Uma versão moderna de ‘E tudo o vento levou’, dizem uns. Um estilo que se aproxima da saga ’50 Sombras de Grey’, dizem outros. Uma ficção inspirada no romance real entre a autora, Talulah Riley, e o bilionário fundador da Tesla, suspeitam muitos. A britânica de 31 anos – que é também uma popular atriz em Hollywood e dona de uma startup em Silicon Valley, a Forge – não contraria nenhuma destas avaliações. E, acima de tudo, não nega que este seu primeiro romance (no original “Acts of Love”) se tenha baseado na relação que manteve com o bilionário Elon Musk, criador da marca de automóveis elétricos Tesla, dono de uma fortuna avaliada em 12 mil milhões de dólares, com quem esteve casada e de quem se separou duas vezes.
“As boas raparigas não ganham ao Amor – As más não desistem nunca” é uma história de amores modernos centrada em Bernadette St. John, uma jornalista implacável, Tim Bazier, o seu editor, Elizabeth Wentworth, uma britânica ingénua e de coração puro – e Radley Blake, um temido empresário de Silicon Valley. O livro, editado pela Asa, chega às livrarias portuguesas na próxima terça-feira, dia 28. O Observador avança a pré-publicação do primeiro de dez capítulos do livro.
CAPÍTULO 1
No rosto, Bernadette St John tinha toda a simetria necessária, todos os indicadores de juventude e feições hiperfemininas tão admiradas pelo sexo oposto. No entanto, estas maravilhas escondiam uma mente dominada por um preconceito venenoso: um desdém pelos homens, profundo e muito real, que ia além de tudo o que se podia considerar razoável ou saudável. Era um preconceito formado lentamente, ao longo de anos de desilusões.
Esta derrota era tanto parte dela como o rosto cativante, com queixo pontiagudo, nariz arrebitado e maçãs do rosto proeminentes. Tinha olhos cor de avelã; acobreados com certa luz, verdes e enfeitiçantes com outra, raramente apenas castanhos. Nenhum homem que fitasse aqueles olhos adivinharia os sentimentos de hostilidade que eles ocultavam; pelo contrário, a maioria ficava com uma impressão de sensualidade jovial, de feminilidade suave, da promessa de um amor compreensivo.
Estava habituada a chegar a festas sozinha e só temia ligeiramente essa perspetiva, mas na noite da festa de Natal anual de Tim Bazier a sua fachada geralmente estoica revelava sinais claros de inquietação. Estava enjoada. O tecido fino do vestido, embora reduzido, colava-se ao suor frio que lhe molhava as costas e as axilas. E, o mais desconcertante de tudo, lágrimas ameaçavam formar-se por trás das pestanas alongadas pelo rímel.
Bernadette, infelizmente, acreditava estar apaixonada pelo anfitrião da festa, um homem demasiado inseguro e tímido para uma relação prática. A convicção, contudo, era bastante inabalável, e a misandria de Bernadette estendia-se a todos os homens exceto este.
Claro que Bernadette não nascera com uma patologia completamente formada; tal como todas as pessoas com comportamentos desviantes, havia razões para o seu preconceito, uma narrativa que podia, até certo ponto, justificar este desdém. O pai fora um homem muito atraente, alto e moreno, e encantador quando lhe convinha, mas igualmente maldoso quando estava para aí virado.
Tinha o hábito de fazer comentários profundamente perturbadores e humilhantes capazes de alterar toda a realidade de Bernadette. Dizia à mulher e à filha:
– As mulheres só são emancipadas porque os homens no ocidente decidiram que o deviam ser. Mas podemos mudar de ideias a qualquer momento. As coisas não são assim na maior parte do mundo! Lembrem-se, estão dependentes da benevolência dos homens.
Ou então, dizia a Bernadette que a sua querida mãe era uma puta, que «todas as mulheres são putas. Só depende se as temos em aluguer de curto ou longo prazo.»
Os maus-tratos eram insidiosos e constantes, e teria sido difícil escapar incólume a um ambiente tão esmagador, mas Bernadette era uma criança precoce, com a teimosia do progenitor, e assim que percebeu que as convicções do pai não eram verdades absolutas e
podiam ser questionadas, virou-lhe costas. Sabia, empiricamente, que as palavras que ele escolhia para descrever a mãe – «ingrata», «exigente», «dependente», «lamurienta» – não correspondiam à verdade.
– Mas, papá, eu também sou dependente de ti – contrapôs, depois de ele lhe explicar o significado da palavra.
O pai riu-se com vontade e puxou-a para o colo.
– Não tens papas na língua, pois não? Sabes bem quem te põe a comida no prato! Estás com medo de seres tão dispensável como a tua mãe, é? Bom, não te preocupes. Há sempre mais tolerância para com as crias. Desde que sejas uma boa menina. Sabes, é que tu pertences-me completamente.
Como antídoto para este princípio de vida infeliz, Bernadette afundou-se em romances ficcionais e prosperou, encontrando amigos e heróis entre as capas dos livros. O seu monólogo interior era moldado pela ficção vitoriana e os seus hábitos e discurso tornaram-se uma fusão peculiar entre o antiquado e poético e o declaradamente moderno, com uma saudável indiferença pelo patriarcado. Poderia ter-se sentido tentada a apoiar o regime arcaico, que parecia bastante benigno nas lendas arturianas, mas sabia pela sua experiência no mundo real que era uma coisa perigosa e instável.
Criou um ideal romântico do que um homem devia ser a partir de personagens fictícias, que eram, na maioria das vezes, criadas por mulheres, e lhe deram uma expectativa pouco prática em relação ao amor. Foi esta divisão entre realidade e ficção que contribuiu para a sua misandria em adulta; depositara toda a sua fé num ideal e os homens ficavam sempre aquém desse modelo.
Bernadette preferira levar o seu próprio carro para a festa, em vez de ir com alguém, pois esta última hipótese pressupunha irresponsabilidade. Era frequentemente irresponsável, mas preparava-se sempre para que o seu lado melhor fosse triunfante. Porém, ao parar junto ao empregado de estacionamento e olhar sombriamente para a grande casa de Brentwood, a embriaguez pareceu-lhe subitamente inevitável.
Havia sempre a opção de continuar a conduzir e evitar completamente o serão, mas já havia carros a fazer fila atrás dela e o jovem funcionário mexicano aguardava esperançosamente junto à porta do condutor. Saiu, sorriu-lhe com ar apologético enquanto ele lhe estendia um talão cor-de-rosa e agradeceu-lhe no seu sotaque inglês mais carregado. Havia uma vantagem concreta em ter sotaque inglês em Los Angeles, e Bernadette aproveitava todas as oportunidades para exibir essa distinção. Acrescentava pelo menos vinte pontos ao QI que as pessoas lhe atribuíam e podia estar mais descontraída durante as conversas, pois sabia que aquele tom de voz imperioso era equivalente a conhecimento e experiência aos ouvidos dos seus interlocutores. A menos que fossem suficientemente perspicazes (e poucos o eram), à primeira vista era fácil confundir Bernadette com uma jovem de boas famílias, uma aspirante a atriz ou, pior ainda, uma modelo. Movia-se com uma graciosidade saturniana, sobressaltava-se tão facilmente como um potro, e os seus olhos grandes, ligeiramente inclinados nos cantos, pareciam tão límpidos e confiantes como os de uma criança. Era uma batalha constante conseguir ser levada a sério, mas o sotaque ajudava um pouco.
Depois de tropeçar ligeiramente no alcatrão irregular (maldita Los Angeles e a má manutenção dos seus pavimentos!), disfarçou o desequilíbrio com um saltinho confiante, passou pela frente do carro e sorriu com ar sedutor à fila de funcionários de estacionamento. Isto, para Bernadette, era quase uma boa ação, pelo que seguiu caminho com confiança renovada, animada pela consciência de ter feito algo altruísta.
A casa era grande e muito bonita contra o céu escuro, afastada da estrada e protegida por sebes altas. Era exatamente o tipo de sítio onde Bernadette gostaria de viver. Estilo Nova Inglaterra, kitsch e bonito, com um jardim bem cuidado e um alpendre acolhedor,
parecia um símbolo de felicidade doméstica e de tudo aquilo que, para ela, indicava uma vida bem vivida. Tim Bazier não era menos atraente do que a sua casa, um homem de cabelo loiro e olhos azuis, alto e magro. Bernadette desejara-o instantaneamente desde que o vira pela primeira vez. Antes de ele abrir sequer a boca, adivinhara corretamente a natureza superior deste homem e o seu coração partido ansiou por se submeter a ele.
Na verdade, era o único homem que Bernadette conseguia admirar naquele momento, o único homem acima de qualquer crítica, tanto em aparência como em comportamento e consequência. Tim nunca lhe permitira aproximar-se o bastante para lhe encontrar algum defeito, e era esta distância, esta satisfação altiva, que fazia com que o amor florescesse descontrolado dentro do peito dela. Tom era um raio de luz brilhante no mundo sombrio de Bernadette. Com todos os outros homens, ao menor sinal de fraqueza, à mais leve sugestão de uma qualquer falha moral inócua, ela saltava de imediato para as piores conclusões e rotulava-os de monstros. Era uma questão de autopreservação.
Tim, contudo, parecia ter saído das páginas dos seus adorados romances, de tão estável e singelo – era como se tivesse sido arrancado à sua imaginação da infância e colocado no mundo real, e estivesse finalmente com ela como um companheiro verdadeiro.
Lembrou-se da primeira vez que o vira, de como ele erguera os olhos ao ouvi-la entrar no escritório, de como lhe parecera jovem para um homem na casa dos trinta, tão arrapazado e simpático. E tinha óculos! Quem é que ainda usava óculos? O sorriso vacilante e a forma tímida como se levantara para lhe apertar a mão eram os gestos mais absolutamente comoventes que ela alguma vez vira, e por um instante não conseguiu respirar.
– Com que então – dissera ele –, você é que é a Enfeitiçadora de Homens.
Bernadette desejara-o naquele momento como nunca desejara nada antes. Era uma necessidade voraz, um sentimento tão forte que parecia explicar a sua própria existência. Era inexplicável e inesperado e totalmente incompreensível, uma vaga química embriagante que se sobrepôs a todos os outros impulsos. Na verdade, era um alívio acreditar que podia haver ainda um homem que salvasse a espécie.
Tim era diferente dos outros porque não usava contra ela o facto de ser uma mulher. Parecia completamente desinteressado nela como mulher, quase indiferente ao vasto abismo que os separava. Tratava-a como uma amiga e um ser humano e não exigia nada dela. Da mesma forma, não fazia cedências perante ela – Bernadette aprendera há muito a usar o seu encanto sedutor para obter vantagens e preferência, mas Tom rechaçara cada um dos seus avanços com gentileza e bom humor. Era inebriante.
Fora ele o primeiro a cunhar a sua alcunha, «Enfeitiçadora de Homens» – e que sugestão tão empreendedora! Dirigir-se a ela assim logo no encontro inicial, usá-lo como introdução, de forma tão respeitadora e com tanta educação, apelara diretamente ao seu orgulho feminino. Definia um poder a que ela ainda não dera nome e desculpava a sexualidade que ela tinha dificuldade em controlar. Bernadette imaginou silenciosamente o amor e perdão que ele demonstrara nessa única frase, e nem um padre a explicar a promessa da ressurreição a teria confortado mais.
A festa já estava animada. Pelas janelas iluminadas Bernadette viu pessoas a circular, a rir e a conversar, enquanto os empregados lhes ofereciam bandejas de canapés com decoração festiva. Uma canção de Bing Crosby chegou até ela através da porta aberta, que estava enfeitada com uma coroa natalícia e um grande laço encarnado.
Depois de percorrer o caminho de gravilha nos sapatos de salto extremamente alto, Bernadette subiu os degraus de madeira ilusoriamente frágeis e perguntou a si própria em que sítio da casa estaria Tim, com o corpo tenso de expectativa. Lembrou-se de que se sentia agoniada.
A festa de Natal seria a ocasião perfeita para lhe dar a conhecer os seus sentimentos, porque não havia nada mais romântico do que o Natal. Ao receber o convite, em novembro, experimentara um pressentimento muito forte de que ia acontecer algo extraordinário. Tim fizera questão de lhe dizer que aguardava ansiosamente a
presença dela.
Mal entrou na casa viu-o. Estava de costas para ela, a falar com um casal que Bernadette não conhecia e, miraculosamente, o cabelo loiro encontrava-se mesmo por baixo de um audaz ramo de azevinho preso numa arcada. Deu um passo trémulo em direção a ele, planeando mentalmente o diálogo, e se havia de o beijar em ambas as faces ou se devia tentar roçar os lábios acidentalmente-de-propósito no canto da boca dele. O azevinho oferecia sem dúvida um mundo de potencial para beijos. Porém, antes de conseguir chegar junto dele, sentiu mãos pequenas e suaves na cintura e, quando se virou, viu-se apanhada por um abraço sincero, apertado e intenso, indicador de verdadeira amizade.
– Elizabeth! Que bom ver-te! – mentiu Bernadette. Tentou não ficar rígida nos braços da outra mulher e fez um esforço por se afastar sem demonstrar o seu desagrado.
Elizabeth Wentworth era a namorada de Tim e a espinha na garganta de Bernadette. Elizabeth era exatamente o tipo de mulher bondosa e sem maldade que Bernadette se recusava a acreditar que existia. Estava convencida de que, por trás daquela fachada de liberalidade e bom temperamento, se escondia um cinismo ainda mais negro do que o seu.
Elizabeth estava a olhar para Bernadette, a sorrir e a acenar com a cabeça como se alguém lhe tivesse feito uma pergunta que requeria resposta afirmativa. O que Tim vira em Elizabeth era, para Bernadette, um mistério constante. Não era particularmente bonita, nem especialmente inteligente; não iluminava uma sala, nunca fora ouvida a dizer uma piada e nunca dava um passo em falso. Quando olhava para ela, Bernadette pensava em expressões como «estudiosa e vulgar» e «sólida e fiável». Elizabeth tinha trinta e três anos, era de estatura média, nunca usava maquilhagem e vestia-se sempre adequadamente. Era o tipo de pessoa que Bernadette desejava de vez em quando poder ser, notável apenas pela sua vulgaridade inimitável.
– Vem cumprimentar o Tim – disse Elizabeth. – Ele vai ficar
muito contente por te ver.
Para horror de Bernadette, Elizabeth enfiou o braço no seu e conduziu-a em direção a Tim e ao azevinho. Tim, apercebendo-se da aproximação delas pelo canto do olho, pediu licença aos seus interlocutores e virou-se com um sorriso. Bernadette não conseguiu conter um sorriso idiota e sentiu a familiar vaga quente e química.
Tim era, sem qualquer dúvida, a pessoa mais sublime e perfeita que alguma vez pisara o planeta. Tinha mais de um metro e oitenta, era esguio e um pouco desengonçado, com o cabelo a cair numa franja clara sobre a testa. Nunca usava perfume, mas cheirava sempre a sabonete.
– Olá, Bernie – disse, abraçando-a. Bernadette encostou o corpo ao dele, tentando ao mesmo tempo que o gesto parecesse casual. – Não seria uma festa sem ti – continuou ele.
– Estás fantástica.
– Recuou para admirar o vestido dela, segurando-lhe na mão esquerda e sorrindo em reconhecimento do esforço que ela fizera. Bernadette sentiu um aperto quase impercetível dos dedos dele nos seus quando Tim lhe soltou a mão.
– Obrigada – conseguiu dizer. – Tu também.
Tim estava sempre reluzente e perfeito, mas esta noite ainda mais. Vestia uma camisa de xadrez encarnada – um xadrez sofisticado e confortável, reparou Bernadette com satisfação, não como uma camisa de lenhador – o que parecia adequadamente festivo para uma noite destas. As calças de ganga eram simples e calçava sapatos de lona azul-escuros. Parecia sempre estar pronto para uma aventura ao ar livre, mesmo em eventos formais ou reuniões de negócios. Bernadette identificara-o como um daqueles tipos que gostam de caminhar/andar de bicicleta e que fazem reciclagem para salvar o mundo.
Durante a troca de palavras, Elizabeth permanecera silenciosa, com ar aprovador, evidentemente à espera da sua vez de falar. Havia nela um ar pouco habitual de expectativa quando sorriu a Bernadette.
– Acho que estão cá muitas pessoas que já conheces – começou a dizer –, mas há alguém a quem quero mesmo apresentar-te!
– Trocou um olhar envergonhado com Tim, que revirou os olhos com humor e esboçou o seu sorriso de esguelha. – Um amigo meu da faculdade de Medicina – acrescentou Elizabeth.
Era médica no Hospital Cedars-Sinai, especialista em fígados ou rins ou outro órgão qualquer que fazia lembrar urina a Bernadette. A última pessoa que queria conhecer era um viciado em trabalho armado em bonzinho obcecado com a morte e com o fazer o bem,
que cheirasse a desinfetante barato e a luvas de látex. Estremeceu visivelmente.
– Bom, primeiro precisava de uma bebida – disse, virando-se para Tim com expressão que dizia «salva-me».
– Claro! – exclamou Elizabeth. – Conheces a casa, não conheces? Há um bar nas traseiras. Queres que vá contigo?
Bernadette detestava ver Elizabeth a armar-se em anfitriã na casa de Tim. Parecia ridículo, tendo em conta que só namoravam há um ano. Tim era agente literário de Bernadette há três, o que, pelo menos em termos cronológicos, constituía uma relação bem mais substancial.
– Não é preciso. Já cá estive antes – respondeu, vincadamente.
Deslocou-se através da casa, observando os outros convidados e fazendo uma nota mental das mulheres mais atraentes do que ela. Era um hábito arraigado sempre que entrava numa sala ou em algum lugar novo. Primeiro procurava homens que pudesse amar (nunca
havia nenhum, pois os homens eram todos uns filhos da mãe) e a seguir raparigas ameaçadoramente belas (havia sempre demasiadas).
O pai de Bernadette sempre fora muito exigente em relação ao aspeto da filha. Tinha olho para os pormenores e os defeitos físicos da menina pareciam magoá-lo genuinamente, a sua irregularidade uma afronta aos genes superiores do progenitor. Costumava pegar numa régua e medir a simetria das suas feições, ao milímetro. Bernadette punha-se em frente a ele, com o seu uniforme escolar e meias brancas, saltitando de um pé para o outro num desconforto controlado enquanto ele lhe media o rosto e registava os resultados num bloco.
– Que desperdício! – suspirava. – Só casei com a idiota da tua mãe porque pensei que ela produziria filhos de aspeto decente e agora olha para isto! Trinta e quatro milímetros! Terrível! E as proporções todas erradas! – Depois passava-lhe a mão pelo cabelo num gesto amável e paternal e dizia: – Esperemos que, pelo menos, tenhas um pouco da minha inteligência para te distinguires das outras raparigas feias. Pobre bonequinha.
Bernadette ficara desapontada por perceber que não era bonita. Queria ser digna de um romance literário para poder encontrar um homem mais afetuoso do que o pai, e todas as suas heroínas preferidas eram descritas como sendo impossível e extraordinariamente belas.
Em adulta, recebera elogios suficientes à sua aparência para contrabalançar a fraca opinião do pai, mas ainda não gostava de ser definida pelo aspeto, quer pela positiva, quer pela negativa, e não se sentia suficientemente segura para enfrentar uma competição honesta. Passava a vida a olhar disfarçadamente para as pernas, traseiros e mamas das outras mulheres, com mais vigor do que um rapaz adolescente.
Era uma festa típica de Los Angeles, cheia de agentes e clientes, financeiros, hipsters, artistas e filantropos. Bernadette circulou entre os convidados sozinha, nervosa e desdenhosa, sempre atenta ao paradeiro de Tim. A apreensão de o ver, o temor de passar uma noite doente de amor não correspondido na companhia dele, tinham dado lugar a um instinto mais prático e maquinador. A sua mente demasiado ativa começou a imaginar planos para a noite que tinha pela frente. Afinal de contas, estar na casa de Tim era uma oportunidade demasiado boa para desperdiçar, e tinha de resultar algo positivo do tédio da festa. Talvez pudesse fingir-se cansada e escapulir-se para o quarto dele, ou encorajá-lo a dançar com ela sob o luar. No mínimo, podia apanhá-lo debaixo do azevinho, que parecia estar pendurado por cima de cada porta, provocando-a com as suas pérolas vermelhas de promessa.
Eram planos pouco sofisticados, mas Bernadette era perfeitamente juvenil na sua busca egocêntrica do amor. O amor verdadeiro devia ser possível, porque as pessoas tinham escrito sobre ele – e, na escrita, faziam-no parecer tão maravilhoso! Na verdade, valia tudo
no amor e na guerra; o amor era, ele próprio, muitas vezes uma guerra, e fazia com que comportamentos normalmente inadmissíveis fossem absolutamente nobres. E o amor era um conceito que não exigia grande análise: o desejo era definição suficiente. Bernadette
aprendera com experiências dolorosas anteriores que os homens iam sempre atrás daquilo que queriam. Ela não tencionava ser uma mulher passiva, destinada a pôr os seus próprios desejos de lado. Lutaria pelos seus caprichos a qualquer custo.
Encontrou o bar no alpendre das traseiras e, ao sair do calor da casa, reparou maravilhada, como acontecia sempre, no clima mediterrânico de Los Angeles. Das tábuas sob os seus pés erguia-se um cheiro a pinho-rosa oleado, que se misturava com a alfazema e os
marmelos da sebe que delimitava o jardim amplo. As pequenas lâmpadas penduradas nos limoeiros criavam uma meia-luz indolente e romântica, bem como as lanternas suspensas no caramanchão, três fogueiras crepitantes e as luzinhas dos telemóveis cujos
donos preferiam a vida virtual.
Pediu um martíni de líchia, que o ator desempregado atrás do balcão insistiu em polvilhar generosamente com canela. Esvaziou-o de um trago e pediu outro. O empregado piscou-lhe o olho e ela empertigou-se, ofendida com a impertinência.
Enquanto ali estava encostada ao bar, a beber sozinha, um homem de ar simpático, mais ou menos da sua idade, aproximou-se e sorriu.
– Olá – disse. – Como vai isso?
– Desculpe, mas não falo americano – reprovou ela com altivez, e deixou-o a pensar no seu erro.
Quando era mais nova, Bernadette sorria amistosamente aos homens desconhecidos que a abordavam e envolvia-se alegremente em conversas de circunstância, tratando-os como seres humanos com alma, como ela, sempre na esperança secreta de encontrar um herói romântico. Colocara tanta fé e confiança no conceito do homem excecional. Estes homens que a abordavam eram simpáticos, joviais e lisonjeiros, mas assim que ela recusava educadamente os seus avanços românticos a máscara de simpatia desaparecia e, por trás, havia raiva. Demasiadas vezes passara pelo choque de ver uma conversa agradável tornar-se violenta, um homem aparentemente normal tornar-se um adversário assustador. Fazia-lhe lembrar a natureza dupla do pai. E agora já não sorria quando os homens a abordavam.
Estas festas faziam sempre Bernadette sentir-se um pouco infeliz, mas não se atrevia a recusar um convite com medo de morrer sozinha. Geralmente, cada tentativa de ter uma noite interessante e empolgante transformava-se num exercício de autodesdém e desespero. Nunca ninguém se comportava como ela queria e ela nunca conseguia estar à altura dos padrões que estabelecia para si própria.
Contudo, havia ainda a débil esperança secreta de que algo maravilhoso acontecesse numa festa. Dificilmente aconteceria algo maravilhoso na vida do dia a dia, mas as salas escuras, a atmosfera mais intensa, as bebidas, os estranhos… Bernadette conseguia convencer-se de que, por vezes, aconteciam coisas invulgares e fabulosas em festas. Alguém podia apaixonar-se loucamente por ela, ou salvar-lhe a vida de outra forma. Ainda não acontecera, mas não estava disposta a abandonar a fantasia. E Bernadette vivia para a fantasia.
Vagueou pelo jardim em círculos largos, tentando parecer que tinha amigos noutra área da festa que aguardavam ansiosamente o seu regresso. Não tinha ninguém com quem falar, nada a dizer mesmo que tivesse audiência, e já lhe doíam muito os pés.
Foi então que viu o homem de rosto simpático que a abordara no bar a ser rejeitado por uma rapariga reles e imprestável de vinte e poucos anos. O homem limitara-se a cumprimentá-la amistosamente, mas a rapariga revirou os olhos e virou-lhe costas com um sorriso escarninho. Pareceu-lhe errado e lamentou subitamente o seu comportamento anterior, envergonhada do desprezo violento que ela própria demonstrara. Além disso, abominava visceralmente ver um homem a ser desprezado por outra mulher que não ela, e tinha um desejo intenso de proteger os inocentes. Como este rapaz estava subitamente rotulado como vítima aos seus olhos, Bernadette sentiu uma vaga súbita de afeto e um desejo de lhe mostrar que não estava sozinho. Dirigiu-se a ele para resolver a situação.
– Querido! – exclamou, suficientemente alto para a outra mulher ouvir, e pegou na mão do homem sobressaltado, que a fitou, consternado.
– Eu… – começou, mas Bernadette cortou-lhe a palavra.
– Não o digas! Eu sei. Sei que a tua família nunca me aceitará. Não suporto sequer pensar nisso!
– Eu…
– Ainda uso o anel que me deste – prosseguiu, entrando no papel, e exibiu o grande anel de safira que trazia sempre no dedo. Beijou-o calorosamente na face e ele reagiu com hesitação, pousando-lhe a mão na cintura. Disfarçadamente, afastou-a com um sopapo.
– Hei de amar-te sempre – sussurrou de forma audível, e dirigiu-se à casa. Quando se virou para trás viu-o a olhar para ela, incrédulo, enquanto a rapariga cruel o rondava, agora cheia de sorrisos.
Bernadette circulou pela casa, na esperança de apanhar um vislumbre de Tim. Por fim, deixou-se ficar na sala de estar, onde vários grupos de convidados conversavam ruidosamente. Era uma sala grande, confortavelmente mobilada e nada extravagante. Os sofás gastos e o aparador de carvalho evocavam dinheiro antigo, uma atmosfera da Costa Leste. Os ornamentos eram, na sua maioria, livros e plantas. Grinaldas festivas e estrelas-de-natal prestavam homenagem à época, como exclamações de alegria encarnadas e verdes num espaço modesto.
No meio do caos, Bernadette apercebeu-se, graças a algum sentido animal, pelo arrepio na nuca, de que alguém a estava a observar. Virou a cabeça e viu o provocador.
Um homem sozinho, junto à lareira decorada com pinhas. Recusou-se a desviar o olhar, mesmo quando ela o devolveu. Havia algo desafiador naquele olhar; parecia demasiado íntimo e cúmplice. Bernadette sentiu-se ligeiramente agradada por o ter obviamente cativado de alguma forma, mas o homem estava também a causar-lhe a desagradável sensação de que o seu vestido reduzido não era, na verdade, chique, mas sim ordinário. Disfarçadamente, tentou puxá-lo para baixo alguns centímetros e foi recompensada com um sorriso demasiado perspicaz.
Estava aborrecida mas, ao mesmo tempo, inevitavelmente intrigada. Ele parecia ter trinta e tal anos e era muito alto e robusto. Bernadette nunca tinha visto um homem tão grande; os ombros eram extraordinariamente largos e, mesmo de fato, parecia ser todo músculo. Era quase obsceno, um homem tão físico vestir um fato de bom corte. O tecido escuro estava esticado sobre os braços fortes e as coxas longas; era uma visão incongruente, salva da catástrofe por algo perigoso naquela postura arrogante que desafiava as convenções e proibia censuras. O seu rosto parecia esculpido em pedra e a expressão manteve-se inalterável enquanto ergueu lentamente o olhar da saia curta de Bernadette para o seu rosto. Só os olhos brilharam com malícia quando os baixou de novo para as pernas dela.
Bernadette estava tão ocupada com a sua indignação que nem reparou em Tim, que se aproximara e estava agora ao seu lado.
– É atraente, não é? – perguntou, indicando o homem gigante com um aceno.
– Não faz o meu género – respondeu ela rapidamente.
– E qual é o teu género, Bernie? – perguntou ele, baixinho.
Era o tipo de conversa que Bernadette nunca conseguia interpretar claramente. Tim não a tentava seduzir diretamente, mas dizia muitas vezes coisas que pareciam ter segundos sentidos e, quando o fazia, fitava-a sempre com tristeza, como se ela tivesse errado e ele quisesse corrigi-la. Estava a observá-la atentamente e, Bernadette tinha a certeza, com melancolia. Não o conseguia compreender. Se a desejava, porque não dizia qualquer coisa? Porque tinha de ser tudo tão sério e melancólico?
Tim sorriu tristemente ao olhar para o desconhecido que estava agora, inexplicavelmente, a conversar com Elizabeth. Pousou a mão suavemente nas costas de Bernadette, inclinou-se e falou-lhe ao ouvido.
– Vem comigo – disse.
Arrepiada com o toque dele, pensou, por um momento de loucura, que ele a ia levar para longe das pessoas, para algum canto escuro da casa, para o quarto, para um sítio onde pudessem ficar a sós. O entusiasmo inebriante durou pouco quando viu que ele a conduzia, não para um recanto escondido, mas na direção da lareira, onde Elizabeth falava com o grande desconhecido.
– Bernadette, este é o amigo de quem te estava a falar – apresentou Elizabeth, com um sorriso ansioso. O amigo ergueu ligeiramente a sobrancelha esquerda quando ela falou, mas Bernadette sentiu um aperto de frustração no estômago. Não estava certo apresentar um homem assim, anunciando que tinham estado a falar dele. Dava a entender que tinham estado as duas a planear um ataque. Neste caso, Bernadette achava que Elizabeth estava a ser estúpida e não intencionalmente má, mas lançou-lhe um olhar irritado.
– Oh? Não me lembro… – Deixou a frase no ar, tentando parecer indiferente e despreocupada.
– Da faculdade de Medicina! – esclareceu Elizabeth, acenando desesperadamente.
O filho da mãe conteve um sorriso.
– Já tinha reparado em si do outro lado da sala – disse, em tom educado.
Bernadette ficou ligeiramente espantada com o sotaque dele, que era absolutamente único. Tinha uma voz grave e suave, com uma inflexão idiossincrática que ela nunca ouvira. Era um som transatlântico, mas não parecia americano nem inglês. Os seus lábios quase não se moviam quando falava e a voz parecia desligada do corpo, como se fosse um ventríloquo preguiçoso.
– Sim – respondeu, aturdida por Elizabeth e o traiçoeiro do Tim a terem forçado a falar com esta pessoa tão estranha. Tim continuava a fitá-la com a mesma avidez nostálgica. Bernadette teve vontade de lhe agarrar nos ombros e de o sacudir com força.
Elizabeth pegou no braço de Tim e, com uma desculpa esfarrapada sobre a música, afastou-se, deixando Bernadette sozinha com o brutamontes. Ela sentia-se muito pequena ao pé dele. Parecia ter sido construído numa escala diferente de tudo o resto e estudava-a como um lobo a avaliar uma ovelha antes de a devorar.
– A Elizabeth fala muito bem de si – disse ele em voz arrastada.
Bernadette não conseguiu conter uma risada desdenhosa.
– Não a conheço assim tão bem, na verdade – disse, em tom escarninho.
Ele ergueu de novo a sobrancelha e apertou os lábios numa expressão óbvia de desaprovação.
– Não podia arranjar muito melhor do que a Elizabeth em termos de amigas. É uma belíssima pessoa.
Bernadette fitou-o e pestanejou, incrédula. Pela forma como descrevera Elizabeth, parecia que estava a falar de um cavalo ou de outro animal.
– Sim, é muito boa pessoa – concedeu, enquanto olhava em volta à procura de uma forma de fugir.
Ele levantou novamente a sobrancelha esquerda e, de repente, parecia entediado, como se ela tivesse perdido abruptamente todo o interesse.
Bernadette pesou as suas opções. Este homem era evidentemente um porco, mas pelo menos estar ao pé dele a fazer conversa de circunstância era melhor do que andar a circular pela festa sozinha.
Era óbvio que Elizabeth arranjara este encontro na esperança de que levasse a algo mais e a ideia de que Tim e Elizabeth o interrogariam mais tarde sobre ela fê-la decidir-se: ia deixar uma boa impressão.
– Peço desculpa, não fixei o seu nome – disse, com um sorriso sedutor e o seu olhar mais sensual.
– Radley Blake – foi a resposta. O nome agitou algo no seu subconsciente, mas pensou que talvez Tim já o tivesse mencionado alguma vez.
– Eu sou Bernadette St John. – Aproximou-se mais e estendeu a mão, que ele fez desaparecer na sua.
Não disse nada, limitando-se a olhar para ela. Parecia que estava à espera de que ela se afastasse.
– Há quanto tempo conhece a Elizabeth? – tentou ela.
– Mais de uma década. Penso que ela mencionou que nos conhecemos na faculdade de Medicina?
Bernadette estava prestes a responder quando ele acrescentou:
– Leio os seus artigos de vez em quando, na revista Squire. São muito bons. Têm um ar de neurose estudada que acho cativante. Tendo em conta a minha profissão na área médica. Bernadette estava justamente orgulhosa do seu trabalho para a revista Squire, onde escrevia sob o pseudónimo «Enfeitiçadora de Homens». Fora um dos primeiros trabalhos que Tim lhe arranjara, e aqui estava este tal de Radley Blake a troçar do seu trabalho e a rir-se declaradamente dela. Ficou sem saber como responder, e ele continuou em tom ligeiro:
– Já tenho pensado que devia entrevistar-me. Estou certo de que iria gostar da sua linha de interrogatório.
– Bem – disse ela –, seria o primeiro médico que eu entrevistaria.
Geralmente prefiro políticos, membros da realeza, chefes de Estado, empresários de sucesso mundial… Imagino que seria, no mínimo, uma mudança fascinante.
Ele assentiu secamente com a cabeça, reconhecendo a agressividade mal disfarçada do comentário dela, e fitou-a de novo com um sorriso nos cantos dos lábios. Olharam um para o outro em silêncio e Bernadette reparou que ele tinha olhos muito escuros, como poças de chocolate derretido com centelhas cor de caramelo.
– Diga-me – perguntou ele por fim –, em que estava a pensar há pouco, do outro lado da sala? Estava com uma expressão… Parecia uma pergunta impertinente, embora, nesta altura, ela já não esperasse outra coisa do presumido Radley Blake. Tentou perceber que expressão teria no rosto para lhe ter chamado a atenção. Provavelmente estaria a pensar em Tim, já que era o principal tema dos seus pensamentos, mas nunca o admitiria a um amigo de Elizabeth.
– Estava a pensar… Provavelmente estava preocupada com o isolamento crescente dos Estados Unidos no Médio Oriente.
Radley fitou-a como se estivesse a tentar perceber se ela estava a falar a sério ou não. Passaram vários momentos de silêncio, nos quais ela tentou compor o rosto numa máscara plácida e inofensiva, o rosto de uma cidadã do mundo preocupada. Depois, abruptamente,
ele riu-se. Foi uma risada genuinamente divertida que lhe franziu as feições e lhe fez brilhar os olhos.
– O que acha do Tim? – perguntou ela, tentando desesperadamente mudar de assunto.
Ele respondeu prontamente, e pareceu estar a gostar outra vez da companhia dela.
– É um tipo decente. Mas receio que não seja suficientemente bom para a Elizabeth.
Bernadette abriu a boca e abanou a cabeça, estupefacta. Tim era melhor do que Elizabeth em todos os aspetos: mais atraente, mais bem-sucedido, mais inteligente.
– Está apaixonado por ela? – A pergunta saiu-lhe dos lábios antes que a conseguisse conter.
Radley Blake soltou uma risada cínica, muito diferente da primeira.
– Uma mulher como a Elizabeth nunca poderia estar com um homem como eu, tal como nunca conseguiria fazer nascer asas nas costas e voar até à lua – disse, com um olhar sombrio para o outro da sala, como se a procurasse.
Bernadette estava chocada. Não conseguia compreender o que viam em Elizabeth.
– Pois eu acho que o Tim é um homem maravilhoso – ripostou, em tom enfático.
Ele sorriu, um sorriso frio e agressivo, deixando ver o brilho dos dentes brancos. Bernadette sentiu, pela primeira vez, toda a força do olhar dele quando se cruzou com o seu.
– Vejo que sim.
Percebeu então, sem a menor dúvida, que ele sabia. De alguma forma, nos poucos momentos que tinham passado juntos, Radley Blake adivinhara magicamente os sentimentos dela por Tim. E estava a deixar perfeitamente claro que a considerava desprezível.
Nesse momento apareceu o homem simpático do bar, com um sorriso bem-disposto e intenções de meter conversa. Porém, quando ele abriu a boca, Bernadette levantou a mão e apontou para ele num gesto de aviso.
– Não – disse. – Vá-se embora.
O pobre coitado fechou a boca, trocou um olhar confuso com Radley Blake e afastou-se, embaraçado.
– É muito engraçada – comentou Radley, ainda com um sorriso.
– Você não – respondeu ela. – Não sei o que quis sugerir com esse último comentário, mas não me parece que seja apropriado. Com licença. – Sacudiu o cabelo de forma dramática, girou sobre os calcanhares e afastou-se tão depressa quanto o vestido e os sapatos lhe permitiam.
Elizabeth apanhou Bernadette assim que ela entrou na sala de jantar, um espaço retangular com uma mesa para catorze pessoas, um aparador e uma série de parafernália natalícia, incluindo um presépio de porcelana com um Menino Jesus do tamanho de um dedal. Alguns dos convidados mais antissociais tinham-se reunido ali em pequenos grupos.
– O Radley não é fantástico? – perguntou, com um sorriso radiante e orgulhoso. – Não queria deixar-te constrangida, mas ele acabou de se mudar para Los Angeles e pensei logo que vocês os dois se iam dar bem. Ele tem o mesmo gosto pela vida que tu.
– É fascinante – concordou Bernadette, ao ver Tim aproximar-se. Elizabeth sorriu ao namorado.
– Ela gosta dele! – exclamou em tom de triunfo, com um risinho.
– Foram os milhões dele que te conquistaram, Bernie? – perguntou Tom gentilmente.
– Que milhões?
– Bernie, vá lá! É o Radley Blake! Por favor não me digas que não sabes quem é. Um dos empresários mais bem-sucedidos da nossa geração?
– Oh, ela não quer saber disso – ralhou Elizabeth, ofendida.
– Disseste que ele era médico! – Bernadette olhou para Elizabeth, ultrajada.
– Oh, não! Conhecemo-nos na faculdade de Medicina mas ele desistiu para fundar a Clarion Molecular. Desenvolveu a tecnologia para sequenciar genomas individuais completos. É um génio! – explicou Elizabeth, com fervor quase religioso.
– A Lizzie estava convencida de que vocês os dois iam ficar perdidos um pelo outro. Eu, de forma mais egoísta, achei que pelo menos talvez conseguíssemos uma entrevista. Ele é famoso pela sua relutância em falar com a imprensa, mas estou certo de que conseguias convencê-lo com os teus encantos de Enfeitiçadora de Homens. Seria um grande triunfo conseguir uma reportagem aprofundada com ele – disse Tim com um sorriso.
Bernadette sentiu as pernas fracas enquanto tentava recordar a sua conversa com Radley Blake.
– Sobre o que é que falaram? – quis saber Elizabeth.
– Ah… sobre o Médio Oriente.
Elizabeth acenou com ar sério e Tim riu-se e tocou levemente na face da namorada.
– Lizzie, vou fazer o discurso agora.
– Agora? – Ela corou. – Está bem.
Tim dirigiu-se à sala com passos rápidos e Elizabeth pegou no braço de Bernadette e puxou-a consigo.
– Anda, Bernie! – sorriu. – Vamos lá para a frente.
Tim pediu silêncio, algum poder invisível desligou a música e uma multidão formou-se obedientemente em volta dele. Os convidados sem a sorte de conseguir entrar na sala acotovelavam-se junto das portas e entradas, de pescoços esticados para ver melhor. Mulheres sofisticadas, com roupas caras, penteados elegantes e rostos meticulosamente maquilhados erguiam-se acima dos seus pares nos saltos altos. Jovens boémias com calções Chloé e blusas vintage, as madeixas aloiradas a caírem em ondas revoltas sobre os ombros, riam-se em grupinhos, com os braços à volta das cinturas umas das outras. Os homens vestiam calças de ganga e casacos desportivos, ou fatos sem gravata. Toda a gente tentou controlar o ruído das conversas animadas com «chius» e gritos, reduzir a animação a um nível que permitisse ouvir Tim. Este olhava para a multidão alegre com um sorriso radiante, um copo de vinho na mão erguida e o habitual brilho de bondade nos olhos.
Bernadette olhou de lado para Radley Blake, que continuava junto da lareira, impassível.
– Não parece um génio – murmurou, amargamente.
– Amigos e família – começou Tim. – A Elizabeth e eu estamos encantados por terem podido juntar-se a nós para esta pequena celebração. – Chamou Elizabeth com um gesto e ela aproximou-se e encaixou-se debaixo do braço dele. Bernadette sentiu uma vaga familiar de injustiça. Todos aplaudiram e assobiaram. Tentou captar o olhar de Tim, mas este não estava a olhar na direção dela.
– Tem sido um ano fantástico em muitos aspetos. Tive muita sorte. Consegui terminar a maratona de Los Angeles… por pouco! Obrigado a todos os que me apoiaram, patrocinaram e aturaram. Fui finalmente às Galápagos… se ainda não viram as fotografias, vão vê-las, estejam descansados. Tenho clientes espantosos, que fazem com que o meu trabalho seja um sonho…
Aqui acenou vagamente na direção de Bernadette, que retribuiu com o seu melhor sorriso.
– …e, mais importante do que tudo o resto, encontrei a Lizzie.
Olhou para Elizabeth, que ergueu para ele os olhos azul-claros com uma expressão sincera e confiante. Nunca uma mulher de coração simples tivera o amor tão claramente pintado no rosto. Bernadette sentiu-se ligeiramente agoniada. Elizabeth fazia-lhe lembrar um labrador que tivera em criança, em Inglaterra, que tinha o mesmo ar dócil e tranquilo.
– Temos o prazer de anunciar que estamos noivos!
A postura de Bernadette não se alterou visivelmente, e qualquer pessoa que a observasse acharia apenas um pouco estranho que ela não se tivesse movido, que continuasse tão bela e imóvel como uma rosa petrificada. Os seus lábios empalideceram e debateu-se para respirar, mas só um observador muito atento teria reparado nisso. Para Bernadette, todo o som se dissipou com um sopro gigantesco e ficou reduzido a um murmúrio distante e indistinto, e conseguia ouvir o coração a bater nos ouvidos. Manchas negras formaram-se em frente dos seus olhos e pestanejou rapidamente para tentar afastar a cegueira. Sentiu-se tonta e as outras pessoas na sala pareciam estar muito longe. Era como se estivesse completamente sozinha; se caísse, ninguém repararia nem se importaria.
Mas Radley Blake estava a olhar para ela. Não podia desmaiar. Nunca desmaiara em toda a sua vida; não era rapariga de desfalecer. Ele inclinou ligeiramente a cabeça, num aceno ínfimo dirigido a ela. Estava novamente a troçar dela, da sua infelicidade. Bernadette ficou tão confusa com o comportamento dele que conseguiu inspirar uma pequena golfada de ar. Respirou fundo algumas vezes e recuperou a consciência do que a rodeava. As pessoas estavam a aplaudir enquanto Tom e Elizabeth se beijavam. Era de mais, e o estranho nevoeiro de infelicidade ameaçou submergi-la por completo. Fechou os olhos e sucumbiu a ele.
De súbito, sentiu braços fortes a apoiá-la e Radley Blake amparou-a e conduziu-a ao exterior, abrindo caminho entre a multidão alegre. O alpendre das traseiras estava praticamente deserto, com os convidados a tentarem aproximar-se de Tim e da sua feliz noiva, todos ansiosos por serem os primeiros a dar-lhes os parabéns.
Radley sentou-a, com alguma brusquidão, numa cadeira baixa.
– Espere aqui – disse. – Volto já. – Regressou instantes depois com um copo gelado que lhe colocou na mão. – Beba isto.
– O que é? – perguntou ela, mirando o líquido transparente com desconfiança.
– É água.
– Oh… – Bebeu vários goles delicados e depois, acometida por uma sede repentina, esvaziou o resto do copo. O ar fresco e a água ajudaram um pouco e ela lançou um olhar grato a Radley.
– Vai passar, sabe – disse ele. – O que quer que está a sentir agora. Garanto-lhe. Chegará uma altura em que deixará de o sentir.
Ela não estava com disposição para ter conversas profundas com um desconhecido. Precisava de espaço para pensar, para perceber o que tinha acontecido, para processar a enormidade dos acontecimentos. A adrenalina dera lugar à fadiga, mas a sua natureza exuberante não a deixava admitir a derrota em frente de um homem, e ergueu as sobrancelhas escuras com uma expressão divertida.
– O meu salvador indesejado. Tem o hábito de arrastar as mulheres de salas demasiado cheias sem o consentimento delas? Eu estava bem, sabe?
Ele sorriu subitamente.
– Mentirosa. Estava prestes a cair para o lado.
Bernadette sorriu-lhe e inclinou a cabeça de forma coquete.
– É extraordinariamente presunçoso. Não faz a mais pequena ideia de como eu me sinto.
Se fizesse, perceberia que o melhor é deixar-me em paz. – Baixou a cabeça e sentiu a respiração a ameaçar novamente acelerar. Afinal, estava demasiado cansada para este jogo de sedução. – Por favor, deixe-me sozinha – pediu, virando para ele os olhos grandes e tristes.
Ele levantou-se imediatamente e desapareceu tão depressa que Bernadette pensou se o teria imaginado. Era invulgar encontrar alguém com comportamento tão errático como o dela, mas este homem desaparecera, abandonando-a com a mesma intensidade com que antes se preocupara. Quase desejou não lhe ter pedido que a deixasse.
As horas seguintes passaram num turbilhão confuso. Continuou a manter-se hidratada, mas com bebidas muito mais fortes do que água. A sua imaginação fértil estava a trabalhar a toda a velocidade à medida que o seu tempo de reação abrandava. Ponderou por instantes a ideia de rasgar as roupas, atirar-se para o chão de madeira do alpendre e gritar de agonia primitiva enquanto se contorcia em frente dos outros convidados, sem querer saber do que pensassem dela, consumida apenas pela sua paixão frustrada numa fúria à Heathcliff. Porém, era difícil recuperar de demonstrações dessas.
Parecia tudo absolutamente errado. Como é que Tim e Elizabeth podiam estar noivos? Só namoravam há um ano.
Confortou-se com o facto de um noivado não ser um casamento. Muitos noivados acabavam, ou arrastavam-se durante anos e anos. O habitual otimismo egoísta, a convicção de que a vida acabaria por ser exatamente como ela queria – não era o que acontecia sempre? – veio ao de cima e ela começou a sentir-se quase animada. Podia acontecer muita coisa durante um noivado! Elizabeth podia apanhar alguma doença crónica horrível com os seus pacientes. Ou Tim podia cair em si. Ele amava-a, Bernadette sabia que sim; tinha uma excelente intuição para estas coisas.
Os convidados tinham já começado a deixar a festa. Bernadette estava sentada sozinha num sofá no exterior, junto de uma fogueira quase apagada. Olhou para as chamas hipnóticas e desejou com todo o seu coração, sem vestígios de sentimento de culpa, que Elizabeth morresse ou desaparecesse. Sem se aperceber disso, estava a gemer baixinho, um som como o de um animal ferido, um bezerro moribundo.
Elizabeth sentou-se ao lado dela e, preocupada, pegou-lhe na mão.
– Bernie! – exclamou. – Sentes-te bem?
Bernadette conseguira evitar Elizabeth e Tim desde o anúncio do noivado. Não lhe parecia que conseguisse suportar o regozijo de Elizabeth.
– Não – disse, infeliz. – Não me sinto nada bem.
– Estás maldisposta? Queres que vá buscar alguma coisa? Queres um comprimido para a dor de cabeça?
– Preciso de falar com o Tim – ouviu-se dizer. Estava a enrolar as palavras e tombou para o lado, contra Elizabeth.
– Claro! Vou chamá-lo.
– Preciso de falar com ele em privado. A sós. É particular.
Muito particular.
– Oh, querida! – exclamou Elizabeth, enquanto lhe acariciava a mão. – Queria tanto poder ajudar-te. Estás com péssimo aspeto!
Bernadette olhou para ela, mal-humorada, e ergueu a sobrancelha.
– Em particular – repetiu, com a voz entaramelada. – Tem de ser.
– Claro – respondeu Elizabeth, em tom carinhoso e muito sério. Bernadette perguntou-se se seria a voz que usava com os pacientes. – Seja o que for, sei que o Tim pode ajudar. Vai andando para o quarto de hóspedes. Sabes onde é?
Bernadette ouviu atentamente as instruções de Elizabeth, acenando com a cabeça, os ombros tão curvados para a frente que tinha a testa paralela ao chão.
– Espera lá por ele – concluiu Elizabeth. – Eu mando-o já ter contigo.
– Grite à vontade. – O gesto não era realmente ameaçador, mas ainda assim era demasiado ousado para o gosto dela. Este homem era polarizador, de alguma forma, apesar de a sua respiração a ter acalmado. O calor íntimo na face era como um potro a soprar ar doce das narinas, um gesto amistoso e inocente.
Bernadette abriu silenciosamente a porta do quarto de hóspedes e fechou-a atrás de si, com um estalido discreto do trinco. Era um quarto grande e confortável na parte lateral da casa, com portadas que davam para o jardim. Estas estavam abertas e uma brisa suave fez ondular as cortinas translúcidas numa dança hipnotizante. Sentia-se como se estivesse num sonho. Tim vinha ao encontro dela, e ela tinha de fazer alguma coisa, de dizer alguma coisa, para selar para sempre o destino de ambos. O problema era que não sabia bem o que fazer. Sentiu uma náusea súbita e o medo apoderou-se dela. Pensou em fugir pelas portadas abertas e nunca mais regressar.
Sentou-se na beira da cama, trémula, tentando acalmar o corpo e os nervos. Quanto tempo teria de esperar até Tim chegar? Ele parecia estar a levar o seu tempo, tendo em conta que Elizabeth correra a chamá-lo num estado que devia comunicar a emergência da situação.
A cama era bastante confortável. Pensou em deitar-se numa pose provocadora. As pernas bronzeadas ficariam muito bem sobre os lençóis brancos imaculados. Podia apoiar-se num cotovelo, virada para a porta, e pôr o cabelo caído sobre um ombro. Seria uma visão deslumbrante.
Sabia que Tim a desejava. Tinham passado anos a trocar e-mails maliciosos, e os almoços de negócios prolongavam-se durante horas. Bernadette sempre lhe contara, com todos os pormenores, o comportamento dos vários homens que tinham tentado seduzi-la. Porém, ao longo de todo esse tempo estivera sempre à espera, perfeitamente convencida de que aconteceria, de que ele um dia ganhasse coragem e – de forma muito romântica – lhe declarasse os seus verdadeiros sentimentos.
Tim possuía uma gentileza e sensibilidade que faltavam aos outros homens. Era não ameaçador e não-sexual e dava a impressão de que faria a coisa certa fosse qual fosse a situação. Era esta sua bondade que Bernadette mais admirava. Ela estava demasiado desiludida com o mundo para ser boa pessoa, mas Tim fazia-a sentir-se boa por associação
O noivado com Elizabeth não devia ser mais do que um erro de comunicação. Bernadette devia ter deixado bem explícito o seu amor por ele; nem pensar que Tim escolheria casar com uma mulher vulgar, feia, de meia-idade, quando podia tê-la a ela. Só tinha de lhe dizer que era ele que realmente desejava.
Ergueu os olhos quando Tim entrou no quarto. Não tivera oportunidade de fazer pose em cima da cama e, em vez de parecer uma sereia sedutora, devia ter-lhe parecido uma rapariga assustada, encolhida, a fitá-lo com olhos perturbados. O que quer que ele tivesse visto, foi suficiente para o fazer fechar cuidadosamente a porta depois de entrar.
– O que se passa, Bernie? – perguntou em tom amável, ainda perto da porta. – Bebeste de mais?
Ela ficou momentaneamente irritada com uma pergunta tão pouco romântica, mas o medo levou a melhor e, quando abriu a boca, não conseguiu falar. Abandonada pelas palavras, abriu os braços, desesperada, como uma criança a pedir que lhe peguem ao colo. Preocupado, Tim aproximou-se, sentou-se ao lado dela na cama e apertou-a contra si. Foi todo o encorajamento de que precisava, e Bernadette inspirou profundamente, inalando o seu cheiro limpo a sabonete.
– O que se passa? – inquiriu ele. – Aconteceu alguma coisa?
Ela afastou-se para olhar para ele.
– Sim – murmurou, tragicamente. – Sim, aconteceu alguma
coisa.
– O que foi? Podes dizer-me.
– Estou apaixonada por ti.
Foi como se um choque elétrico tivesse passado através dele e Tim saltou para trás tão repentinamente que a cama abanou por baixo deles. Com uma expressão incrédula, olhou para ela como se fosse uma fêmea exótica diferente de tudo o que já tivesse visto antes e, por um momento, Bernadette teve vontade de cantar de alegria. Mas depois viu a dor nos olhos dele, o tormento gravado nos traços do seu rosto, e um medo gelado apoderou-se dela. Fora um alívio dizê-lo, finalmente, e sentia a vertigem inebriante de um segredo + partilhado. Dizer-lhe fora inevitável – tendo em conta a sua natureza aberta, nunca poderia ser de outra forma – mas o que não estava necessariamente a bater certo era que a declaração devia ter sido recebida com uma atitude calorosa e acolhedora. A natureza imprevisível e desconhecida dos homens assustava-a. Na sua imaginação, ele fora recetivo, mas na realidade não estava a comportar-se como ela queria. Não estava a fazer o que os heróis dos romances faziam.
Ele soltou uma risada breve e tensa.
– Estás a brincar, Bernie, não estás? Muito engraçado. – Falou educadamente, como se ela fosse uma estranha, mas o pior era que estava a afastar-se lentamente, como se ela fosse louca ou ameaçadora, uma criatura selvagem prestes a desferir um golpe fatal.
– Não, Tim, por favor. Sabes muito bem que não estou a brincar. Amo-te. Amo-te tanto.
Tim baixou a cabeça e Bernadette reparou, pela primeira vez, que ele tinha o cabelo a ficar grisalho nas têmporas. Pegou-lhe nas mãos com gentileza.
– Nunca quis magoar-te.
– Então não me magoes! É tão fácil não me magoares. – Inclinou-se para o beijar mas ele afastou-se.
– Estou noivo da Elizabeth.
Bernadette estava a respirar de forma irregular, o peito a subir e a descer num ritmo demasiado acelerado.
– Podes dizer-me sinceramente – começou, trespassando os olhos dele com os seus –, que não me desejas?
O rubor que se espalhou do pescoço às orelhas anunciou silenciosamente a derrota dele.
– Não posso dizer isso – admitiu, infeliz. – Claro que te desejo. És tão jovem, e viva… e bela.
Tentou beijá-lo de novo mas os seus lábios mal lhe tinham tocado quando ele se levantou de um salto e começou a andar de um lado para o outro.
– Não posso, Bernie, não posso – disse, abalado.
Bernadette achou que era bom sinal; conseguia sentir a vitória a aproximar-se. Estranhamente, naquele momento, imaginou o rosto plácido de Elizabeth a fitá-la, aqueles olhos azuis inexpressivos e ignorantes. Afastou firmemente o pensamento, sem qualquer
peso na consciência.
Lentamente, descalçou os sapatos de salto alto, deitou-se na cama e pousou a cabeça na almofada.
– Podes – disse, num murmúrio rouco. Ele parou e fitou-a, consternado. – Não suporto estar sem ti, Tim. Amo-te desde o primeiro dia, a sério. Quero estar contigo. Cada pedacinho de mim ama cada pedacinho de ti. Quero casar contigo e ter uma carrada
de bebés!
Sentiu as lágrimas a encherem-lhe os olhos, o que era alarmante. Tim parecia prestes a chorar também. Sentou-se de novo na cama ao lado dela e começou a acariciar-lhe a perna, ao pé do joelho. Ela susteve a respiração com a expectativa e esperou que a mão subisse até à coxa. Sorriu-lhe de forma encorajadora. Mas a mão ficou no joelho e Bernadette apercebeu-se de que o toque não pretendia espicaçar a sua paixão mas sim reconfortá-la, como o toque de uma mãe a consolar uma criança. Lembrou-se da mãe e de como ela desaprovaria este comportamento embriagado e sentiu o coração apertado.
– Tu… tu desejas-me – insistiu, com a voz a vacilar. – Sei que sim.
– Sim, é verdade, Bernie. Mas nunca te poderei ter.
– Porquê? – gritou, com petulância.
– Porque gosto demasiado de ti. E de mim, o suficiente para ser sensato. E, quer dizer… tu és meio louca!
– Isso não faz sentido nenhum – disse ela, sentando-se, aborrecida.
– Quero estar contigo. Para sempre!
– Por favor, para – gemeu ele. – Não digas mais nada. Vais arrepender-te. Vais odiar-me por te ter deixado falar. – Parou e soltou uma risada nervosa ao olhar para ela. – Oh, Bernie, és tão intensa. És de mais para mim. Fartar-te-ias ao fim de uma semana.
O riso não lhe agradou, mas sentiu um vislumbre de oportunidade
no último comentário.
– É isso que pensas? – perguntou baixinho, com ternura. – Que eu me fartaria de ti, meu querido? Nunca. És a única pessoa que amo neste mundo, Tim. És o único homem em quem confio, que sei que seria bom para mim.
– Amo a Elizabeth – disse ele, sem conseguir fitá-la nos olhos.
Bernadette ficou tensa e uma sensação calma e gelada entorpeceu-lhe o coração. Conhecia essa sensação – era o momento antes de a tempestade rebentar, a calma de uma mente límpida antes de a fúria se libertar de forma primitiva e incontrolável.
– Acabaste de dizer que me desejavas.
– Não o devia ter dito. Estou noivo. Não o devia ter dito.
E agora a fúria soltou-se, o rancor e a raiva a fluírem sem controlo,
o corpo a tremer com o esforço.
– Pois não, não o devias ter dito se não vais fazer nada a esse respeito. Sempre soubeste o que eu sentia por ti. Porquê os joguinhos de sedução? Porquê todos os suspiros, e os apertos de mão secretos, e os olhares melancólicos, e os e-mails incessantes? Porquê? És igual aos outros todos e eu pensei… pensei mesmo… que eras um homem bom. O único homem bom.
– Não pensei que fosse assim tão sério para ti, Bernie. Quer dizer, és a Enfeitiçadora de Homens; é o que fazes! És sedutora com toda a gente.
– Não te atrevas a usar isso contra mim – gritou ela. – Foste tu que fizeste de mim a Enfeitiçadora de Homens! Não quero saber de mais ninguém senão de ti. Desprezo intensamente todos os homens além de ti.
Ele baixou a cabeça pateticamente e Bernadette nunca o tinha visto tão corado. Estava perturbado, mas ela não conseguia parar. Sabia, na verdade, que ele nunca atravessara conscientemente a barreira de uma amizade, apesar de ela lhe ter dado mil sinais subtis do seu desejo. Mas não conseguia ser justa. A humilhação da rejeição era amarga e invulgar e estava horrorizada consigo própria. Ser ultrapassada por Elizabeth era um pensamento odioso e o que mais a magoava era o seu próprio comportamento, a sua idiotice e descontrolo.
– Como podes preferi-la a mim? – inquiriu, furiosa. – Diz-me! Sou mais nova e mais bonita! Sou mais inteligente!
A expressão no rosto de Tim assombrá-la-ia até ao fim dos seus dias. Estava inexpressivo, o rosto vazio como uma folha de papel em branco, a emoção subitamente desaparecida. Ela repugnara-o, assustara-o, chocara-o, e perdera-o para sempre.
– Não fales assim – pediu Tim.
– Não tens o direito de me dizer o que fazer! – exclamou e, antes de conseguir pensar, levantou a mão para o esbofetear. Conteve-se a tempo e conseguiu não o atingir com toda a força, mas mesmo assim finalizou o gesto com um golpe ao de leve. A ação patética era ainda pior do que uma bofetada a sério, mas pareceu ainda assim horrivelmente ruidosa no quarto vazio. Bernadette encolheu-se quando a mão tocou no rosto dele, mas Tim permaneceu impassível. Baixou a mão como se a tivesse queimado e a raiva transformou se imediatamente em calma. – Desculpa – murmurou.
Tim segurou-a pelos ombros. As suas mãos eram firmes mas os olhos continuavam vazios e inexpressivos.
– Não, Bernie, eu é que peço desculpa. – Suspirou, tirou os óculos e esfregou a cara. Parecia tão jovem e querido que ela teve vontade de chorar; sentia-se fraca com a vergonha e o sentimento de culpa. – Vou voltar para junto da Elizabeth e dizer-lhe que bebeste de mais. Por favor, vamos fingir que isto nunca aconteceu. Dou muito valor à nossa relação profissional. E gosto mesmo de ti.
Antes que ela conseguisse responder, abraçou-a rapidamente, beijou-a na cabeça e saiu do quarto, fechando a porta atrás de si.
Bernadette deixou-se cair na cama, com a mente num turbilhão. A vergonha de ser preterida por Elizabeth, a mulher mais enfadonha e feia do planeta, era quase insuportável. Fechou os olhos com força, cerrou os punhos, encolheu os dedos dos pés e rezou com todas as suas forças para que estes sentimentos desaparecessem. Nada podia ser pior do que isto.
– É verdade – disse uma voz do jardim. – Estaria farta dele ao fim de uma semana.
Bernadette endireitou-se e abriu os olhos, assustada. Ali, emoldurado pela ombreira das portadas abertas e pelas cortinas ondulantes, estava Radley Blake.
– Como… há quanto tempo está aí? – perguntou, com a boca seca.
Ele soltou uma risada brusca.
– Há tempo suficiente. Estava a explorar o jardim e vi-a entrar. Primeiro, pensei que tinha vindo à minha procura, mas…
– Porque não disse nada?
– E perder a diversão toda? Diga-me, sabe o que significa melodrama?
Bernadette sentiu a bílis subir-lhe à garganta. Todo o excesso de emoções – e ela tinha uma abundância de emoções – se concentrou
agora no homem que a provocava.
– Como se atreve… – começou.
– Oh, não me interprete mal. Eu até a admiro, a sério. O Tim devia agradecer aos céus o interesse de uma rapariga com a sua… como era?… juventude e vitalidade e beleza.
– Vá à merda!
– Ah, nada disso! O que aconteceu à eloquente sedutora de há pouco? Gostava de saber se consegue encontrar as coisas negativas nos disparates que acabou de dizer. Havia de vir para mim com essa conversa, para ver como eu reagia. Seria muito mais recetivo do que o último tipo, acredite. – Ao contrário do seu discurso indolente e arrastado de antes, as palavras eram agora velozes e faziam-lhe doer a cabeça. Ele estendeu as mãos numa paródia cruel e abriu os braços como ela fizera ao pedir para Tim se juntar a ela na cama.
– Isto não é real – disse ela em tom firme, levantando-se. – É apenas a minha imaginação. Isto não passa de um sonho.
– Garanto-lhe que sou tão real como você, e igualmente humano. Somos iguais, nós os dois.
Ele confundia-a. Não o conseguia decifrar. Tinha de fugir deste fantasma melífluo. Estava agoniada pela humilhação, mas pelo menos não tinha de o voltar a ver.
– Vou-me embora – disse, cansada, e dirigiu-se à porta do quarto. – Se alguma vez falar disto a alguém, amaldiçoo-o durante mil anos.
– Acredito no poder da sua bruxaria – respondeu ele, entrando rapidamente no quarto para lhe bloquear a saída.
– Deixe-me passar, senão grito.
Devagar, ele tapou-lhe a boca com a mão enorme e beijou as costas da própria mão, deixando-a sentir o seu hálito quente no rosto.
– Grite à vontade. – O gesto não era realmente ameaçador, mas ainda assim era demasiado ousado para o gosto dela. Este homem era polarizador, de alguma forma, apesar de a sua respiração a ter acalmado. O calor íntimo na face era como um potro a soprar ar doce das narinas, um gesto amistoso e inocente.
– Deixe-me levá-la a casa – ofereceu-se ele.
– Nem pensar – estremeceu, abanando a cabeça. – Tem a ideia errada em relação a mim. Não costumo atirar-me assim a qualquer homem… – Um pequeno soluço escapou-lhe do peito e, perdendo o controlo, desatou a chorar.
– O que a faz pensar que quero alguma coisa consigo? Estou apenas a tentar ser um bom samaritano. Como foi que me chamou? Salvador indesejado? Além disso, quer mesmo sair daqui sozinha e correr o risco de dar de caras com o Tim ou a Elizabeth? É muito melhor se estiver demasiado maldisposta para ser vista. Deixe-me levá-la e ajudá-la a fugir no meu carro.
As palavras eram sinistras mas os seus olhos pareciam bondosos.
– Não preciso de ser salva – disse, entre as lágrimas.
Ele revirou os olhos e pegou-lhe facilmente ao colo. Naturalmente, era tão forte como o corpo musculado sugeria.
– Venha daí, minha jovem – sorriu. – Feche os olhos e finja estar num coma alcoólico.
– Não estou bêbada.
– Claro que não.
– E não me chame «minha jovem». É tão condescendente.
– E eu a pensar que estava a ser simpático. Pode ter a certeza de que me ocorrem coisas muito piores para lhe chamar.
Bernadette lançou-lhe um olhar furioso e preparou-se para retaliar, mas algo no movimento dos lábios dele a impediu. Escolheu o rumo mais sensato. Fechou os olhos e encostou a cabeça àquele ombro ridiculamente largo.