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Pois que hoje acordei bem cedo, logo pelas oito da manhã, para me preparar para ver o novíssimo programa da Cristina. Para entrar no espírito, vesti uma bata e montei a tábua de passar a ferro em frente à televisão, com uma pilha de roupa ao lado, dentro de um alguidar. Excecionalmente, mandei a senhora cá de casa servir o pequeno-almoço na sala, senão nunca mais saía da cama.
Às dez em ponto, começou a ligação direta à casa da Cristina Ferreira.
Literalmente a casa: o cenário é uma casa completa, com sala, quarto de dormir, casa-de-banho, escritório, corredores, dois lanços de escadas. Mas, por ser Cristina Ferreira que, como é conhecido, sabe ainda o lugar das estacas, a entrada deita diretamente para a cozinha. Menos mal, que não tem a porta de casa logo atrás do sofá, como acontece sempre nas casas dos ricos nas novelas. O estilo da decoração é simples, mas bonito. Ou bonito, mas simples. Toda a parede sul da casa é preenchida pelo público, o que corta um bocado a ilusão de estarmos mesmo numa casa na Malveira, mas anima bastante. Entre as quintessenciais velhas, gostei de ver também alguns adolescentes, o que mostra a abrangência dos fãs de CF, que bem merece que tenham faltado às aulas. E a verdade é que à segunda-feira também nunca se aprende nada. Pelo menos no meu tempo era assim.
O público não estava propriamente histérico, mas contente. E batia as obrigatórias palmas a que os programas de TV da manhã já nos habituaram, como se matassem pequenas moscas da fruta mesmo em frente ao nariz.
E eis que entra Cristina, atravessando um corredor, aparecendo para logo desaparecer atrás de uma parede, até descer os cinco degraus que a trazem ao nível dos nossos olhos.
Eu de moda não percebo nada, mas achei-a bonita, o cabelo um pouco abaixo do queixo, arranjado de um lado e do outro lado em “desculpem, é que andaram dois gatos à luta aqui na minha cabeça”. Para a sua estreia na SIC, a princesa Diana portuguesa elegeu um fato de calças e casaco de abas de grilo falante, mas preto, como se tivesse morrido o Pinóquio. Para quebrar o sombrio, as bandas são enfeitadas de um bordado prateado. Desculpem, isto é só inveja, que a Cristina é daquelas pessoas que pode estar de bata traçada às florzinhas que fica sempre bem.
O que ela andou para aqui chegar: o que é preciso para ser uma Cristina Ferreira?
Quem também vinha muito bem foi António Raminhos, que apareceu nu, com uma toalha atada à cintura e um secador de cabelo na mão. As one does, como dizem os ingleses.
Depois de ralhar a Raminhos por vir naquela figura, Cristina apresentou, à volta da mesa da cozinha, os convidados, que vão ser permanentes. Sendo uma mulher de preocupações estéticas, os convidados são em degradé, por alturas. E são eles: a queridíssima Joana Marques, a simpática Madalena Abecasis e, como já disse, o barbudo António Raminhos. Gosto sempre de acrescentar um adjetivo ao nome das pessoas, mesmo que seja aleatório. Neste caso, também poderia ser a simpática Joana Marques, a barbuda Madalena Abecasis e o queridíssimo António Raminhos. Ou a barbuda Joana Marques, a queridíssima Madalena Abecasis e o simpático António Raminhos.
Higiene íntima para todos
Neste primeiro programa, estiveram a tomar o pequeno-almoço, que ainda não tinham tomado. Foi um bocadinho um balde de água fria para quem acha que aquilo as estrelas da televisão é só champagne com morangos. Foi tudo mais à base de carcaças com manteiga e um bolo de iogurte feito pela própria Cristina. Depois, foram todos apresentados em pequenos vídeos, e ficámos a saber onde, como e com quem é que o Raminhos tem relações sexuais, que o marido de Joana Marques está contente de passar a ter as manhãs sem a mulher em casa e que Madalena Abecasis tem uma pilha de filhos e uma casa mais gira que a da Cristina. Desta vez, não voltaram a aparecer durante o resto do programa. Não sei se será sempre assim, se vão só tomar o pequeno-almoço. Já não é mau, quem me dera a mim.
Quem também apareceu para tomar o pequeno-almoço foi uma senhora muito simpática, Dona Micaela, que costuma vender umas buchas e um termo com café num estaleiro qualquer, que não apanhei o nome. Não percebi muito bem o que lá foi fazer, e creio que ela também não. Adiante.
Sai de cena Dona Micaela e desvenda-se quem será o primeiro convidado do primeiro programa: nada mais, nada menos que Luís Filipe Vieira, o presidente do Benfica, que também costumava vender sandes num estaleiro, ou qualquer coisa assim, mas que agora, ao contrário de Dona Micaela, é milionário. Faz ele muito bem. “Vamos falar de vida, da vida”, anuncia Cristina, numa clara alusão à entrevista de uma das filhas dessa figura maior da história do clube, Eusébio: “O meu pai deu-me o maior presente da vida, que foi dar-me vida”.
Como nem só de bolo de iogurte vive o homem, CF anuncia o passatempo diário do programa: basta ligar, escolher uma das divisões da casa e ganhar, sem precisar de responder a nenhuma pergunta, 5.000 euros. Ou mil contos na moeda antiga, como explicou Cristina, para quem, ao fim de quase vinte anos, ainda não se habituou às complexas conversões do euro.
“Olha lá, ó Raminhos”, inquire Cristina, “qual é a tua coisa preferida aqui na minha casa?”. Raminhos pensa um pouco e responde: “o bidé”.
Nessa altura, o coro de Gospel de Saint Dominic’s começa a cantar um clássico com a palavra bidé. Como acordei muito cedo e não tomei logo os remédios, não posso jurar que esta parte tenha acontecido mesmo, mas julgo que sim.
Mas o que aconteceu mesmo, que já puxei a box para trás, e já vi mais quatro vezes: eis que bate à porta um médico, que entra todo lampeiro com uma farda de enfermeiro e nos vem explicar como fazer a higiene íntima no bidé. Higiene íntima é uma expressão minha, a do médico foi mesmo como lavar o rabo depois de fazer cocó. Sentado no dito bidé, ensinou urbi et orbi que o rabo se lava da frente para trás (ou de trás para a frente, não consegui prestar atenção) nas senhoras e nos homens é indiferente. Bom, acho que, mesmo assim, é melhor do que convidar neo-nazis, por isso, venha de lá o médico na próxima semana ensinar a fazer um clister, que a casa-de-banho também tem duche.
“Eu já sabia que me iam preparar alguma!”
O programa entra depois num tom mais composto, e anuncia-se para amanhã uma entrevista a Filomena, a mãe de Rui Pedro, o jovem que desapareceu há vinte anos. Confesso que me emocionei.
A seguir, Custódia Gallego dá a sua primeira entrevista depois da morte do filho Baltazar, aos 32 anos, em Agosto do ano passado. Foi uma conversa sóbria e comovente. A atriz explicou que aceitou falar deste assunto em público porque isso pode ajudar quem passou ou está a passar pelo mesmo. E o tom foi sempre esse mesmo, sério e muito digno. Cristina chorou e eu também. Respect.
Pouco depois, a seguir a uns anúncios a cremes para a cara e a pomadas para o reumático, estava eu a admirar a bonita lareira falsa da sala de Cristina quando toca o telefone.
Cristina espanta-se. “Eu já sabia que me iam preparar alguma!”, diz, sagaz.
Já não são breaking news: do outro lado da linha estava o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, a quem Cristina pede para tratar por Professor, que não se ajeita a chamar-lhe Presidente, seguramente por ter mais uma sílaba.
“Está? Daqui é Marcelo Rebelo de Sousa. Interrompi aqui uma reunião que tinha e espreitei para ver o seu primeiro programa e, como ao longo da vida estive várias vezes consigo quando arrancou com novas fases da sua vida, queria desejar-lhe muitas felicidades e enviar-lhe um beijinho”.
As redes sociais escandalizam-se, Cristina emociona-se até às lágrimas, o público no estúdio mata mais umas quantas moscas da fruta. Eu não achei mal. Na América, o Obama também ligou para o programa da Ellen. Cada país tem o Obama e a Ellen que tem, por isso, metam a viola no saco e passem à frente.
“Esta é a minha vida, surpreender, mudar, fazer nascer”, diz Cristina.
“Interrompi aqui uma reunião”: Marcelo liga em direto para programa de Cristina Ferreira
E do telefonema de Marcelo, passamos para uma espreitadela a uma mudança de visual que conheceremos no programa de amanhã. “A Alexandra era isto”, anuncia CF antes de se ver em vídeo uma mulher que se descreve a si mesma como muito feia.
De facto, era. Como a Alexandra já fez a mudança de visual e já não é assim, como a Cristina e a própria mãe da Alexandra concordaram que ela era muito feia, sinto-me à vontade para desabafar aqui por escrito: a Alexandra não era feia. Feia sou eu. A Alexandra era medonha. A Alexandra era um susto. A Alexandra parecia a parte da frente de um desastre de comboio. A Alexandra parecia desenhada pelo Seth MacFarlane, o criador do “Family Guy”. A Alexandra parecia um dos disfarces do Roger, o extraterrestre do “American Dad”. A Alexandra parecia um ancinho com uma peruca dos chineses. A Alexandra parecia as minhas lasagnas, que saem sempre num estado lastimável do forno.
Bom, já me acalmei. “Ela vai enterrar esta mulher que é mesmo muito feia”, promete Cristina. E eu amanhã estarei de novo colado ao ecrã para ver a transformação de Alexandra de lagarta numa bela borboleta.
Aquele senhor que diz “deve de”
De mulheres feias, passamos a mulheres de boa cepa nortenha. CF foi ver in loco como vivem as mulheres de Castro Laboreiro. Mostrou-nos as capas negras que usam sempre, como viúvas de maridos que estão sempre ausentes em terras distantes. E falou-nos de uma velha tradição: por causa do frio, estas mulheres deixam as suas casas todos os invernos e mudam-se para o centro da aldeia (se calhar é vila, mas não parece nada).
Cristina, montada em cima de um trator, e de sedas debaixo do capote negro, que uma senhora é uma senhora, vai conversando com Isalina e Leonor que vão de armas e bagagens da banda, como se chamam as casas de inverno, para as inverneiras, como chamam às de verão. Bagagem essa que eram sobretudo galinhas. A aristocracia inglesa que ponha os olhos nisto, eles que acham muito chique passar a season em Londres e o resto do ano no campo.
“Para comprar roupa nova onde vão?”, pergunta a curiosa Cristina? A Melgaço ou a Espanha. “E onde arranjam o cabelo?». Em Melgaço. Fica subentendido que os cabeleireiros em Espanha são uma merda, mas ninguém o disse abertamente, pelo menos em frente às câmaras.
A seguir, já na casa de inverno, fizeram uma sopa de feijão verde, a que lá em cima chamam favecas, como os espanhóis. Uma das senhoras castro-laborenses fez uma cantiga em rima sobre a mudança de CF da TVI para a SIC cuja letra não consegui apanhar. Peço que me desculpem, que aquilo é assim meio galego com umas pitadas do que me pareceu açoriano, mas podia ser só a senhora que era sopinha de massa. De favas, vá.
Seguiu-se mais um lamiré do programa de amanhã: uma reportagem chamada “Clausura Feliz”. CF falou com várias freiras para desvendar um pouco dos segredos de uma vida passada toda dentro de um convento. “Acha que vai ficar aqui até ao final?”, pergunta Cristina. A resposta só saberemos amanhã, mas, pelo olhar da freira, quase que aposto que disse que sim.
Para o final caminha também o programa, não sem antes, claro, a sempiterna Crónica Criminal. Os comentadores de serviço: Hernâni Carvalho, o homem das insinuações nunca concretizadas, António Teixeira, que não sei o que fazia, mas acho que era polícia, e Vítor, advogado, cujo apelido não apanhei, mas que diz “deve de”.
O tema de hoje foram os oito anos que faz hoje que o cronista social Carlos Castro foi assassinado em Nova Iorque. Durante os quinze minutos seguintes, falou-se da pena de Renato Seabra, que foi de vinte e cinco anos, nunca menos, nunca sairá antes disso, e mesmo assim só vendo. Os três disseram isto, de várias maneiras, durante um quarto de hora. Que era uma coisa que já todos sabíamos há mais ou menos oito anos, mas vale sempre a pena lembrar.
Depois de se discorrer um pouco sobre “essas pessoas do meio homossexual que arranjam protegidos, afilhados”, debruçaram-se sobre a entrevista a Filomena, a mãe de Rui Pedro. Mas não acrescentaram nada, que, como eu já disse, isso é para amanhã.
Luís Filipe Vieira. E as orelhas. De Luís Filipe Vieira
Chega então o momento alto do programa, o convidado especial, por esta altura já completamente ofuscado pelo telefonema de Marcelo. Aliás, eu, se fosse a ele, já nem ia. Mas ele foi.
Luis Filipe Vieira, tocou à porta, Cristina foi ver quem era e era mesmo ele. Veio de fato e gravata, mas entrou já a dizer que gosta é de andar de fato de treino, que é um homem simples. Quem sou eu, que estou de bata, para dizer alguma coisa?
A primeira revelação bombástica de LFV: “Tenho 69 anos, estou a caminho dos 70”. Parece uma evidência, mas às vezes é nas evidências que estão as maiores verdades. Falou da infância alegre e despreocupada no bairro das Furnas, ao pé de Benfica, o que faz sentido. Durante muito tempo, costumava lá voltar, mas agora “comecei a tirar tempo para não ir ao bairro onde nasci”. “Os seus olhos quase brilharam ao lembrar disso tudo, das brincadeiras de infância”, nota Cristina. E é verdade. Os olhos quase brilharam. Quase.
É aqui que Cristina comete a primeira e única gaffe do programa inteiro: “Levou muito nas orelhas?”. As. Orelhas. De. Luís. Filipe. Vieira.
Sem vergonha ou desprimor, Vieira conta que só fez a quarta classe, e que não tinha vocação para estudar. O que prova que se pode não ter a escolaridade obrigatória e ser-se presidente de um clube de futebol. Como se provas fossem precisas, não é?
Depois, fala-se do seu casamento, em 1974. Em rodapé aparece que “casou há 49 anos”. 1974. 49 anos. Ficamos a saber, portanto, que também é possível não ter a escolaridade obrigatória e escrever rodapés em programas de televisão. Estou a brincar! Quem não se engana não é filho de boa gente, lá diz o povo.
Novo momento sério: Luís Filipe emociona-se a falar do pai. Ouvem-se violinos ao fundo. Creio que de um CD, mas não descarto a hipótese de que possa ser um quarteto de cordas na casa-de-banho. Mais lágrimas. Também voltei a emocionar-me, confesso. Vieira pede para se falar noutra coisa. Cristina diz que sim, claro. Se não quer falar do pai, não fala do pai, pronto, não falamos mais do pai, claro que não falamos mais do pai, que seria continuarmos a falar do pai, não se fala mais do pai, se não quer falar do pai, não vou agora estar a falar do pai, nunca mais falo do pai, não toco mais no assunto do pai, nem nunca mais digo a própria palavra pai. Pai. Pai. Pai.
Mas foi um momento bonito de televisão, a sério. Em casa, queimaram-se com certeza várias camisas com o ferro, de olhos postos no televisor.
Falou-se pouco do Benfica, que a verdade é que ninguém quer saber de bola nisto do daytime.
Acabaram a jogar às cartas, à bisca lambida, se não me engano.
Por falar em cartas, só senti falta de uma boa consulta de tarot. Cristina bem que tentou ler o futuro, saber quem será o próximo treinador do Benfica. Vieira também não fala disso. Ou seja, Luís Filipe não fala da mulher, nem dos filhos, nem dos netos, nem do pai, nem da mãe, nem da vida privada, nem da vida dos negócios, nem do Benfica, de resto, fala de tudo. Em televisão, é o que se quer. Estou a brincar, a entrevista foi engraçada. Mas, como disse, o país já só estava a pensar no telefonema do Marcelo.
Para rematar (também sei fazer piadas futebolísticas, estão a ver?), Cristina oferece a Luís Filipe, o homem que não gosta de usar gravata, um fato de treino com um CF7 bordado. De Cristina Ferreira, dia 7. Para a troca, CF7 levou uma camisola do Benfica e um equipamento completo. Para o “meu Tiago”, diz Cristina.
Os 5.000 euros, mil contos na moeda antiga, foram para um benfiquista de Miranda do Corvo.
Foi a parte que menos gostei do programa novo de Cristina, de resto bastante bom. Achei injusto.
Os 5.000 euros deviam ter ido para o Marcelo, que ligou primeiro.
Hugo van der Ding é autor (“A Criada Malcriada”), ilustrador e cómico em geral