca a primeira pedra numa cápsula do tempo preparada para o efeito, uma caixa de vidro onde estava também a ata com o nome de todas as pessoas presentes, moedas e um jornal do dia — 3 de março de 2015. Será o início de uma nova vida para o São João.

Ou seria. Na verdade, as obras nunca se concretizaram. Mais de três anos depois do lançamento da primeira pedra, crianças, enfermeiros e médicos continuam nos mesmos contentores, tão provisórios como em 2008, agora muito mais degradados e muito mais caóticos. O que correu mal? Os interesses instalados, diferendos jurídicos que se geraram e a indecisão política de administradores e governantes atrasaram todo o processo, até ao congelamento total. Veja como um problema relativamente fácil de resolver se transformou num problema muitíssimo difícil de resolver. Onde é que o Estado falhou? E porquê?

“Onde o Estado falha”. Conte-nos a sua história

O que está a falhar?

Há muito que são conhecidas as más condições do hospital. Há infiltrações de água, chega a chover lá dentro e parte do tecto chegou a desabar. A situação é de tal forma precária que uma avaria do sistema de aquecimento bastou para obrigar a que as crianças internadas dormissem com casacos para suportarem o frio.

Também há falta de camas de isolamento e buracos nos quartos. Não há espaço na enfermaria. Todos os meses, chegam denúncias sobre consultas e cirurgias sucessivamente atrasadas. E, depois, existe um óbvio problema estrutural, que contribui para o estado caótico a que chegou a ala pediátrica: os contentores, pensados para serem provisórios, não têm acesso direto ao edifício principal, o que obriga a que as crianças tenham de ser transportadas de ambulância quando necessitam de ir a uma consulta, à urgência pediátrica ou fazer exames.

Aparentemente, há vontade política, há projeto e há dinheiro; mas não há forma de a obra avançar. Tudo porque o Estado esteve uma década inteira paralisado por interesses, hesitações e recuos.

Este caos deixou de ser politicamente sustentável no início de abril, quando vários pais revelaram que havia crianças a fazerem tratamentos de quimioterapia nos corredores, em situações “indignas” e “miseráveis”, como classificou António Oliveira e Silva, atual presidente do São João.

Hospital de São João. Crianças fazem quimioterapia nos corredores

O caso chegou rapidamente ao Parlamento, com todos os partidos, à exceção do PS, a culparem o ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, mas, sobretudo, Mário Centeno, acusado de fazer brilharetes no défice à custa do investimento em áreas tão fundamentais como a Saúde.

O Governo sentiu-se pressionado a agir e prometeu desbloquear os 22 milhões de euros necessários. Quando? Centeno não se comprometeu. Isto apesar de a Administração Regional de Saúde do Norte (ARS-N) ter anunciado o novo projeto para a pediatria do São João em janeiro de 2017.

Mais: o financiamento para a obra foi aprovado a 1 de junho de 2017, simbolicamente no Dia Mundial da Criança, com a assinatura do protocolo entre o São João, o Ministério da Saúde e a ARS-N. Ou seja: aparentemente, há vontade política, há projeto e há dinheiro; mas não há forma de a obra avançar. Porquê? Porque, como vamos ver, o Estado esteve uma década inteira paralisado por interesses, hesitações e recuos.

Porque está a falhar?

A história por detrás do estado a que chegou a ala pediátrica do Hospital de São João arrasta-se há cerca de uma década e já passou pelas mãos de sucessivos governos — liderados por José Sócrates, Passos Coelho e António Costa –, todos eles com responsabilidades no processo:

  1. Primeiro, houve a identificação de uma necessidade que muitos dizem na verdade não existir e resultar de uma guerra de egos;
  2. A seguir, o governo de Passos Coelho decidiu deixar a obra arrancar (e até a apadrinhou), mesmo sem garantias de que havia dinheiro suficiente para a continuar e até sem avaliar a sua real necessidade, uma vez que existia a promessa de que não seria preciso investimento público;
  3. Por fim, depois de concluir que a obra não tinha possibilidades de avançar com investimento privado, o governo de António Costa concordou em investir 22 milhões de euros na nova unidade pediátrica do São João.

“Ninguém teve coragem política para avaliar a necessidade daquela obra e para chegar lá e dizer ‘não’ ao Porto. Dizer que o serviço não é preciso seria um discurso muito mau em termos de resultados eleitorais, nenhum político o poderia ter. E o problema tornou-se irreversível”, comenta uma fonte próxima deste processo. Para contar a história toda, temos de recuar uns anos.

A necessidade de melhorar os cuidados pediátricos no Porto, através da construção de uma unidade especializada mais moderna, já era antiga, remontando pelo menos até ao final do século passado. A ambição começou a concretizar-se em 2010, com o arranque das obras do Centro Materno-Infantil do Norte, integrado no Centro Hospitalar do Porto (que inclui o Hospital de Santo António). A obra, orçada em cerca de 60 milhões de euros, foi inaugurada em maio de 2014, tornando-se rapidamente na principal unidade pediátrica do Norte — é hoje a unidade com maior número de partos da região norte do país.

Em simultâneo, o Hospital de São João, a maior unidade hospitalar da região, enfrentava já graves dificuldades na sua ala pediátrica. Em 2008, considerando que as condições das instalações não eram as mais adequadas, a administração do hospital resolveu que era necessário construir uma ala pediátrica nova. E decidiu que o deveria fazer recorrendo não a investimento público, mas sim a mecenas que patrocinassem as novas instalações. Durante os tempos que se seguiram, o hospital levou a cabo um conjunto de iniciativas com vista à angariação de fundos para a construção da futura ala pediátrica, como galas solidárias e outros eventos.

“Ninguém teve coragem política para avaliar a necessidade daquela obra e para chegar lá e dizer ‘não’ ao Porto. Dizer que o serviço não é preciso seria um discurso muito mau em termos de resultados eleitorais, nenhum político o poderia ter”, comenta uma fonte próxima deste processo. 

Em 2011, a degradação das instalações pediátricas chegou a um nível tal que obrigou a administração a tomar uma decisão drástica: demolir definitivamente a infraestrutura e colocar toda a unidade em instalações provisórias, os famosos contentores onde ainda hoje se encontram as crianças. A decisão aumentava a urgência de construir a nova ala pediátrica, mas a angariação de fundos não estava a ter resultados suficientes. No final de 2013, as iniciativas levadas a cabo pelo hospital tinham chegado para reunir 600 mil euros, um valor manifestamente insuficiente face aos 25 milhões em que a obra estava orçamentada.

É aí que a administração do hospital, liderada por António Ferreira, decide implementar um plano mais ambicioso. Numa resolução do conselho de administração datada de 5 de dezembro, a que o Observador teve acesso, lê-se que “o projeto ‘Um Lugar para o Joãozinho’, visando a construção da ala pediátrica do Centro Hospitalar de São João – Hospital Pediátrico Integrado, atingiu um nível de notoriedade que o torna irreversível”. “Importa, por isso, encontrar métodos de agilizar os processos e incrementar a angariação de fundos que permitam a concretização da obra”, prosseguia o documento.

A solução encontrada foi recorrer a Pedro Arroja, “personalidade de reconhecido mérito académico, profissional e social”, que se tinha disponibilizado “para criar uma associação sem fins lucrativos, de carácter humanitário que tenha como objeto a construção do Hospital Pediátrico Integrado”, como explica o documento, que acrescenta que o conselho de administração “congratula-se com a proposta apresentada, decida apoiá-la e considera-a de extrema utilidade para a prossecução dos objetivos estratégicos e assistenciais desta unidade de saúde”.

Pedro Arroja foi escolhido para criar uma associação sem fins lucrativos com o objetivo de construir a ala pediátrica

Captura de ecrã (Youtube)

Nasceu ali a associação Joãozinho, que em janeiro de 2014 foi oficialmente constituída como Instituição Particular de Solidariedade Social com o estatuto de utilidade pública na área da saúde. Mas é também por esta altura que nasce uma das grandes questões de todo este enredo que ainda estão por responder: afinal, há mesmo necessidade de construir uma nova ala pediátrica no Hospital de São João, numa altura em que estava prestes a ser inaugurado o Centro Materno-Infantil do Norte (CMIN), que representava um assinalável aumento na capacidade de assistência pediátrica na região?

Várias fontes com conhecimento direto do processo admitem ao Observador que a insistência na construção de uma nova ala pediátrica no São João foi uma resposta à construção do CMIN, que seria integrado noutro centro hospitalar. O Centro Hospitalar de São João não quis ficar atrás do Centro Hospitalar do Porto no que toca aos cuidados pediátricos — mesmo que, como admitem as mesmas fontes, a capacidade desse novo centro fosse suficiente para dar resposta às necessidades da região. Ao Hospital de São João bastaria, garantem, remodelar as instalações em más condições, sem haver necessidade de expansão.

Mas esta não é a única rivalidade. Uma das grandes apostas do Hospital de São João era renovar totalmente a área da oncologia, incluindo a oncologia pediátrica. O antigo secretário de Estado e ministro da Saúde Fernando Leal da Costa, que estava em funções naquela altura, recorda ao Observador que o Governo chegou “à conclusão de que mais importante do que renovar a ala pediátrica do São João era passar a área oncológica para o IPO” — instituição com capacidade para acolher os pacientes e que fica do outro lado da rua, em frente ao Hospital de São João.

O governo de Passos concluiu mais importante do que renovar a ala pediátrica do São João era passar a área oncológica para o IPO, lembra Leal da Costa (à direita na foto)

LUSA

Mas o hospital parecia não querer abrir mão da oncologia e a solução encontrada foi um acordo: o Hospital de São João ficaria apenas responsável pela assistência a alguns tipos de tumores — designadamente os do sistema nervoso central — e, progressivamente, toda a oncologia passaria para o IPO. Isso nunca aconteceu. Mas teria sido muito fácil, desde que houvesse vontade, lembra Fernando Leal da Costa: “Se eles quisessem, os doentes passavam todos para o edifício da frente [IPO] no próprio dia. Não há espaço suficiente [no São João] porque algumas valências, como essas, deviam ter sido passadas para o IPO”.

Uma outra fonte explica ainda que o que está na origem da falta de espaço no São João não é a capacidade reduzida, mas o excesso de pacientes que são admitidos naquele hospital sem serem transferidos para outras unidades, como o CMIN. O facto de as urgências do São João serem uma grande porta de entrada a admitir pacientes e a encaminhá-los para serviços internos leva à grande acumulação de doentes naquela instituição, em vez de serem distribuídos por outras unidades da região. O investimento na construção de uma nova ala pediátrica, adverte a mesma fonte, pode revelar-se desnecessário, resultando na dispersão de recursos e na existência de recursos sobredimensionados.

No meio de toda esta teia de interesses, o que fez o Governo, responsável pela nomeação das administrações hospitalares? Desde o momento em que a administração do São João se decidiu pela construção da nova ala pediátrica, mesmo reconhecendo a necessidade de uma transição de valências para o IPO e a capacidade de apoio pediátrico do CMIN, e apesar das diferentes opiniões sobre a necessidade ou não de construir a nova ala, o Governo decidiu deixar a obra avançar. Porquê? Porque não queria a intervir num processo com mais dúvidas do que certezas — evitando assim comprar uma guerra com aquele importante centro hospitalar.

Há fortes divergências, mesmo entre especialistas na área da saúde, no que diz respeito à necessidade ou não de criar uma nova ala pediátrica no Porto.

Fontes ligadas ao setor da saúde mas externas a este processo reconhecem também a existência de fortes divergências, mesmo entre especialistas, no que diz respeito à necessidade ou não de criar uma nova ala pediátrica. Ainda assim, a convicção de António Ferreira, presidente do conselho de administração do Hospital de São João, foi a de que a nova ala pediátrica era de facto uma necessidade. O Observador tentou contactar António Ferreira, mas não foi possível obter uma resposta até à publicação deste artigo.

Após alguns meses a trabalhar no sentido de reunir mecenas, Pedro Arroja encontrou duas construtoras — a Lúcios e a Somague — dispostas a executar a obra e estabeleceu contactos com várias empresas que se terão, segundo ele, comprometido a contribuir com donativos à medida que as obras fossem avançando. De acordo com o contrato assinado entre a associação Joãozinho e o consórcio das duas construtoras, a que o Observador teve acesso, a associação comprometeu-se a pagar um milhão de euros às construtoras para o arranque das obras, sendo que o pagamento do restante valor da obra seria feito ao longo do avanço dos trabalhos, consoante os contributos dos mecenas.

2015 foi o ano de todos os avanços. A 12 de janeiro, o então secretário de Estado da Saúde, Manuel Teixeira, assina um despacho em que o Governo não levanta qualquer objeção à construção da nova ala pediátrica, financiada exclusivamente com dinheiro privado, desde que do projeto não resultasse qualquer encargo para o Estado. “Atendendo ao reconhecimento por parte do Conselho de Administração do Centro Hospitalar de São João, EPE, da relevância do projeto apresentado pela Associação Humanitária ‘Um lugar para o Joãozinho’, no que se refere à doação da construção das instalações da Ala Pediátrica naquele Centro Hospitalar, com vista à melhoria das condições de acolhimento e cuidados de saúde que incumbe prestar aos doentes com idade pediátrica, e tendo em conta que de acordo com as informações prestadas, do referido projeto não resultam quaisquer responsabilidades financeiras, seja para o Centro Hospitalar em causa, seja para o erário público, nada parece obstar a que o Conselho de Administração de São João, EPE, aceite a doação de tal construção”, lê-se no despacho, consultado pelo Observador.

O Governo não se limitou a aceitar a construção — apadrinhou-o, mesmo consciente de que os fundos angariados até ao momento eram manifestamente inferiores ao necessário para a construção do edifício. A 3 de março de 2015, foi lançada a primeira pedra, com a presença do primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho.

O que estava previsto era que, depois do lançamento da primeira pedra, o hospital e a associação assinassem um protocolo que regulasse os termos em que a associação teria acesso ao terreno do hospital, construiria a ala pediátrica e a entregaria novamente ao hospital. Mas a primeira versão do documento causou um desentendimento entre a administração do hospital e a associação. Com dúvidas sobre alguns pontos do documento, o hospital decidiu pedir um parecer jurídico ao escritório de advogados Cuatrecasas. O parecer não agradou a Pedro Arroja, que o classificou como “um documento em que o hospital só tem direitos e os mecenas só têm obrigações”, que impunha “condições inaceitáveis” e levantava “a hipótese de recurso a um tribunal no caso de incumprimentos de execução técnica da obra ou do prazo”.

Aquele contratempo obrigou à suspensão temporária da obra, mas o problema resolveu-se no Verão do mesmo ano. A 17 de julho, o Centro Hospitalar de São João, a associação Joãozinho e o consórcio das duas construtoras assinaram um protocolo tripartido com vista à construção da nova ala pediátrica. No documento, a que o Observador também teve acesso, consta que o hospital se compromete a ceder à associação Joãozinho a utilização do terreno onde viria a ser construída a nova ala pediátrica. Em troca, a associação construiria a nova ala sem qualquer encargo para o Centro Hospitalar.

As obras arrancam de novo e, por esta altura, a associação tinha pouco mais de um milhão de euros — incluindo os cerca de 600 mil euros angariados pelo hospital e que foram transferidos para a instituição liderada por Pedro Arroja. O compromisso do hospital era o de, progressivamente, ir desocupando o terreno onde seria erguida a nova ala pediátrica, ao mesmo tempo que o consórcio das construtoras ia dando início aos trabalhos de demolição e limpeza — um processo que decorreu pacificamente até março de 2016, mês em que recomeçaram os problemas.

Em fevereiro de 2016, já com António Costa à frente do Governo, a administração do Hospital de São João mudou, com António Oliveira e Silva a suceder a António Ferreira. “Tomámos posse em fevereiro de 2016 e nessa altura tivemos várias reuniões com a Joãozinho. Dissemos-lhe que não havia nenhum problema com aquele protocolo, que vinha do tempo da anterior administração, mas desde que a obra pudesse ser concluída no tempo estimado anteriormente, que era de três ou quatro anos”, conta ao Observador o atual administrador do hospital.

Enquanto isso, no terreno da obra, um problema parecia surgir, uma vez que uma das zonas onde deveria ser erguida parte do novo centro pediátrico ainda estava ocupada pela unidade de sangue do hospital, uma “unidade de charneira” para a instituição. Já a administração anterior tinha alguma relutância em mover aquela unidade para instalações provisórias durante um longo período de tempo. Mas a nova administração foi perentória: só o faria com a garantia de que a obra não excede o prazo previsto.

A 2 de março do mesmo ano, poucos dias depois da entrada em funções da nova administração, o presidente do consórcio composto pelas duas construtoras escreveu uma carta a Pedro Arroja a informá-lo de que iria suspender os trabalhos, uma vez que se mantinha “a situação de não disponibilização das frentes de obra necessárias à execução dos trabalhos”. Na carta, a que o Observador também teve acesso, lia-se que aquela era uma situação “de clara subprodução não imputável” ao consórcio, que teria “reflexos ao nível do prazo contratual” e dos custos.

No meio deste impasse, a associação Joãozinho tentou uma outra solução: um negócio com os supermercados Continente que lhe permitiria financiar o projeto quase na totalidade. 

Neste momento do enredo, cruzam-se duas versões bem distintas:

  • Pedro Arroja, o presidente da associação Joãozinho, garante que o hospital parou o processo de desocupação propositadamente, com o objetivo de boicotar a obra. “O hospital virou as costas ao protocolo e paralisou a obra ao não tirar o serviço de sangue. Temos a obra paralisada há dois anos e estamos dispostos a recomeçá-la. Não há falta de dinheiro nenhum”, argumenta, em declarações ao Observador, garantindo que “a administração do hospital está a boicotar a obra”.
  • Já o administrador do hospital duvidava da capacidade da associação de concretizar a obra. “A associação Joãozinho tinha à volta de um milhão de euros, incluindo os tais 600 mil que o hospital angariara e lhe tinha entregado. A opinião da associação é que o início da obra criaria dinâmicas que iriam gerar a angariação de mais fundos. A nossa opinião não foi essa. Para nós, era demasiado arriscado apostarmos assim, sem garantias de que haveria dinheiro para concluir a obra”, argumenta António Oliveira e Silva.

Em março daquele ano, a administração decidiu, então, tomar uma posição pública: a nova ala pediátrica só seria concretizável com financiamento público. Arroja não compreendeu. “A administração começou a pedir dinheiro ao Estado. Mas não há falta de dinheiro. A obra foi aceite por um despacho do secretário de Estado da Saúde, Manuel Teixeira. Todo o plano da obra, incluindo o plano financeiro, passou pelo crivo do Tribunal de Contas, sempre sem haver dinheiros públicos envolvidos. O espaço da obra está-nos cedido, embora não esteja desimpedido, como o hospital se comprometeu no protocolo”, explica Pedro Arroja.

O atual administrador do hospital diz não compreender a necessidade de “protagonismo” da associação Joãozinho, que insiste em construir a ala pediátrica, e diz que teve várias reuniões com os líderes da associação no sentido de lhes propor um contrato de associação. “Nós queremos incluir a associação neste projeto, não os queremos afastar. Eles podem ser muito úteis, até porque vamos precisar de angariar fundos para equipamentos. A questão é que, se temos a possibilidade de fazer o hospital rapidamente com dinheiro público, ninguém iria entender que a associação fosse um obstáculo. Custa-me a perceber o finca-pé no protagonismo, quando eles não têm dinheiro”, diz António Oliveira e Silva.

Pedro Arroja contrapõe: “O que o hospital anda a dizer, que nós não temos dinheiro, é mentira. Nós temos o dinheiro. Claro que não tenho os 20 milhões de euros aqui no bolso, mas tenho acordos com vários mecenas que se dispõem a financiar o projeto”. O presidente da associação explica ainda que não pode “simplesmente rasgar” os compromissos que já assumiu com as construtoras. “Eles querem passar a mensagem de que têm o dinheiro e estão prontos para construir e que a associação não deixa. Mas é o contrário. Nós é que estamos prontos e o Estado não deixa.”

No meio deste impasse, a associação Joãozinho tentou uma outra solução: um negócio com os supermercados Continente que lhe permitiria financiar o projeto quase na totalidade. “A determinada altura, o Continente ofereceu-se para colocar um supermercado em terrenos do hospital. Em troca, iriam contribuir com 300 mil euros por ano para a obra, durante cinquenta anos, o que daria cerca de 10 milhões. Mas o hospital virou as coisas”, lamenta Arroja. Após ter conhecimento do acordo entre o Continente e a associação, o presidente do conselho de administração, António Oliveira e Silva, decidiu pedir um parecer jurídico à sociedade de advogados Cuatrecasas, que considerou não haver enquadramento legal para o acordo.

A solução caiu, mas Pedro Arroja garante que o Continente continua disponível para o acordo. Ainda assim, diz o presidente da associação, “com ou sem Continente, temos capacidade para avançar com a obra amanhã, caso o hospital desimpeça o espaço”.

Adalberto Campos Fernandes optou pelo financiamento público do hospital

MANUEL DE ALMEIDA/LUSA

Em 2015, o Estado tinha aceitado a construção com dinheiro de mecenas privados; em 2016, mudou de opinião. O administrador do hospital confirma que o ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, visitou o hospital em agosto de 2016, concordou com a posição da administração, e deu garantias de ver se o financiamento era possível até janeiro de 2017. “Em janeiro de 2017, confirmou que o dinheiro ia ser arranjado. A 1 de junho, foi assinado um protocolo entre a ACSS, a ARS Norte e o centro hospitalar, onde a verba necessária à construção é libertada, com faseamento por anos”, detalha o administrador. Entretanto, só em fevereiro de 2018 é que o dinheiro foi efetivamente disponibilizado ao hospital. Apesar de as verbas ainda estarem por desbloquear, o ministro das Finanças, Mário Centeno, já garantiu que a obra vai mesmo avançar.

Pedro Arroja diz não compreender que o Estado se prepare para investir numa obra que podia ter de forma gratuita. “Não queremos esse dinheiro. Queremos fazer com dinheiro dos mecenas. Estou a pedir uma audiência ao ministro das Finanças para lhe explicar isto e lhe dar este argumento: há uma associação disposta a oferecer a obra pronta ao hospital, porquê investir 20 milhões de euros públicos?”, questiona o líder da associação. Porém, o Observador sabe que o Ministério da Saúde não acredita que a associação tenha, efetivamente, o dinheiro para avançar com a obra.

Enquanto se esperam decisões, o serviço de pediatria do Hospital de São João continua a funcionar nos contentores metálicos para onde foi transferida, de forma supostamente provisória, há quase uma década — após uma rivalidade entre unidades hospitalares ter dado origem a um processo de construção de uma nova infraestrutura que, como admitem os próprios intervenientes, se tornou “irreversível”. Uma sucessão de problemas complexos, com o cruzamento de vários interesses locais e com um confronto direto entre financiamento público e privado para a obra. No meio de tudo isto, ao longo de diferentes governos, o Estado não quis tomar posições claras, evitando assim criar problemas e ganhar inimigos que poderiam prejudicar os partidos em eleições  e assim o Estado permitiu que o impasse se arrastasse durante uma década.

Ao fim de uma década de paralisia, o Estado tomou finalmente posição: decidiu que sim, deve haver uma nova ala pediátrica no Hospital de São João; e decidiu que essa ala deve ser financiada com dinheiro público e não com mecenas privados. Mas surge agora um novo problema.

Como se resolve?

Depois de anos de inação por parte do Estado, a resposta à pergunta “Como se resolve?” é: com dificuldade.

Com o Governo disposto a injetar 22 milhões de euros na construção da nova ala pediátrica do São João, o problema estaria aparentemente resolvido e seria apenas uma questão de tempo até a obra avançar e estar concluída. Mas não será assim tão simples.

Primeiro problema. O Estado ainda não chegou a acordo com a “Associação Um Lugar Para o Joãozinho” sobre a titularidade da obra, o que pode criar um problema jurídico de resolução complexa. Pedro Arroja, presidente da associação, continua a defender que a titularidade da obra pertence à associação. “Somos o dono da obra. O que eles [Governo] disseram é uma mentira. Ainda vivemos num Estado de Direito. Não posso simplesmente rasgar o acordo. Tenho protocolos de mecenato, tenho protocolo de construção de 20 milhões, não posso simplesmente pegar na trouxa e ir embora”, defende.

Segundo problema. Para chegar a acordo, Pedro Arroja exige que o Estado, via administração do hospital, ceda o espaço e a obra continue — “até gastar o último tostão dos mecenas que tenho em meu poder para depois poder ir ter com eles e dizer ‘Tudo o que me deram gastei, o Estado quis pagar o resto’”.

Terceiro problema. Pedro Arroja quer que o Estado assuma o contrato que a associação assinou com o consórcio Lúcios–Somague. Algo que, em teoria, é impossível: por lei, o Estado está obrigado a abrir um novo concurso público para adjudicar a obra.

António Oliveira e Silva, presidente do conselho de administração do Hospital São João, reconhece as dificuldades. “Em última análise, o terreno é nosso. Nós cedemos, eles não construíram. Isto levantará problemas jurídicos, que serão resolvidos no sítio próprio”, assume ao Observador.

O presidente do conselho de administração diz não perceber aquilo que diz ser o “finca-pé da associação” e a “sede de protagonismo” de Pedro Arroja, “quando eles não têm dinheiro” para concluir a obra. “Não podemos legalmente passar o dinheiro para a Joãozinho para eles fazerem a obra. Tive várias reuniões e fiz-lhes ver que o objetivo de todos é conseguir uma ala pediátrica nova. Ninguém iria entender que a associação fosse um obstáculo”, explica.

Oliveira e Silva garante que tentou tudo para manter a associação no projeto. “Sugeri que fizessem um contrato de associação connosco, porque a associação pode ser muito útil”, garante. E ainda deixa um desafio: “Faço qualquer coisa para ter a obra. Se a associação mostrar que tem dinheiro para a obra, fazemos de imediato”.

O Observador tentou contactar o Ministério da Saúde, nomeadamente para perceber se há ou não garantias de que a obra vai mesmo avançar num prazo razoável, mas não obteve qualquer resposta até à publicação deste artigo.

Entretanto, esta segunda-feira, o ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, pediu uma investigação à Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS), com o objetivo de “aferir se houve algo que pudesse ter sido feito que não tenha sido feito”. “Não há ninguém que sinta mais incómodo e mais sentido de injustiça do que o ministro da Saúde e o Governo”, disse Campos Fernandes, sublinhando que “vai ser este Governo que vai resolver um problema que se arrasta há 10 anos”. O ministro garantiu ainda que a libertação das verbas para a nova ala pediátrica deverá acontecer nas próximas duas semanas.

Ou seja, ao fim de uma década de paralisia, de avanços e de recuos, o Estado tomou finalmente posição sobre este problema:

  • Decidiu que sim, deve haver uma nova ala pediátrica no Hospital de São João;
  • E decidiu que essa ala deve ser financiada com dinheiro público e não com mecenas privados.

Mas o longo atraso na decisão criou uma nova dificuldade. Apesar de haver projeto e apesar de haver dinheiro público (ou, pelo menos, a intenção de o investir), não há qualquer garantia de que a obra avance nos próximos meses por causa das divergências sobre a titularidade da obra. E tudo poderá acabar em tribunal — durante muitos anos.

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