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Cristóvão Colombo rumou para o Ocidente e encontrou a América. Vasco da Gama rumou para o Oriente e descobriu o caminho marítimo para a Índia. John F. Kennedy apontou para as estrelas e chegámos à Lua. Agora, uma epopeia com mais de sete décadas de sucessos e fracassos está mais perto do que nunca de se realizar: o planeta Marte está finalmente no nosso horizonte. Mas, desta vez, há muita gente de olhos postos nele: o futuro da exploração espacial já não pertence apenas à NASA.
A questão já não é se vamos a Marte: é quando. E nas mãos de quem: enquanto as agências espaciais norte-americanas e europeias, as maiores do mundo, são cautelosas em planear a chegada ao Planeta Vermelho, as companhias privadas dizem que Marte vai tornar-se na nossa nova casa nos próximos trinta anos. O caminho para lá chegar é perigoso, mas há um homem a quem isso pouco importa. Chama-se Elon Musk, é o líder da Tesla e já anunciou os seus planos: “Eu quero morrer em Marte. Só não quero morrer na aterragem”.
Mesmo tendo dado um passo em frente esta terça-feira ao fazer descolar o foguetão mais poderoso do mundo, Elon Musk não é o único na corrida espacial. De um lado da barricada estão outras companhias privadas, como a Mars One, de Bas Lansdorp, a Virgin Galactic, de Richard Brandson, ou a Blue Origin, de Jeff Bezos. Do outro lado estão as agências espaciais públicas, como a NASA nos Estados Unidos ou a ESA, uma agência espacial com esforços de 22 países membros. Há quem defenda que o sucesso da exploração espacial está “num esforço coletivo” entre todas estas entidades. Mas as últimas notícias falam por si: nem todas estão dispostas a arriscar o mesmo.
Mas porquê arriscar? Porquê avançar para ambientes inóspitos e temperaturas geladas? Porquê investir centenas de milhões de euros para sair do conforto de casa e pôr um milhão de pessoas em Marte daqui a quatro décadas? E porquê entrar numa nova era espacial que pode ser tão revolucionária como a que nasceu no seio da Guerra Fria? Porque agora podemos. E porque precisamos.
[Veja o vídeo onde Elon Musk comenta, eufórico, o lançamento desta terça-feira]
Ir a Marte é uma questão de sobrevivência
Em primeiro lugar, os cientistas querem saber se Marte, à semelhança do planeta Terra, alguma vez suportou vida. De acordo com a explicação da NASA, o objetivo de apurar se o Planeta Vermelho tem vida decorre da ideia de que Terra e Marte tiveram evoluções muito semelhantes no início da formação dos planetas, depois do colapso de uma nuvem molecular ter dado origem ao Sistema Solar, há cerca de 4,7 mil milhões de anos. Se os dois planetas forem assim tão parecidos, e se há seres vivos na Terra há pelo menos 3,5 mil milhões de anos, então é possível que também Marte tenha suportado vida em algum momento do passado. Isto é cientificamente fundamental para perceber melhor se a existência de vida é um fenómeno exclusivo do planeta Terra ou se ele pode ser encontrado noutros corpos celestes do espaço.
A segunda razão que torna Marte tão interessante para a exploração humana é compreender como evoluiu e como funciona atualmente o clima naquele planeta, numa estratégia que serve para entender melhor o clima terrestre. Partindo novamente do princípio de que a Terra e Marte são muito semelhantes, os fenómenos climáticos e meteorológicos que ocorrerem no Planeta Vermelho podem ajudar a entender o passado, o presente e o futuro do clima no nosso planeta. Em termos mais específicos, a NASA tem tentado concluir não só os processos envolvidos na evolução climática marciana, mas também se esses processos são universais e se verificam em todos os planetas telúricos — isto é, nos planetas rochosos como a Terra.
Mas não é só a atmosfera marciana que importa aos cientistas: a NASA também pretende entender melhor os processos geológicos que se verificam em Marte, isto é, recolher dados sobre a composição, a estrutura e a história das rochas. Enquanto a Terra é um planeta vivo no sentido em que os movimentos que acontecem em profundidade contribuem para a reciclagem da crosta terrestre — ela destrói-se em algumas partes e renova-se noutras –, o planeta Marte não parece ser tão dinâmico. Entender o porquê de ter estagnado pode esclarecer-nos se esse é o nosso futuro.
A verdade é que, para concretizar estas missões, nenhum astronauta precisou verdadeiramente de ir a Marte: desde 1960 que temos enviado veículos espaciais — desde sondas até rovers — que recolhem dados importantes para saber mais sobre os três pontos enumerados pela NASA. O que nos move realmente até lá é a vontade de preparar uma exploração humana: tudo aquilo que as máquinas têm feito por nós serve para sabermos melhor como chegar a Marte da forma mais segura, mais barata e mais eficiente possível. Até porque não nos basta chegar lá: para muitos cientistas, o que realmente queremos é colonizar Marte. E quanto mais depressa, melhor.
Em entrevista ao Observador em novembro de 2016, Emmet Fletcher, porta-voz da Agência Espacial Europeia, explica porque é que há urgência em chegar a Marte: “É um milagre estarmos vivos, já viu? Todos os dias desafiamos a morte na Terra, enfrentando bactérias e vírus que podem ser fatais. Um dia, talvez não consigamos escapar ao sufoco provocado pela nossa exploração exagerada dos recursos terrestres, nem escapar de um meteorito tão implacável como o que extinguiu os dinossauros. Faltava-nos um programa espacial“.
É a lei da sobrevivência: se a Terra fica exposta a eventos potencialmente catastróficos — meteoritos, sismos, erupções vulcânicas ou doenças, por exemplo — em intervalos de milhões de anos, há que manter Darwin em mente e tornarmos-nos “os mais aptos” para fintar a morte certa. Carl Sagan, o astrónomo e astrobiólogo que mais divulgou a Ciência do espaço, disse que, “em toda a sua caminhada, todas as civilizações planetárias vão ser ameaçadas por impactos do espaço” e, por isso, “todas as civilizações sobreviventes têm o dever de se tornarem exploradoras do espaço”. E não por causa de qualquer romantismo, mas “pela razão mais prática que se pode imaginar: permanecer vivo”.
Emmet Fletcher explicou ao Observador que já temos mecanismos que permitem prever alguns desses eventos, principalmente as ameaças que vêm do espaço. Mas não é o que sabemos que é mais perigoso: é o que não sabemos. “A verdade é que não sabemos como é que as coisas vão correr no Sistema Solar. Mesmo em relação ao Sol, não sabemos tudo sobre como é que ele se comporta. Neste momento, tem estado num período bastante calmo e estável, mas há a possibilidade de isso mudar. E nesse caso nós temos de saber como replicar a Terra noutro lado qualquer“, concretiza o porta-voz da ESA.
Mas nem só de razões práticas se faz o nosso interesse em pisar Marte. Que o diga Elon Musk, CEO da empresa privada de veículos espaciais SpaceX que colocou esta terça-feira o foguete mais poderoso do mundo numa baixa órbita terrestre — e que pôs o seu próprio Tesla Roadster vermelho-cereja a caminho de Marte com um manequim chamado Starman a bordo. “Tu queres acordar todas as manhãs e pensar que o futuro vai ser fantástico. É assim uma civilização exploradora do espaço. É acreditar no futuro e pensar que o futuro vai ser melhor do que o passado. E eu não consigo pensar em nada mais entusiasmante do que ir lá para fora e estar entre as estrelas“, disse Elon Musk numa apresentação na Austrália sobre como, e sobretudo porquê, tornarmo-nos numa espécie multiplanetária, que é a missão principal da companhia.
Outras companhias privadas têm seguido os passos da SpaceX e posto Marte na mira. Os motivos são semelhantes: a Mars One, por exemplo, um projeto com sete anos criado pelo engenheiro holandês Bas Lansdorp para colonizar o Planeta Vermelho, diz que o seu objectivo é “realizar um sonho incrível”. Na missão descrita no site da Mars One pode ler-se: “Enviar uma missão tripulada a Marte é uma aventura fantástica. Imagine viver noutro planeta, a milhões de quilómetros da Terra, olhar para o céu com o conhecimento de que uma das ‘estrelas’ é realmente o planeta em que nasceu. Quem pode imaginar o incrível sentimento de ser o primeiro humano na História a sair da cápsula e deixar uma pegada na superfície de Marte?”.
Mais preparados para Marte do que em 1969 para a Lua
Mudam-se os tempos, mas as vontades não mudaram muito: os meios e os objetivos é que sim. Ao Observador, Emmet Fletcher garantiu que estamos tecnologicamente mais preparados agora para chegar a Marte algures nos próximos dez anos do que estávamos de chegar à Lua em 1961, quando John F. Kennedy disse que enviaria astronautas ao nosso satélite natural e que os traria de volta e em segurança. E também nessa altura o então Presidente dos Estados Unidos explicou que o motivo para irmos até lá era “não por ser fácil, mas exatamente por ser difícil“. Claro que não era apenas a sede pela descoberta e pela curiosidade que movia os norte-americanos naquela altura: estávamos em plena Guerra Fria e a conquista espacial era onde Estados Unidos e União Soviética demonstravam o seu poder.
[Veja o vídeo onde John F. Kennedy anuncia a ida à Lua]
Hoje, a urgência é outra. E os obstáculos que nos travam também. “Quando Kennedy disse que enviaria astronautas à Lua, a percentagem de investimento do produto interno bruto dos Estados Unidos era uma imensidão. Nada como é agora. Esse é o nosso maior problema, porque a engenharia é algo que podemos criar. A tecnologia que temos ao nosso dispor já não é motivo de preocupação. Os recursos financeiros são“, admitiu o porta-voz da ESA ao Observador. Há formas de ultrapassar isso: a viagem a Marte não pode ser uma corrida — como foi a ida à Lua nos tempos da Guerra Fria –, tem de ser “um esforço cooperativo”.
Esse esforço já está a ser posto em prática, visto que muitas das missões que se estão a desenrolar no espaço são o resultado de parcerias entre agências nacionais e internacionais e até de empresas privadas. A ExoMars, por exemplo, que tenciona explorar alguns dos mistérios marcianos, é um projeto conjunto entre a ESA (com os Estados-membros europeus) e a Roscosmos, a agência espacial russa. O Telescópio Espacial James Webb, sucessor do Telescópio Hubble, é uma missão conjunta da ESA, da NASA e da Agência Espacial Canadiana. A falecida Rosetta, uma sonda enviada ao cometa 67P para encontrar algumas respostas sobre a origem da vida, era composta por materiais norte-americanos e alemães. “Tudo isto só é possível se houver um consenso político nesse sentido, principalmente quando temos os olhos postos em Marte”, disse ao Observador o porta-voz da ESA.
As companhias privadas têm facilitado muito a vida a quem está a tentar levar a humanidade para Marte. A SpaceX de Elon Musk começou por criar o Falcon 9, um foguetão reutilizável que é o primeiro capaz de chegar à baixa órbita terrestre e regressar inteiro e em segurança ao planeta com condições de voltar a ser usado noutras missões espaciais. Desde 2012 que o Falcon 9 coloca satélites no espaço e viaja até à Estação Espacial Internacional para transportar carga tanto para lá como para cá. E isto é um grande passo para a exploração espacial, visto que a reutilização de veículos espaciais é essencial para que os custos financeiros de uma missão baixem abismalmente.
[Veja o vídeo do lançamento do Falcon Heavy esta terça-feira]
Outros foguetões reutilizáveis foram criados desde então: o concorrente mais direto do Falcon 9 da SpaceX é o reutilizável Delta IV Heavy da United Launch Alliance, uma companhia fundada pela Boeing e pela Lockheed Martin Space Systems em 2006 para desenvolver serviços de lançamento de aeronaves ao governo dos Estados Unidos. Mas a SpaceX deu um passo em frente esta terça-feira ao lançar com sucesso aquele que é agora o foguete mais poderoso do mundo a chegar ao espaço: o Falcon Heavy transporta três vezes mais carga do que o Delta Heavy e não só é capaz de transportar materiais e pessoas para a baixa órbita terrestre, como também de as levar até Marte ou mais além. E é no Falcon Heavy que está a solução para o problema levantado pelo porta-voz da ESA: enquanto o Delta Heavy precisa de 390 milhões de dólares para levantar voo e regressar, o Falcon Heavy precisa de apenas 90 milhões. É o foguetão mais eficiente e económico da atualidade.
Marte é “um risco mortífero” que estamos dispostos a correr
Portanto, Emmet Fletcher tinha razão: a engenharia arranja-se. Pelos vistos, o dinheiro também — e até pode ser preciso menos do que há dez anos. Mas há outro problema mais complicado de resolver: a agressividade do planeta Marte e a violência de uma viagem até lá. Naquele mundo a 60 milhões de quilómetros de nós, um ser humano ficará exposto a uma dose de radiação duzentas vezes maior do que aquela a que está exposto num ano na Terra, o suficiente para alterar a cadeia de ADN e as células cerebrais. Os ossos começariam a definhar até perderem dez por cento da sua massa original, os músculos que suportam os nossos joelhos e o fémur minguariam na viagem até Marte por não estarem sujeitos à força da gravidade e os líquidos corporais não seriam drenados. Estar em Marte é mais severo do que ir para a Antártida sem proteção ou do que tentar subir o Evereste sem máscara de oxigénio. É mortífero.
A NASA é quem melhor explica as consequências de uma estadia prolongada no espaço na viagem até Marte: durante os seis meses de viagem, o corpo humano não estaria sujeito a nenhuma força gravítica, mas ao pisar solo marciano a gravidade seria um terço daquela que experimentamos na Terra. Isto pode provocar desorientação espacial, falta de coordenação (ao ponto de não ser capaz de levar a mão até à cabeça), desequilíbrio, fraqueza na locomoção e enjoos. Sem gravidade, os ossos começam a perder os minerais e ficam sem 1% de densidade em cada mês que o corpo passa no espaço, o mesmo que uma pessoa idosa perde por ano na Terra. Mesmo de regresso a casa, essa perda de densidade nunca será recuperada, por isso os astronautas teriam maior risco de fraturas e de desenvolver osteoporose. Os músculos começam a falhar porque são pouco exercitados e o sistema cardíaco fica fragilizado porque o coração é incapaz de bombear sangue com a mesma facilidade. Nem o sangue nem a linfa ou outros fluidos do corpo chegariam com normalidade à cabeça, o que podia causar problemas de visão. É também por isso que pode desenvolver pedras nos rins por desidratação e por causa das partículas de cálcio vindas dos ossos que ficariam perdidas em circulação no organismo.
Além dos problemas físicos, a saúde mental dos astronautas que se aventurarem até Marte também vai sofrer muito. A partir de certa altura, as capacidades cognitivas entram em declínio e até a capacidade de interação fica enfraquecida. O ritmo circadiano fica de tal modo afetado que se podem desenvolver distúrbios de sono, alguns dos quais se podem agravar na chegada a Marte por causa dos 38 minutos a mais que dura um dia no planeta. A depressão é outro problema possível: o astronauta vai ficar num espaço muito pequeno, pouco ruidoso, praticamente isolado e confinado. A monotonia pode levar ao tédio, mas as cargas de trabalho pesado podem levar a situações de stress. E é possível que muitos destes problemas não se resolvam no regresso a casa: os humanos mais isolados têm maior probabilidade de desenvolver comportamentais desviantes ou distúrbios psiquiátricos.
Mas a principal ameaça de uma missão espacial a Marte é a radiação: mesmo dentro de uma estação, os astronautas recebem mais de dez vezes a radiação do que o que ocorre naturalmente na Terra. Fora do campo magnético e longe da atmosfera do nosso planeta, o corpo humano fica exposto a radiação cósmica capaz de aumentar o risco de desenvolver cancro, danificar o sistema nervoso central, alterar as funções cognitivas, reduzir a função motora e desencadear mudanças comportamentais. A radiação cósmica é tão forte que, sem os escudos que temos naturalmente na Terra, ela pode alterar a informação genética que transportamos nos núcleos das células.
Nem tudo são más notícias. Conseguimos descobrir algumas soluções para estes problemas graças à “One Year Mission” da NASA, uma experiência de um ano com dois astronautas gémeos como protagonistas. Em março de 2015, o astronauta Scott Kelly juntou-se ao cosmonauta Mikhail Kornienko e participaram numa investigação intensiva a bordo da Estação Espacial Internacional, onde ficaram durante 340 dias, ou seja, duas vezes mais do que uma estadia normal no espaço. A agência espacial norte-americana tinha por objetivo adquirir mais conhecimento médico, psicológico e biomédico sobre o que enfrenta o organismo humano nos 30 meses que passaria no espaço para chegar a Marte.
Trio de astronautas regressa à Terra ao fim de 173 dias no espaço
Em Terra ficou Mark Kelly, irmão idêntico de Scott que serviu de grupo de controlo do estudo: quanto Scott regressasse à Terra, a sua condição física seria comparado à de Mark para descobrir como é que aqueles 340 dias mudaram o organismo do astronauta. Uma das principais diferenças apontadas entre os dois veio de uma observação a nível celular: os telómetros de Scott, as extremidades dos cromossomas que protegem a integridade do ADN, ficaram mais longas do que os de Mark. A estrutura óssea de Scott também se alterou e ficou mais fraca do que os ossos do irmão. Mas mais impressionante foi o facto de a capacidade cognitiva do astronauta ter ficado mais fraca do que a de Mark: a velocidade e precisão de raciocínio de Scott Kelly era muito inferior à do irmão que ficou na Terra.
É duro chegar a Marte, como se vê, mas é ainda mais duro estar lá. O planeta é árido, rochoso e muito frio: a temperatura média é de -63ºC, mas pode arrefecer até aos -140ºC e nunca vai além dos 30ºC de temperatura máxima. Enquanto a atmosfera terrestre é maioritariamente composta por azoto e oxigénio, 96% da atmosfera marciana é dióxido de carbono: o azoto, essencial aos humanos, só simboliza 2% do ar em Marte. Esse é o primeiro grande problema. O segundo é o pó avermelhado que compõe a superfície do planeta: essa espécie de areia marciana é composta por perclorato de sódio, um químico a que o excesso de exposição na Terra já se provou estar relacionado com problemas de tiróide, a glândula responsável por produzir hormonas que regulam o metabolismo e as funções corporais, desde a fome ao sono.
Outro desafio que teriam os primeiros astronautas a chegar a Marte seria a atmosfera: sem um fato espacial, a saliva, lágrimas, mucosas da pele e a água dos pulmões evaporariam, o que não causaria uma morte imediata, mas antes lenta e dolorosa. Isso acontecia por causa do limite de Armstrong, uma medida física que determina a altitude em que a pressão atmosférica se tornaria tão baixa que a água ferveria à temperatura normal do corpo humano, que são 37ºC. O limite de Armstrong é de 0,0618 atmosferas padrão, mas em Marte o limite baixa a pique para os 0,0224. Em Marte, o organismo humano desprotegido transformava-se numa passa. Mesmo com um fato, o corpo humano ficaria exposto a praticamente todos os perigos que enfrentava dentro da nave espacial.
É um cenário assustador, mas que a ESA diz estar preparada para enfrentar: “Enfrentamos riscos, absolutamente. É sempre um risco ir ao espaço, mas é um risco que estamos dispostos a correr. O perigo é necessário para fugir ao comodismo: estamos fora do nosso ambiente natural, estamos sentados nas máquinas mais complexas alguma vez construídas pelo ser humano. Estas máquinas queimam duas centenas de toneladas de combustível em dois minutos, por isso há um risco”, admite Emmet Fletcher ao Observador.
Big Fucking Rocket é o nosso “autocarro espacial”
Ainda assim, a agência espacial europeia é tão cuidadosa como a norte-americana nos planos para chegar a Marte e acredita que, antes de ir ao planeta, temos de voltar à Lua. A NASA pretende farejar Marte primeiro, enviando astronautas apenas para o orbitar. E a ESA aprendeu recentemente que ainda não está pronta para dar um passo em frente: embora a sonda TGO da missão ExoMars tenho entrada corretamente na órbita de Marte, a plataforma Schiaparelli não aterrou como era planeado. O pára-quedas soltou-se cedo demais e a máquina entrou em queda livre mais cedo do que era suposto. Estilhaçou-se a 60 milhões de quilómetros da Terra e transformou-se apenas numa mancha negra nas imagens dos satélites que agora orbitam o planeta. Os cientistas já ultrapassaram a amargura da falha: agora querem aprender com os erros até 2020, altura em que os europeus vão lançar um Rover no solo marciano.
Além disso, têm outro corpo celeste em mente: “Uma das propostas como parte da exploração é, na verdade, ir à Lua primeiro. Claro que isto é tudo discutível e todas as agências espaciais têm as suas próprias opiniões, mas uma das coisas que estamos a considerar seriamente é ensaiar a nossa ida a Marte usando a Lua como uma base de testes“, explicou Emmet Fletcher ao Observador.
A SpaceX é mais ambiciosa. Elon Musk anunciou em setembro de 2016 que vai levar os primeiros 100 humanos a Marte em 2022 e que, até aos anos 2060, vai haver um milhão de pessoas lá a viver. Para tal deposita todas as esperanças no Falcon Heavy lançado esta terça-feira ou no próximo grande foguetão que está a ser criado neste momento nos escritórios da empresa: o BFR, sigla para “Big Fucking Rocket”, que Elon Musk promete ultrapassar finalmente o Saturn V da NASA no título de maior foguetão de sempre. Eis a ideia de Elon Musk: primeiro, o BFR vai a Marte para confirmar a existência de fontes de água e para largar as primeiras infraestruturas necessárias à vida humana num novo planeta. Depois, o foguetão regressa à Terra mas é reutilizado em 2024 para uma missão com carga e tripulação enviada novamente para Marte. Para que tudo isto corra bem, o BFR tem de furar a atmosfera marciana a 7,5 quilómetros por segundo.
[Veja no vídeo Elon Musk a anunciar os seus planos]
O escudo térmico do veículo é projetado para suportar várias entradas, mas é possível que fique desgastada por causa das altas temperaturas. Isso significa que a SpaceX precisaria de gastar dinheiro adicional para reparar o escudo, mas até para isso diz estar preparado: em breve, o Falcon 9, o Falcon Heavy e o Dragon vão ser abandonados e todos os recursos financeiros investidos nesses foguetões vão ser desviados para o BFR. Mas Elon Musk não quer que o BFR seja apenas um autocarro espacial: quer que esse foguetão seja um substituto do TGV e possa ser usado na Terra para que uma viagem de longa distância entre quaisquer dois pontos do planeta não demore mais do que 30 minutos.
Uma epopeia com 70 anos
A primeira vez que alguém criou um verdadeiro plano para ir a Marte foi em 1947. Wernher von Braun era um brilhante especialista alemão em foguetões que tinha sido funcionário do regime nazi, mas que nos finais da II Guerra Mundial foi enviado para o deserto do Novo México para fazer testes ao foguete espacial German V-2, desta vez ao serviço dos Estados Unidos. Desanimado e com pouco trabalho, von Braun escreveu o romance Das Marsprojekt (O Projeto Marte). Fazendo uso de todo o conhecimento científico que tinha — foi um dos pais do foguetão Saturn das missões Apollo –, o livro de von Braun tinha uma narrativa pobre, mas estava recheado de pormenores científicos teóricos perfeitamente plausíveis.
Pouco tempo depois, a NASA (Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço) foi criada e a agência começou imediatamente a pensar numa viagem a Marte, algo que ficou documentado num estudo sobre o chamado “paradigma de von Braun”. Os foguetões construídos nessa altura pela NASA eram mais fracos, mas foram ainda assim testados na Terra, embora nunca tenham chegado ao espaço. Conscientes agora de que não poderiam enviar humanos para Marte, nem mesmo apenas para o orbitar, a NASA começou a planear o Mariner 4, a nave espacial que captou as primeiras imagens de Marte enviadas do espaço. Mas, surpresa das surpresas, as imagens eram pouco entusiasmantes: Marte parecia apenas lamacenta. Ninguém sabia que ali estava o maior vulcão do Sistema Solar.
Depois veio a Guerra do Vietname, cortes no orçamento e um incêndio na plataforma de lançamento da Apollo 1. O congresso decidiu deixar de fornecer dinheiro para uma missão tripulada a Marte e preferiu apostar tudo numa outra missão tripulada à Lua, que provou ser bem sucedida. Foi preciso chegar a 1985 para que Buzz Aldrin, um dos astronautas que tinha alunado, tivesse uma nova ideia: queria duas naves espaciais no espaço para tentar perceber quando é que Marte e a Terra ficavam alinhadas. Quando essa janela de 26 meses se abrisse, a NASA começaria a enviar astronautas para Marte e para uma das luas, Phobos. Mas com um pormenor: esses astronautas não iam apenas visitar Marte. Iam colonizá-lo.
Pelo menos por enquanto, o plano de Buzz Aldrin não vai ser posto em prática. Em cima do estudo do astronauta, ficou outro: o de George H.W. Bush, chamado Space Exploration Initiative (SEI), que pretendia pôr o Homem em Marte em 2019 para celebrar os 50 anos da chegada à Lua. Mas Bush nunca investiu muito nesse plano e colocou a maior parte das decisões do investimento espacial na mão de Dan Quayle, o vice-presidente. A palavra de Bush teve menos impacto que a de John F. Kennedy nos anos 60 e o plano também foi abandonado por desentendimentos entre a NASA e a Casa Branca: a agência espacial queria um cheque em branco, mas o governo não o queria dar.
Agora, a NASA tem outra missão em mãos: Mars Direct. Nessa missão, pensada por dois engenheiros aeroespaciais, as primeira tripulações ficariam 500 dias em solo marciano antes de regressar à Terra. Mas a outrora ambiciosa agência espacial norte-americana parece estar a recuar neste plano também: Robert Zubrin, engenheiro e presidente da Mars Society, disse que a NASA “já podia estar em Marte desde 1999 se assim tivesse escolhido“. O futuro das nossas missões a Marte podem estar cada vez mais em companhias privadas como a Planetary Society, a Mars One, a Lockheed Martin, a Inspiration Mars Foundation — ou a SpaceX de Elon Musk, claro.