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"A praxe é para continuar"

Um mês depois de Rui Relvas ter chegado à Universidade da Beira Interior para estudar Ciências Farmacêuticas, o Observador voltou a encontrar o jovem e acompanhou a "latada".

“Puxa, Marta!”

A Marta está vestida com uma bata de tecido roxo e anda curvada há horas. Depois do berro tenta empurrar o carro alegórico do curso de Ciências Farmacêuticas, todo enfeitado com figuras gigantes feitas de papelão, gesso e tábuas de madeira. O colega que lhe dá ordens segue de pé, despreocupado. Veste o traje típico da Universidade da Beira Interior (UBI) e grita mais uma vez.

Coube a Marta e a outros colegas a tarefa de levar o carro com a força do corpo até ao largo onde se situa a Câmara Municipal da Covilhã e onde termina o cortejo da “latada”. Na parte da frente desta tábua com rolamentos enfeitada estão três cordas que são puxadas por três “caloiros”. Conduzir um carro tão pesado e instável pelas ruas íngremes da cidade exige um esforço brutal. Como recompensa, os novos estudantes têm direito a uma ração, atribuída pelos mais velhos. Entre gritos e berros, os “trajados” colocam pequenas gomas nas bocas dos “caloiros”, dão-lhes álcool à boca e borrifam-nos com gotinhas de água esguichadas de garrafas de plástico furadas para o efeito.

A encerrar o desfile de Ciências Farmacêuticas vai Rui Relvas, que segura nas mãos uma longa vara no topo da qual esvoaça uma bandeira com o símbolo e as cores do curso. Ao longo da tarde, Rui trocou várias vezes de posição com os colegas, entregando-lhes a bandeira e recebendo um ferro usado para bater num barril de latão. Enquanto os restantes caloiros cantam e dançam, agitando garrafões de plástico cheios de um metal que produz um som carnavalesco, Rui concentra-se nas tarefas que tem em mãos e raramente grita.

Rui Relvas, ao centro, carregando a bandeira do curso

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Rui está na Covilhã há cerca de um mês. O quarto na casa dos pais, em Castelo Branco, foi substituído por uma cama numa residência, num quarto partilhado com um colega. A tranquilidade da cozinha com uma mesa e quatro cadeiras onde jantava todos os dias deu lugar a um espaço pequeno onde é possível cozinhar, mas que serve 60 estudantes. A mudança de cenário provocou uma situação algo estranha para Rui, que sente já não ter uma casa. “Não me sinto em casa aqui. Nunca vai ser a minha casa. É só um quarto. Mas se for para Castelo Branco também não me sinto em casa”, diz o estudante. Porque já não se sente em casa na cidade onde nasceu? “Tenho as minhas coisas todas aqui. Mesmo que vá embora ao fim de semana, volto sempre”, responde.

Desconhece ainda se terá direito a uma bolsa, uma vez que os resultados são divulgados em janeiro. Só nessa altura saberá se terá de pagar a residência. Enquanto não há bolsa, Rui recorre ao dinheiro que poupou durante os três anos de Secundário. Estas incertezas e indefinições não impediram Rui de começar a desenhar uma rotina, nem dificultaram a adaptação. A mãe, Maria do Céu Relvas, que durante os primeiros meses da filha na Universidade tinha de se deslocar à Covilhã todos os dias para lhe fazer companhia, pensa que Rui está a lidar com a mudança “de forma mais fácil”.

O que continua a preocupar o aluno aplicado que terminou o secundário com 182 valores são os estudos. Os colegas mais velhos falam-lhe dos “cadeirões de 3º ano”, dos dias em que é necessário decorar 120 medicamentos de uma vez e das 30 frequências em 28 semanas. Rui fica assustado.

“Praxe vs Media”

No centro da Covilhã, as ruas foram fechadas ao trânsito para acolherem o cortejo da “latada” e os familiares dos estudantes que assistem nos passeios ao desfile dos carros. Há palavras de ordem contra as propinas, o reitor da Universidade ou o desemprego e a emigração. Mas o tema deste ano parece ser outro.

A mascote do curso de Design Industrial é um astronauta gigantesco que pisa e esmaga um modelo de um televisor onde esta pintado um símbolo que se assemelha ao logotipo da TVI. Um dos “caloiros” segura um cartaz onde se lê: “Com o nosso astronauta a andar aos media vamos mostrar que a praxe é para continuar”. Os alunos de Engenharia Aeronáutica optaram por uma abordagem menos moderna. Vestidos de cruzados, parecem querer ilustrar que travam uma luta. No carro foi montada uma câmara de televisão de cartão e tecido com a sigla “TBI” e uns longos braços que seguram uma foice. Tanto a objetiva como a foice estão dirigidas a um traje negro. Por trás, uma lápide onde se lê: “RIP praxe. Século XIII-2014”. Alguns caloiros transportam mensagens como: ““Mãe, estou na TVI” ou “Praxe vs Media. Round 1. Fight”.

Não existe nenhuma referência direta aos acontecimentos de dezembro de 2013, no Meco, onde seis estudantes pertencentes ao Conselho Oficial da Praxe Académica (COPA) da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias morreram afogados. Em vez disso, ataca-se a cobertura mediática dessas mortes e, em especial, a TVI. Rui diz ao Observador que os alunos chegaram a pensar criar “um televisor gigante com uma onda lá dentro” para utilizar como mascote, mas acaram por fazer uma crítica ao reitor da UBI, que acusam de ser anti-praxe por não ter decretado que não havia aulas durante a semana da receção ao caloiro.

5 fotos

No último mês, Rui foi praxado ou participou em atividades de praxe praticamente todos os dias. Houve dias em que a praxe começava às 9h e terminava às 2h, sendo apenas interrompida pelas aulas dos “caloiros”. “Levavam-nos à porta da sala de aula e depois iam-nos buscar”, diz Rui, que garante não ter faltado a nenhuma aula devido a estas atividades.

Na turma houve uma rapariga a declarar-se anti-praxe. Duas outras colegas deixaram de aparecer nas praxes. Rui diz que nenhuma delas foi prejudicada por não participar e que a única consequência desta atitude foi não terem socializado tanto com os colegas. “Enquanto nós ficámos a conhecer-nos melhor, não as conhecemos a elas”, diz.

Duas semanas depois de se ter mudado para a Covilhã, também Rui pensou declarar-se anti-praxe. E está convencido que alguns dos estudantes mais velhos preferiam que isso tivesse acontecido. Isto porque Rui sofre de asma, o que, na sua opinião, fez os “superiores” temerem algum tipo de responsabilização caso algo lhe acontecesse. Um dia, Rui atrasou-se para a atividade de praxe e apressou-se para não prolongar o atraso. Quando chegou junto dos colegas estava visivelmente cansado e acabou por sentir-se mal. “Se calhar era melhor declarar-se anti-praxe”, ouviu de uma “superior” que o mandou ficar de joelhos. “Senti-me frustrado. Quis levantar-me e abandonar aquilo. Mas acabei por ignorar”, diz Rui, que acabou por não desistir devido à insistência de outros colegas. “Fiquei por eles. Senti que se preocupavam comigo. Preferi concentrar-me nessas pessoas”. O pai, Francisco Relvas, não gostou do episódio e disse ao filho que devia ter saído naquele momento.

A jovem acabou por ser repreendida depois de alguns colegas de Rui terem apresentado queixa. Mas Rui não chegou a queixar-se oficialmente. Não voltou a ser praxado pela colega em questão e diz que os dois mal se falam.

Perto das 19 horas, qualquer organização que pudesse existir no cortejo não resistiu ao calor e à bebida. Jovens cambaleantes, apoiados nos amigos, furam o desfile e dirigem-se às tendas montadas pela Cruz Vermelha. Alguns berram sozinhos, sem um alvo concreto para a sua raiva. Esmagam garrafas de cerveja com os pés, afastam garrafões de plástico ao pontapé. Parecem sedentos de destruição. O curso de Rui é o primeiro a chegar ao largo da Câmara Municipal. Depois de dois “caloiros” de Ciências Farmacêuticas subirem a um palco improvisado para cantarem uma música cuja letra é impossível de decifrar pela plateia, os estudantes afastam-se para uma rua lateral, levando com eles o carro alegórico. Vão matar a sede.

Como ditadores apanhados pela fúria revolucionária, as mascotes instáveis são derrubadas. Pelo chão ficam estruturas de arame, papel e madeira. Alguns estudantes procuram guardar as cabeças. Outros destroem um qualquer membro decepado que conseguiram apanhar. Pedaços de contraplacado voam pelo ar e aterram nas ruas de granito, com os pregos enferrujados visíveis. Enquanto alguns jovens saltam enraivecidos em cima do carro, outros choram e abraçam-se.

Rui observa quieto, sentado num banco. Os colegas que passam por ele mostram-se preocupados, repetem a pergunta: “Estás bem?”. Rui diz que está cansado. Ao Observador, procura explicar o que está a acontecer. “Construímos o carro para a latada e sabemos que agora acabou tudo. Estamos a libertar a raiva de tudo o que fomos acumulando”. Desde o momento em que o carro alegórico passou a rotunda junto à Câmara, os “caloiros” puderam tratar os “superiores” por tu pela primeira vez, diz. Na voz e na expressão de Rui, que diz ter gostado da praxe, há uma nota de alívio. Os estudantes mais velhos já os avisaram que podem continuar a praxar os “caloiros”, se assim o entenderem. “Se eles quiserem podem praxar-nos, mas acho que é proibido”, diz Rui. “Dizem-nos isto para não lhes perdermos o respeito”.

 

Direito de resposta

 

29/10/14 

Relativo ao artigo publicado no diário online “Observador”, no dia 28/10/14, “A praxe é para continuar” assinado por Catarina Fernandes Martins e ao abrigo da Lei de Imprensa, no2/99, Capítulo. V, Secção I, Artigos 24, 25 e 26 (relativos ao direito de resposta) a Comissão de Latada do curso de Ciências Farmacêuticas da Universidade da Beira Interior faz saber que: 

Preâmbulo:

a) A Comissão de Latada é um órgão administrativo das atividades relativas à praxe e Latada, eleito para um só mandato, entre os alunos que frequentem o quarto ano do Mestrado Integrado em Ciências Farmacêuticas.

b) Esta Comissão tem como primário objectivo a dinamização e organização de atividades de integração aos novos alunos do curso, bem como a sua integração na cidade da Covilhã, nomeadamente conhecer as instalações físicas da Universidade, localização dos serviços, cantinas e faculdades, garantindo que os novos alunos chegam às suas aulas, nas salas corretas a tempo e horas em todas as situações. A Comissão acompanha estes alunos durante as seis semanas em que decorrem as atividades de praxe e de preparação da Latada. Este período é determinado pelos órgãos superiores da Universidade. Esta época culmina com a tradicional Latada, evento acarinhado por todos os Covilhanenses como um dia de festa e expoente máximo da integração dos novos alunos, vulgo caloiros, no curso e na Universidade. Finda esta a Comissão dá por concluída a sua missão.

c) A Comissão responsabiliza-se pelos novos alunos, estando as suas obrigações, deveres e direitos bem descritos no Código de Praxe da UBI.

Assim sendo é sua responsabilidade garantir que medicações são tomadas a tempo e horas, que a saúde e bem estar dos novos alunos é respeitado, sendo sempre instruídos para se fazerem acompanhar de a medicação, comida e agasalho adequado às noites frias da cidade neve.

Relativo ao artigo em questão, a supracitada comissão repudia veementemente numerosas afirmações, acreditando que está posta em causa a forma como o digno curso de Ciências Farmacêuticas trata e acolhe os novos alunos.

a) A Latada e atividades de praxe NÃO são de carácter obrigatório. Ninguém é nunca segregado por tal. No entanto é convicção da Comissão que tais atividades ajudam na integração dos novos alunos.

b) O tom depreciativo encontrado ao longo de todo o artigo mostra uma atitude de parcialidade, indigna da prática de Jornalismo.

1o) O carro de latada é construído ao longo de seis semanas sobretudo pelos caloiros, mas com o apoio incansável dos “superiores”, colegas mais velhos. Trata-se dum carro seguro, com uma estrutura metálica alumínio, resiliente e testada para o efeito a que se destinava, não sendo remotamente uma “tábua com rolamentos”.

2o) Tal carro é verificado previamente relativo a estabilidade, peso e dimensões, e esforço foi feito para garantir que a segurança de todos não é posta em risco.

 Assim sendo o carro não é nem “instável” nem “pesado”.

3o) Num dia de calor como o que se tratou, é sempre preocupação dos colegas mais velhos, repare-se, futuros profissionais de saúde, que o bem estar dos novos alunos é acima de tudo sempre mantido. Assim sendo é comprada comida, nomeadamente gomas, chocolates e bolachas, para garantir que ninguém se sinta mal durante o desfile. É também comprada água, que tendo acabado durante o desfile, foi imediatamente restabelecida. Dizer que os “trajados” dão “ração” aos caloiros durante o desfile é degradante para os mesmos, e demonstra a enorme falta de conhecimento do cuidado que esta Comissão tem com os seus caloiros.

4o) O aluno Rui Relvas, entrevistado para o artigo em questão é um colega estimado por todos, cuja doença foi tida em consideração na escolha das funções desempenhadas durante a latada. 

5o) É tida em consideração a idade dos novos alunos. A latada é de facto uma festa na qual a abundância de álcool é notória. Ninguém é obrigado a beber, e no que diz respeito ao digno curso de Ciências Farmacêuticas tal é devidamente cuidado.

6o) A Comissão não se revê na descrição feita pela jornalista acerca da fase final da latada. O palco da leitura do discurso não é uma “estrutura improvisada”. O curso de Ciências Farmacêuticas chegou em primeiro à Câmara, pois foi o vencedor da Latada de 2013, algo atingido com muito trabalho, esforço e dedicação. A Comissão repudia totalmente os últimos parágrafos do texto, que descrevem os estudantes como “ditadores”, afetados por “fúria revolucionária” e que “saltam enraivecidos em cima do carro”.

Tal como já foi referido a Latada marca o fim do período do praxe (tecnicamente termina apenas no último dia da recepção ao caloiro, se não for prolongada por editus.) e é, de facto o expoente máximo da praxe Ubiana, o ponto alto duma relação que se estabelece com os novos alunos desde o primeiro dia e que se pretende que dure para sempre. É uma festa, na qual certamente são cometidos alguns excessos.

 Ainda assim a forma como é retratada a praxe e a Latada, na perspetiva de Ciências Farmacêuticas, é sem dúvida alguma, desfasada da realidade e apresenta uma perspetiva parcial de alguém que não viu, ou não quis ver toda a realidade a si inerente. Por estes motivos, reiteramos, a Comissão de Latada de Ciências Farmacêuticas repudia veementemente o conteúdo do artigo em questão, pedindo que seja retratada com dignidade e parcialidade. 

A Comissão pede à Jornalista uma correta narração dos factos, com a imparcialidade que lhe compete, e que apresente as suas desculpas a todos os estudantes ofendidos com a forma que a sua Latada foi noticiada. Ainda ao abrigo da lei supracitada pede-se ainda que este direito de resposta seja publicado em local visível.

 

Pela Comissão de Latada,

 Rodrigo Carvalho Ramos

Mestrando de Ciências Farmacêuticas, na Universidade da Beira Interior

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