Começou com o óleo alimentar, cujas vendas continuam limitadas nos supermercados. Alastrou agora para a farinha, ainda que para já apenas na venda por grosso. O aumento dos preços dos bens alimentares, à boleia da guerra na Ucrânia, está a gerar um fenómeno que a distribuição garante não ser justificado: o açambarcamento. Foi preciso, por isso, tomar medidas, e colocar travões.
Em todas as superfícies consultadas pelo Observador, foi possível confirmar que a venda de óleo alimentar ainda está limitada a uma certa quantidade por clientes. No Continente e no Pingo Doce, é possível adquirir no máximo seis litros por cliente, uma medida justificada com a “elevada procura”. No Auchan, o limite baixa para três litros por consumidor. O travão estende-se aos grossistas. No Recheio, do grupo Jerónimo Martins, é possível comprar diariamente 75 litros de cada referência. Entre 2018 e 2020, segundo uma análise do think tank Bruegel, a Ucrânia era responsável por 41% das exportações mundiais de óleo de girassol, e a Rússia de 16%.
Já a farinha, como foi avançado esta sexta-feira pelo Jornal de Notícias, está limitada a cinco unidades diárias por cliente na Makro.
Segundo fontes do setor ouvidas pelo Observador, não se trata de fazer racionamento por falta de produto, mas de garantir que, face à elevada procura — com os consumidores a recearem mais aumentos e alguma escassez –, é possível fazer atempadamente a reposição de stocks.
Em Espanha, onde a inflação atingiu em março os 9,8%, o valor mais alto desde 1985, há desde esta quinta-feira uma nova lei que permite que os supermercados limitem as quantidades de venda de alguns produtos. Uma medida justificada apenas em circunstâncias “extraordinárias e de força maior”. A proibição de limitar a quantidade de produtos que podem ser adquiridos por cada comprador estava prevista na lei espanhola.
No país vizinho a situação foi agravada pela greve dos camionistas, que atrasou o abastecimento das grandes superfícies, e gerou uma autêntica corrida aos supermercados. A procura por leite, por exemplo, disparou quase 50% na semana de 14 a 20 de março face ao mesmo período do ano passado, relata o El País.
Em Portugal, a legislação em vigor em matéria de infrações antieconómicas e contra a saúde pública dita que “a recusa de venda considera-se justificada” apenas nos casos de “satisfação das necessidades do abastecimento doméstico do produtor ou do comerciante”, da “satisfação das exigências normais da exploração agrícola, comercial ou industrial, durante o período necessário à renovação das existências” e da “satisfação de compromissos anteriormente assumidos”.
A crise alimentar passou a ser encarada como uma prioridade para o Governo, desde que começaram a ser palpáveis as consequências da guerra na Ucrânia. No Programa de Governo, publicado esta sexta-feira, os “acontecimentos mais recentes” justificaram a inclusão da segurança alimentar e da autonomia estratégica como prioridade para a legislatura.
“A evolução da situação mundial desde o início da pandemia, e em particular os acontecimentos mais recentes, reforçam a centralidade” do tema nas preocupações do Executivo, lê-se no guião do novo Governo de António Costa.
Neste sentido, “assegurar uma autonomia estratégica alimentar constitui uma prioridade política que passará por uma atuação num plano global, de posicionamento no mercado global e de articulação com os nossos parceiros na União Europeia, com um âmbito que inclua todo a produção alimentar, e que reforce também a importância dos circuitos curtos de abastecimento e se articule e incorpore o conceito ‘One Health’”, refere o documento.
Como a guerra alterou os planos de Costa para o Programa do Governo
A guerra entre a Rússia e a Ucrânia colocou pressão adicional a um setor que ainda sofria com as dores da pandemia. Em 2021, a Rússia foi responsável por 18% das exportações mundiais de cevada e 12% das vendas de trigo. Já da Ucrânia provieram 14% das exportações globais de cevada e 10% das exportações de trigo. Com os “celeiros” do mundo em guerra, a Europa acordou para a necessidade de trabalhar no sentido reforçar a sua autonomia estratégica alimentar, numa altura em que o aumento dos preços já é bem visível na inflação e, sobretudo, no cabaz de compras dos europeus.
O Instituto Nacional de Estatística (INE) revelou esta semana que a taxa de variação do índice de preços no consumidor (IPC) foi de 5,3% em março, na variação homóloga. Desde junho de 1994 que o valor da inflação não era tão elevado. Já esta sexta-feira, a estimativa rápida divulgada pelo Eurostat revela uma aceleração da inflação na zona euro para 7,5% em março, um valor nunca visto na união monetária. O aumento de 45% nos preços da energia foi o principal trampolim do indicador. Já a rubrica que inclui os preços dos bens alimentares aumentou 5% no mesmo mês, face aos 4,2% de fevereiro. Em Portugal, a taxa de inflação homóloga harmonizada (IHPC) calculada pelo Eurostat ficou nos 5,5%. Em países como a Estónia e a Lituânia, o indicador situa-se nos 15%. Nos Países Baixos os preços subiram 11,9% e na Alemanha 7,6%.
A crise levou o Governo a criar, em março, um apoio de 60 euros para as famílias carenciadas, com o objetivo de mitigar o “aumento extraordinário dos preços dos bens alimentares de primeira necessidade”. O apoio, relativo a março, será pago em abril e vai abranger as famílias beneficiárias da tarifa social de eletricidade.
O valor fica pouco além dos montantes médios de um cabaz representativo de produtos essenciais, reunido pelo Observador, em três das principais retalhistas no dia 1 de abril, e composto por óleo alimentar, atum, farinha, arroz, massa, bolacha Maria, cereais Corn Flakes, leite, farinha láctea, maçãs, bacalhau, frango, feijão, ovos, açúcar, pão, papel higiénico e fraldas. No primeiro dia de abril, o preço deste cesto de compras, cujas marcas não coincidem em todos os produtos, variava, nas três superfícies, entre os 49,43 euros e os 55,89 euros.
Para já, a palavra “racionamento” não faz parte do vocabulário da grande distribuição, apesar de a Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP) já ter admitido esse cenário. Do lado do Governo a mensagem é a mesma: “não antevemos que falhem produtos de abastecimento nos supermercados”, declarou a ministra da Agricultura a 21 de março, apelando para que se evite o “pânico”.