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زن، زندگی، آزادی. Numa tradução do persa para o português, “mulheres, vida, liberdade”. Na prisão de Evin, onde estão detidos vários presos políticos pelo regime iraniano, é frequente ouvir-se, principalmente na ala feminina, um cântico com aquelas três palavras. Também em manifestações nas ruas de várias cidades do Irão, no final do ano passado, era possível escutar a mesma canção. Esta sexta-feira, em Oslo, ouviu-se novamente “mulheres, vida, liberdade” em persa, desta vez pela voz da presidente do Comité Nobel, Berit Reiss-Andersen, para anunciar que a ativista pelos direitos humanos Narges Mohammadi tinha sido a vencedora do Prémio Nobel da Paz em 2023.
Ativista e defensora dos direitos das mulheres desde que era estudante, Narges Mohammadi está detida na prisão de Evin desde 2021 e pode enfrentar uma pena de 31 anos — estando também condenada a 154 chicotadas. Longe da família e sem a poder contactar, a mulher de 51 anos indicou que essas foram duas das consequências do caminho que elegeu — a luta pelos direitos humanos num país teocrático e cada vez mais fechado. “Eu escolhi não ver os meus filhos nem ouvir as suas vozes e ser a voz dos oprimidos, das mulheres e das crianças do meu país”, confidenciou numa carta enviada à CNN internacional desde a cela.
Na prisão de Evin, mesmo correndo o risco de sofrer represálias, a ativista faz de tudo para retratar o que se passa nas celas e também para denunciar os abusos das autoridades iranianas. “Ouvi histórias de três mulheres que foram sexualmente abusadas por guardas”, escreveu Narges Mohammadi na carta ao canal norte-americano, garantindo que aquele período “é a maior era de protestos” daquele estabelecimento prisional nos arredores de Teerão.
Pela luta pela “liberdade de expressão” e pelo “direito à independência num país que quer esconder as mulheres e cobrir os seus corpos”, o Comité Nobel decidiu premiar Narges Mohammadi pela sua “luta corajosa pelos direitos humanos, liberdade e democracia”. E a Academia Sueca não escondeu que, com este galardão, quer mandar um recado ao regime iraniano, aconselhando-o a “ouvir o seu povo”, para trabalhar rumo a uma “sociedade sustentável”, com “direitos democráticos e respeito pelos indivíduos e pelos direitos humanos”.
As lutas de Narges Mohammadi
Nascida em 1971 em Zanjan, no oeste do Irão, Narges Mohammadi cresceu numa família de classe média inserida num ambiente fortemente politizado graças à parte materna da família, segundo o New York Times. Ainda que a mãe a tivesse aconselhado por várias vezes a não seguir uma carreira na política, os esforços foram em vão, muito por conta das influências da sua própria família.
O irmão e os dois sobrinhos de Ozra Bazargan, a mãe da ativista, opuseram-se à revolução islâmica de 1979, que derrubou a dinastia Pahlavi e levou à instauração de um regime teocrático. Pelas suas ações políticas contra o novo governo, acabaram presos e um dos primos de Narges Mohammadi foi mesmo executado. Todas estas experiências moldaram o temperamento da jovem, que faz questão de recordar que uma das suas memórias de infância é a maneira como a mãe preparava as idas à prisão para ver o irmão e os sobrinhos, levando-lhes fruta fresca.
Mais de 40 anos volvidos desde os tempos pós-revolução islâmica, Narges Mohammadi converteu-se num “membro muito importante e valioso da sociedade civil iraniana”, diz, em declarações ao Observador, Tara Sepehri Far, membro do think tank Chantam House e especialista no estudo de abusos de direitos humanos no Irão e no Kuwait. “Ela trabalha para construir coligações e pontes dentro dos grupos de sociedade civil, em assuntos como o fim da pena de morte e as celas solitárias.”
Para além da pena da morte e o fim de abusos contra prisioneiros, que a família de Narges Mohammadi sofreu na pele, a ativista sempre lutou para uma sociedade igual entre homens e mulheres. Assim sendo, quando chegou à universidade para estudar física, a jovem ficou surpreendida quando se apercebeu que não havia nenhuma associação que defendia os direitos das mulheres — e, por essa razão, criou uma, assim como outra de escalada apenas para mulheres.
As suas atividades políticas, abertamente contra as diretrizes do regime teocrático, originaram que desde cedo estivesse na mira das autoridades iranianas. Segundo a PBS, Narges Mohammadi chegou a ser impedida de escalar e foi duas vezes detida na universidade. Mas nada parecia travar as reivindicações da ativista que, quando acabou a faculdade, trabalhou enquanto engenheira, ao mesmo tempo que escrevia artigos em jornais, sempre em defesa dos direitos das mulheres.
Em 2003, a ativista junta-se ao Centro de Defensores de Direitos Humanos, fundado por Shirin Ebadi, que foi a primeira iraniana a ser distinguida com o Prémio Nobel da Paz, em 2003. Narges Mohammadi chegou a vice-presidente da organização que defendia os direitos das mulheres, de presos políticos e das minorias no Irão. Mas aquele cargo — com visibilidade pública — acabou por lhe trazer muitos dissabores; em 2008, por exemplo, a empresa para a qual trabalhava enquanto engenheira foi obrigada a despedi-la.
Detida treze vezes e condenada outras cinco, Narges Mohammadi enfrentou inúmeras dificuldades ao longo da sua vida impostas pelos regime iraniano, que a acusou vezes sem conta de colocar em risco a “segurança nacional” do país. Ao longo de todo este percurso, o que mais custou à ativista foi mesmo a sua relação com os seus filhos gémeos, Ali e Kiana, nascidos em 2006
O marido, Taghi Rahmani, está neste momento em França exilado com os dois filhos. Com uma carreira de ativista e também tendo sido detido várias vezes pelo regime iraniano, o casal decidiu que o mais acertado era que o pai e o filhos mudassem de país há oito anos. “Ela tem uma energia sem fim pelos direitos humanos”, contou Tahgi Rahmani à CNN internacional. Ao mesmo canal de televisão, o filho assegurou que está “muito orgulhoso da mãe”. “Ela não estava sempre connosco, mas quando estava, ela tomava bem conta de nós. Ela era uma boa mãe e ainda é.”
Na cela, é dos filhos que Narges Mohammadi tem mais saudades. “Quando olho a prisão desde a janela, [eu entendo] que sou uma estranha para a minha filha e para o meu filho mais do que qualquer estranho”, confidencia na carta enviada à CNN internacional, lamentando que perdeu “os melhores anos da sua vida” que “nunca voltarão”. “Mas tenho a certeza que, num mundo sem liberdade, igualdade e paz, não vale a pena viver.”
O prémio Nobel e os efeitos na luta dos iranianos
Em setembro 2022, Mahsa Amini foi detida por usar incorretamente o hijab, num altura em que as autoridades iranianas obrigavam ao uso do lenço islâmico e aplicavam medidas mais severas para as mulheres que não cumprissem o novo código de indumentária. A jovem de 22 anos, três dias após ser detida, acabou por morrer na estação de polícia. O Irão indica que sofreu de um ataque cardíaco, mas essa versão foi contrariada por vários investigações de órgãos de comunicação social, que davam conta de que Mahsa Amini foi espancada até ficar em coma.
Este episódio deu o mote para o início de grandes manifestações nas ruas iranianas, principalmente em defesa dos direitos das mulheres e contra o regime. O Presidente do Irão, Ebrahim Raisi, reagiu com pulso firme e tentou responder aos protestos ainda com mais violência. Recorrendo à força, as autoridades iranianas conseguiram novamente impor a ordem — mas à custa de 500 mortes, milhares de feridos e cerca de 20 mil detidos.
Na cerimónia desta sexta-feira, a Academia Sueca não esqueceu a morte de Mahsa Amini, que motivou os “maiores protestos políticos contra a brutalidade e contra a opressão das mulheres face ao regime iraniano desde que tomou o poder em 1979”. E a presidente do Comité Nobel reconheceu mesmo que a entrega do galardão à ativista também tinha como objetivo homenagear as “milhares de pessoas que protestaram contra as políticas teocráticas iranianas de discriminação e opressão contra as mulheres”.
Na opinião de Tara Sepehri Far, o prémio vai, efetivamente, “mandar uma mensagem de reconhecimento de coragem e resiliência a Narges Mohammadi”, assim como a outros “defensores dos direitos humanos que estão a trabalhar no Irão sob enorme pressão”. Vai ser suficiente para a organização de novos protestos contra o regime, à semelhança do que aconteceu no final do ano passado? A especialista não se atreve a antever.
A jornalista e ativista com nacionalidade norte-americana e iraniana Masih Alinejad, em declarações ao Observador, tem uma opinião distinta, enfatizando que a sociedade civil iraniana continua a opor-se ao regime. Acredita, no entanto, que o galardão vai dar mais “visibilidade” à luta pelos direitos das mulheres no Irão, mas realça que, mesmo sem aquele prémio, as mulheres iranianas seriam “corajosas e determinadas o suficiente para continuarem a sua luta contra a opressão”.
As duas especialistas concordam que o prémio vai realmente ter um impacto entre as autoridades iranianas. Para Tara Sepehri Far, o recado é “claro e óbvio”: “Nages Mohammadi e outros defensores dos direitos humanos devem ser imediatamente libertados”. Essa também é uma das esperanças da Academia Sueca. Durante o anúncio do prémio esta sexta-feira, a presidente do Comité Nobel, Berit Reiss-Andersen, disse esperar que a ativista esteja presente na entrega do galardão, num evento para marcado para dezembro deste ano.
Na visão de Masih Alinejad, este galardão também deve fazer pensar o Ocidente, que deve deixar de reconhecer legitimidade aos líderes da “República Islâmica do Irão”. “Isso é o mais importante e este prémio deve encorajá-los a fazer isso”, refere a jornalista.
Por sua vez, em declarações ao New York Times desde a prisão de Evin, Narges Mohammadi confessou que, após a Academia Sueca lhe ter entregado o prémio, sente-se mais “determinada, responsável, apaixonada e útil” em relação à luta pela democracia e pela igualdade. “Continuarei a lutar contra a discriminação, tirania e opressão com base no género por este governo religioso e opressor até que as mulheres sejam libertadas”, assegura.
“A vitória está próxima”, preconiza Narges Mohammadi, acreditando que o prémio possa fazer com que os “iranianos protestem pela mudança e fiquem mais fortes e organizados”.
Em contrapartida, o regime iraniano ainda não comentou a entrega do prémio Nobel a Narges Mohammadi. Apenas a agência de notícias Fars, com ligações ao regime, desvalorizou a entrega do prémio Nobel e repetiu o argumento de que a ativista colocava em causa a “segurança nacional” do país.
Por sua vez, vários países do Ocidente, incluindo Portugal, já vieram congratular-se pela escolha da Academia Sueca, prestando homenagem ao trabalho da ativista iraniana. Já o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, decidiu que não ia comentar a entrega de um galardão, isto num momento em que a Rússia e o Irão têm aprofundado as suas relações bilaterais.
Após dois anos dedicados à Rússia, Academia Sueca muda o foco
Narges Mohammadi não era uma das grandes favoritos para vencer o prémio Nobel da Paz 2023, ainda que o seu nome até constasse nas listas elaboradas pelas casas de apostas, que acreditavam que a Academia Sueca repetiria a tendência de 2021 e 2022, dedicando o galardão a alguém que se destacasse pelos esforços pela preservação da paz na Bielorrússia, na Rússia ou na Ucrânia.
Há dois anos, a Academia Sueca distinguiu o editor-chefe do jornal independente e de investigação russo Novaya Gazeta, Dmitry Muratov, ainda que também atribuísse o galardão à jornalista filipina, Maria Ressa. Já o ano passado, em que começou a guerra na Ucrânia, o Comité Nobel decidiu que entregaria o prémio ao ativista bielorrusso Ales Bialiatski, ao grupo de direitos humanos russo Memorial e à organização ucraniana pelos direitos humanos Centro para Liberdades Cívica.
Tal como no passado, o grande favorito para vencer o prémio era o Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, seguido do principal opositor russo, Alexei Navalny, e da líder da oposição da Bielorrússia, Sviatlana Tsikhanouskaya. Sem embargo, a Academia acabou por mudar o foco e entregar o prémio a uma ativista iraniana.
No anúncio desta sexta-feira, a presidente do Comité Nobel reconheceu que a guerra na Ucrânia continua a ser um tópico importante e que está inevitavelmente na ordem do dia quando se fala em paz. Porém, Berit Reiss-Andersen explicou que, este ano — vinte anos depois de a primeira iraniana ter vencido o prémio Nobel da Paz —, era “primordial” distinguir esta “situação única no Irão”.
A mensagem com a entrega deste prémio, frisou Berit Reiss-Andersen, não se destina apenas ao Irão, mas a todos os países em que se assiste a um retrocesso dos direitos das mulheres e dos direitos humanos, bem como serve como forma de protesto contra a situação dos presos políticos em todo o globo. Isto num momento em que “a democracia está em perigo em todo o mundo”, concluiu a presidente do Comité Nobel.