O impacto da pandemia teve um efeito inédito no mercado da eletricidade em Portugal. Pela primeira vez houve uma descida extraordinária das tarifas reguladas em abril, justificada com uma baixa dos preços da energia no mercado grossista que levou as cotações a ficar muito aquém da estimativa que serviu de referência para calcular os preços fixados para 2020.
A decisão anunciada pela ERSE (Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos) de baixar a fatura elétrica em 3% beneficiou apenas um em cada seis consumidores domésticos da eletricidade — um milhão de pessoas, num universo de mais de seis milhões — e deixa de fora as empresas.
O regulador considerou, na ocasião, que “dada a continuada tendência de descida dos preços no mercado grossista, é expectável que também os comercializadores do mercado liberalizado continuem a refletir essa redução nas suas ofertas comerciais, permitindo que os consumidores do mercado liberalizado também beneficiem de uma descida de preços”.
Crise na procura faz tarifa regulada da eletricidade para as famílias descer 3% em abril
No entanto, a maioria dos comercializadores, incluindo alguns com quotas de mercados expressivas, não estão a seguir, para já, esta expetativa. E só tencionam fazê-lo em 2021 quando atualizarem os tarifários em nome da estabilidade de preços que os seus clientes valorizam, argumentam. As empresas destaquem ainda as medidas que tomaram para apoio às famílias no pagamento das faturas.
Há elétricas que já reduziram o preço das novas ofertas comerciais para as famílias, em linha com a tendência do mercado grossista. Mas para as aproveitar é preciso mudar de fornecedor e fazer novo contrato.
Fonte oficial da ERSE indica que, graças à análise ao mercado liberalizado nas duas semanas a seguir à descida das tarifas regulada, verificou que “dos 19 comercializadores no mercado livre com ofertas ativas, 7 apresentaram reduções na sua oferta mais competitiva, tendo a maioria apresentado reduções com uma variação percentual superior à da tarifa do mercado regulado”.
O regulador adianta que estas descidas resultam de estratégias comerciais adotadas através de campanhas promocionais durante o estado de emergência. E acrescenta que dois comercializadores já tinham atualizado as suas ofertas em março. No entanto, a resposta não esclarece se estas reduções beneficiam os clientes que as empresas já têm na sua carteira, ou apenas quem contrate estas ofertas mudando de comercializador.
Algumas comercializadoras, como a Luzboa, têm ofertas indexadas ao preço do mercado grossista, “ao preço justo”, mas são poucos os clientes domésticos que procuram estes produtos, de acordo com as empresas ouvidas pelo Observador. A esmagadora maioria, sobretudo as famílias, optam por ofertas que garantam estabilidade no preço que vale por um ano a partir da contratação. A atualização é feita ou no início de cada ano, ou quando termina o período de um ano que foi contratado.
Para fixar o preço a cobrar num horizonte temporal alargado, as comercializadoras compram antecipadamente a energia, o que neste contexto significa que pagaram valores mais altos do que os atuais. E são esses valores que estão a ser passados para os clientes nos contratos em vigor, como frisou o ministro do Ambiente no Parlamento na semana passada. Matos Fernandes explicou que os “comercializadores de energia não compram a eletricidade no mercado spot — o preço dos contratos para entrega no dia seguinte chegou a cair mais de 30% – e quem compra sujeita-se a ter um prejuízo brutal e por isso ela é comprada a um determinado preço. Não é porque o preço baixou que alguém devolve algum dinheiro. É o risco do seu negócio”.
Se a energia que está a ser vendida aos clientes reflete os preços do mercado grossista de 2019, mais altos, as elétricas estarão agora ativas a contratar a energia, ou pelo menos uma parte, que vão vender em 2021. E como estão a transacionar a preços mais baixos terão, também de a vender mais barata. Ainda que seja preciso esperar meses até que este efeito chegue aos bolsos dos clientes.
O que estão as empresas a fazer
Questionada sobre se desceu os preços, a EDP Comercial explica ao Observador que aposta numa “política de sustentabilidade de preços, uma segurança que é reconhecida e valorizada quer pelos clientes domésticos, quer pelos empresariais”. “Garantir essa estabilidade aos clientes resulta de uma política de compra antecipada de energia, que permite manter inalterados os preços finais em situações de aumentos súbitos no mercado grossista, como aconteceu, por exemplo, em 2018″, conclui.
Ora se em 2018 a elétrica não passou esse aumento das cotações para os clientes, o mesmo acontece quando os preços grossistas descem, refletindo-se as alterações de forma mais sustentada apenas aquando da revisão anual levada a cabo pela EDP Comercial”.
O presidente executivo da EDP já reconheceu que isso irá acontecer a prazo, sem indicar data.
“Estruturalmente havia já um impacto positivo das renováveis e temos esta descida histórica do petróleo. Os dois elementos contribuirão de certeza para uma descida do preço da energia a prazo de uma forma sustentada”, afirmou António Mexia no final de abril à saída de uma audiência com o Presidente da República.
A EDP Comercial, que abastece cerca de 85% dos clientes domésticos do mercado liberalizado, destaca ainda as medidas que adotou para “apoiar as famílias portuguesas” e que passam pelo aumento do nível de descontos nos planos de eletricidade, que podem chegar agora aos 10%. A elétrica flexibilizou o pagamento das faturas dos clientes até 12 meses sem juros, uma opção que teve uma adesão significativa, com um crescimento expressivo de pedidos de acordo de pagamento”, acrescenta.
A Iberdrola reviu os tarifários em abril, mas apenas para novos clientes, que foram “melhorados” (ou seja, o preço foi reduzido) face aos disponíveis no primeiro trimestre. A empresa assinala que o “mercado trabalha habitualmente com contratos de 12 meses e que existe inércia normal no ajuste, o que significa que previsivelmente continuaremos a melhorar a competitividade dos preços”. E avisa ainda que as reduções do preço no mercado grossista “são atenuadas na fatura final devido ao peso notório das tarifas de acesso, impostos e taxas”.
A elétrica espanhola também valoriza a “estabilidade” tarifária, que considera ser fundamental para o planeamento empresarial e familiar no momento em que celebra os contratos com os clientes. Daí que só na revisão anual serão feitas ofertas “em linha com as condições de mercado e ajustadas aos interesses e necessidades dos consumidores”.
A Goldenergy assegura que antecipou a nova realidade motivada pela pandemia e pelos novos preços, ao lançar em março um tarifário 7% mais barato. “Ou seja, uma descida que se traduz em mais do dobro do que aconteceria uns dias depois, no mercado regulado em abril de 2020”, diz ao Observador o diretor-geral da empresa, Miguel Checa.
A empresa assinala que compra a eletricidade nos mercados de futuros para gerir da melhor forma os preços de compra de energia para evitar o risco e a incerteza. “Os preços que fornecemos não têm em conta unicamente os preços spot do mercado, já que, para garantir a estabilidade do preço da energia, esta é comprada por antecipação. Assim, a volatilidade dos preços spot não pode ser o único fator a ter em conta para determinar os tarifários de venda”.
A Endesa tem um preço fixo para os seus clientes residenciais, “para evitar, precisamente, a volatilidade dos mercados”. A elétrica assinala que foi uma das primeiras do sector a lançar um pacote de medidas que ajuda os consumidores a baixarem os custos das suas faturas e facilita o adiamento de pagamentos.
No caso das empresas, há contratos que têm associadas coberturas financeiras nos mercados a prazo (futuros ) feitas no momento em que são fechados e que visam proteger das subidas nas cotações do mercado grossista. A elétrica adianta que está a contactar estes clientes para repercutir “a baixa registada nos mercados grossistas a todos os clientes que entenderam iniciar os seus processos de renovação com a Endesa.”
As elétricas estão a ganhar margem?
A demora em fazer repercutir nos consumidores a descida acentuada do custo de aquisição da eletricidade no mercado ibérico de eletricidade, levou o Bloco de Esquerda a questionar o aumento de margens das empresas e a suscitar até a possibilidade de criar uma taxa sobre esses lucros extraordinários e imprevistos, num requerimento para ouvir a presidente da ERSE, Cristina Portugal que irá ao Parlamento esta quarta-feira.
“Considerando que as comercializadoras vendem a eletricidade a preços contratualizados antes da crise pandémica, verificam-se neste momento volumosos ganhos comerciais resultantes daquele fator, externo ao setor e ao mercado. É certo que a determinação desses ganhos não pode fazer-se pela simples relação entre preço médio de mercado e evolução de procura (estimando em 50€/MWh o preço final da componente de energia ao cliente, estaríamos perante um aumento adicional na margem da comercialização na ordem de um milhão de euros diários)”.
É exatamente o contrário, argumentam responsáveis de algumas empresas contactadas pelo Observador. A estratégia assenta na compra de energia antecipadamente para cada cliente e para o período em que o contrato está em vigor. A energia que os clientes agora estão a consumir já foi comprada a um preço mais alto, e fixada a esse valor por um ano, para evitar a volatilidade que os clientes não querem. Quaisquer desvios que existam vão à margem.
Artur Trindade, presidente do OMIP (Operador do Mercado Ibérico a Prazo) e antigo secretário de Estado da Energia no governo PSD/CDS-PP, que é o polo português do Mibel, explica o racional desta estratégia de aprovisionamento.
“Não faz sentido estar a acompanhar a cotação diária quando se está a comprar/aprovisionar energia para fornecer mais tarde ou num período longo de tempo. É mais importante acompanhar os preços do produto para o trimestre ou mesmo para um ano. A energia que está a ser vendida no ano de 2020 terá sido em grande parte adquirida até ao final de 2019, portanto com preços mais altos. E é essa cotação que reflete o valor económico associado àquele contrato de energia e não o preço no mercado spot”.
Acontece que as empresas foram surpreendidas com um fenómeno nunca visto neste mercado, e que é um efeito colateral das medidas de combate à pandemia. Uma queda muito acentuada do consumo de 12% em abril. Ainda que com um comportamento distinto entre famílias — que fechadas em casa até consumiram mais (11% em março e 4% em abril) — e empresas cuja procura chegou a cair 20% em abril.
E o que fazer com a energia comprada ao preço de há um ano e que não é consumida? A solução tem sido vender o excedente no mercado, mas aos preços atuais, mais baixos. Estão a perder dinheiro. O problema tem uma dimensão europeia.
Será esta a estratégia de um operador “responsável e prudente”, quando faz ofertas que reduzem a exposição do cliente final à volatilidade dos preços. Mas depende também das estratégias comerciais e tarifárias das empresas. São raros os operadores que estão totalmente expostos ao preço do mercado spot, porque isso tornaria muito difícil cumprir as condições contratadas, e poderia resultar na falência de um comercializador. É claro que também se pode ganhar muito dinheiro, mas aí o nome do negócio passa a ser especulação financeira e não fornecimento de eletricidade.