22 de setembro de 1976. Passavam poucos minutos das 21 horas. Ultimavam-se os preparativos para a realização da primeiríssima Festa do Avante!, quando uma explosão numa cabine elétrica deixou todo o recinto e o quarteirão circundante completamente às escuras. Suspeita número um? Alguém tinha tentado sabotar a organização. “Não está ainda apurado se a explosão verificada ontem, cerca das 21 horas, nas instalações da FIL, foi provocada por uma bomba ou se fica a dever a um curto-circuito no interior da cabina de alta tensão. (…) O facto de a porta blindada da cabina de alta tensão ter saltado para o interior leva a crer que a explosão foi provocada do exterior, ficando assim, como hipótese remota, o ter-se dado um curto-circuito”, especulava então o Diário Popular.
Hoje, à distância de 40 anos, restam poucas dúvidas de que alguém tentou, de facto, boicotar a festa. O ataque, no entanto, nunca foi reivindicado e as investigações, por inércia ou por falta de provas, encontraram sempre um beco sem saída. Mas, por aquela altura, a dois dias da Festa do Avante, já não havia como parar a locomotiva comunista. Com a ajuda de um gerador improvisado pela EDP, muito engenho e depois de umas quantas horas a mais a refazer ligações elétricas, o palco estava montado para o “maior espetáculo de sempre no país”, como anunciava o Diário de Lisboa. E foi bonita a festa, pá!, escreveram os jornais em setembro desse ano.
Vivia-se no primeiro ano de normalização democrática, pós Processo Revolucionário em Curso (PREC). “Fernando” tornava-se o nome mais trauteado do momento ao som da música dos ABBA. Art Sullivan fazia suspirar com “Petite Demoiselle”. Tina Charles introduzia a disco com “I Love to Love”. E os Beatles, claro, destacavam-se com a coletânea “Rock ‘n’ Roll Music”. Badaró regressava ao Teatro Laura Alves com a peça “Vamos Trocar de Mulheres” e Jane Birkin desfilava nas telas do Tivoli com “Catherine & Co”, a história de uma prostituta que decidira criar a sua própria empresa. Também no cinema haveria de nascer o “Império dos sentidos”, do japonês Nagisa Oshima. O mesmo filme que, já depois de ter passado nos cinemas em 76, haveria de provocar uma onda de protestos e de pedidos de demissão quando foi transmitido pela RTP anos depois, em 1991 — o arcebispo de Braga, D. Eurico Nogueira, chegou mesmo a confessar ter aprendido “mais em meia hora a ver O Império dos Sentidos do que em 67 anos de vida”, antes de ser tomado por “horríveis vómitos”.
Anúncio publicado no Diário de Notícias, a 25 de setembro de 1976. Fonte: Hemeroteca Municipal de Lisboa
O país habituava-se a viver em liberdade. O PREC esgotara-se com a tentativa fracassada de golpe de Estado, a 25 de novembro. A Constituição da República Portuguesa fora finalmente aprovada, depois de muitos avanços e recuos e uns quantos momentos dramáticos à mistura. O PCP, que fora a terceira força mais votada nas eleições constituintes de 1975, tornava-se, nas legislativas de 76, apenas a quarta maior bancada parlamentar, atrás de PS, PPD e CDS. Mário Soares, velho rival de Cunhal, era primeiro-ministro. Ramalho Eanes era o primeiro Presidente da República democraticamente eleito, com apoio de PS, PPD, CDS e PCTP.
Nos meses que antecederam a primeira Festa do Avante, realizada a 24, 25 e 26 de setembro, corriam rios de tinta sobre a tão complexa reforma agrária. Discutia-se a entrada do país no Mercado Comum. Por todo o país, mas sobretudo no Alentejo, dava-se início ao processo de desocupação das terras ocupadas depois do 25 de abril. O movimento sindical estava ao rubro, num processo que culminaria na fundação da UGT. A taxa de desemprego atingia níveis preocupantes: em agosto desse ano, era de 12,5% contra os 9,4% de 1975. Discutia-se a desvalorização do escudo e prometia-se uma aposta decidida no mercado externo.
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A Festa do Avante realizou-se pela primeira vez em 1976, na antiga FIL. Mudou-se três vezes até se instalar finalmente na Quinta da Atalaia, em 1990, propriedade entretanto adquirida pelo partido por cerca de 300 mil euros. Só por uma vez não se realizou, em 1987.
A pressão sobre o Governo socialista aumentava. A crise económica e política agudizava-se a olhos vistos. A oposição, liderada pelos sociais-democratas, denunciava a falta de uma política reformista. “O Governo não funciona, mas não ajudaremos a derrubá-lo”, prometia Francisco Sá Carneiro. Até aquele momento o Executivo só tinha “demonstrado inoperância, lentidão e falta de determinação para a aplicação de medidas concretas”. O CDS ajudava à festa: “O Governo ocupa o poder sem governar”, acusavam os democratas-cristãos. Também o PCP também pressionava. “Não combateremos a política definida pelo dr. Mário Soares por demagogia. (…) Mas essa política só é possível com os trabalhadores, com a sua confiança e intervenção entusiástica e não como fez o primeiro-ministro, dando confiança à recuperação capitalista, agrária e imperialista”, dizia o dirigente comunista Carlos Brito. Qualquer semelhança…
A 20 de setembro, Mário Soares ia à RTP para responder às perguntas dos jornalistas Fialho Gouveia, Joaquim Letria e… Marcelo Rebelo de Sousa. Queria pôr os “pontos nos i’s”, como relatava então Diário Popular. O primeiro-ministro acabaria por admitir que a falta de produtividade era um problema estrutural grave e que, sem “aumento da produtividade”, era impossível existir aumento de salários. Para a oposição, deixaria também um recado: “Estou confiante da operacionalidade deste Governo. Nós sabemos o que queremos e vamos fazer com que o país ande para frente. Temos vencido outras batalhas e poderemos também vencer esta. Mas quando o país entender, deixamos este lugar”.
Edição do jornal “Avante!”. Fonte: PCP
O mesmo Marcelo Rebelo de Sousa criava e desenvolvia a figura do analista político enquanto discorria teses nas páginas do Expresso. A 17 de setembro, uma semana antes da Festa do Avante, o agora Presidente da República fazia notar o surgimento “de uma feição mais aberta” do grupo parlamentar do PCP, liderada pelo “jovem e promissor” Vital Moreira, e pelo quarteto composto por Francisco Miguel, Veiga de Oliveira, Manuel João e Lino Lima. “Nenhum [dos cinco] pode ser considerado, sequer metaforicamente, um ‘heterodoxo’. (…) Quanto muito, o que se poderá concluir é que a ortodoxia do partido, a nível de estratégia parlamentar, decidiu adotar uma linha apaziguadora e potencialmente mais ‘europeizante'”.
A máquina do PCP reagia aos recentes acontecimentos. E ajustava o trilho. Aproximavam-se as eleições autárquicas e os comunistas precisavam de fazer uma demonstração de força. Os resultados nas três últimas eleições (constituintes, legislativas e presidenciais) tinham ficado muito aquém das expectativas. A Festa do Avante era o palco perfeito para isso e Marcelo Rebelo de Sousa percebia bem o significado político daquela iniciativa.
Na Assembleia da República — nessa época como agora — os comunistas percebiam que boicotar um Governo socialista podia significar entregá-lo à direita. E Marcelo, mais uma vez, fazia-o notar: “O PCP não pode hostilizar um Governo PS, atirando-o para os braços do PPD e do CDS, tal como não pode aceitá-lo incondicionalmente, em contradição com muito do que disse às suas bases e ao seu eleitorado, em sede de ‘maioria de esquerda'”.
Álvaro Cunhal: “Olhem, vejam e julguem” a “força indestrutível do PCP”
Era neste caldo social, económico e sobretudo político, que nascia a Festa do Avante!. E foi uma estreia abençoada por uma chuva intensa. Na madrugada de 24 para 25 de setembro, uma “chuva torrencial inundou Lisboa”, titulava o Diário Popular. “A água irrompia nas casas provocando inundações que a maré cheia, no Tejo, e a chuva que teimava em cair tornavam mais alarmantes”.
Se um atentado à bomba não fez parar a primeira edição da Festa do Avante, não seria a chuva a fazê-lo. A prosa do Diário de Lisboa anunciava um acontecimento grandioso que simulava o que podia ser Portugal governado por comunistas. “A poucas horas do início, esta do ‘Avante’ na qual participam 300 artistas de todo o mundo, centenas de militantes do PCP dão os últimos retoques aos numerosos stands montados na FIL. (…) É praticamente toda a FIL transformada pelas mãos dos militantes do PCP que criaram um grandioso cenário refletindo o que pode ser este país transformado pelas mãos dos trabalhadores, com a economia, a educação, a cultura, etc. ao serviço do povo. (…) Haverá espetáculos de cinema, teatro, música, bailado, etc., que decorrerão nos sete palcos montados em diversos pontos da FIL. É simultânea a atuação dos artistas que em número e qualidade atingem um número nunca igualado em Portugal. No interior do recinto está ainda instalado um circo com espetáculos predominantemente dedicados às crianças. Restaurantes, tômbolas, barracas de petiscos e diversos tipos de divertimentos encontram-se disseminados pela FIL”.
Nesses dias, o som do compositor italiano Luigi Nono cruzar-se-ia com a guitarra de Carlos Paredes e o fado de Adriano Correia de Oliveira. O jazz de Archie Sheep e Steve Waring faria parelha com os génios de Ary do Santos e José Jorge Letria. E havia ainda Fernando Tordo, Carlos do Carmo e, claro, Paulo de Carvalho, entre os Mineiros de Aljustrel, os Segréis de Lisboa e a Academia dos Amadores de Música.
O número de delegações internacionais presentes nessa primeira edição da Festa do Avante! era igualmente impressionante. A lista era quase interminável: marcaram presença os “partidos-irmãos” da União Soviética, República Democrática Alemã, Bulgária, Hungria, Polónia, Checoslováquia, Roménia, Jugoslávia, Cuba, Vietname, França Itália, República Federal da Alemanha, Noruega, Chile, Marrocos, Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde.
Kafarnaum, Expresso, 24 de setembro de 1976. Fonte: Hemeroteca Municipal de Lisboa
Nunca o país tinha visto nada assim. Os títulos de alguns dos principais jornais da época retratam bem o impacto que a festa teve: “Milhares de pessoas presentes na Festa do Avante” (Diário de Notícias); “FIL superlotada com a Festa do Avante” (Diário de Lisboa); “Aberta a época da ‘caça’ ao milímetro com enchente na abertura” (Diário Popular).
Aliás, a multidão era de tal forma impressionante que, na reportagem que fez sobre o primeiro dia da festa, o jornalista João Alves da Costa, do Diário Popular, chegava mesmo a comparar “as bichas para ‘os W.Cês’ das senhoras” às “longas, deliciosas ‘espetadas’ madeirenses regadas por sumo de maracujá” que se vendia no balcão dedicado aos produtos regionais. Não era a única referência gastronómica: “Lá dentro era uma sequência de horas de ‘ponta’. O anfiteatro de espetáculos ligeiros abarrotava como ovo acabado de ferver. Nos corredores suava-se por meio metro de avanço”. Enquanto isso, a chuva não parava de cair, alterando a programação dos concertos, perante a indiferença da mãe que mudava a fralda do bebé “sobre o balcão confinado aos músicos-artistas-cantadores-soldadores-grupadores”, dos “jovens meios adormecidos no chão” e de “milhares de esbaforidos” que entoavam o “Grândola Vila Morena”.
Noutro registo, o Diário de Lisboa sublinhava a “grande demonstração da capacidade mobilizadora daquele partido e a “enorme capacidade de trabalho das bases do PCP”. Estava “ali patente aos olhos do público o esforço organizado de milhares e milhares de militantes”.
No final dos três, era evidente para toda a gente que as expectativas da organização tinham sido largamente ultrapassadas. Esperavam-se cerca de 150 mil pessoas no Avante — esse número foi largamente ultrapassado só no primeiro dia. “É extremamente difícil (impossível, quase) arriscar números. Mas podemos garantir que, desde as 20 horas de sexta-feira, não parou de entrar gente. Muitos chegaram a levar manta e farnel (embora abundassem os restaurantes e as barracas de comes e bebes, o acesso era difícil devido à multidão) e de manhã por ali se aguentaram. (…) Enquanto tudo decorria, cá fora era como que uma festa paralela… Os muitos que queriam entrar e não podiam, as barracas ‘clandestinas’ de comes e bebes (…) os balõezinhos para o menino e para a menina, as farturas, as queijadas, os amigos que se encontravam depois de grandes ausências (…) tudo indicava que a festa (…) se iria prolongar pela madrugada dentro. Pela madrugada de 2ª feira, dia de trabalho para todos”, descrevia o Diário de Notícias.
A intervenção de Álvaro Cunhal no encerramento da primeira edição da Festa do Avante! seria o culminar daqueles três dias em que se transpirou política. Milhares de pessoas aguardavam com expectativa e o secretário-geral comunista não as terá defraudado:
“Existem entre portugueses muitas divergências. Mas por muito que alguns queiram fechar os olhos, numa coisa estarão todos de acordo. Em que essa festa do nosso glorioso ‘Avante!’, do nosso glorioso partido, é a maioria, a mais extraordinária, a mais entusiástica, a mais fraternal e humana, jamais realizada no nosso país”, galvanizava o líder comunista.
Naquele discurso, Álvaro Cunhal reconhecia que o país enfrentava um problema de produtividade, mas deixava bem claro que “congelar salários, aumentar preços, agravar impostos” ao mesmo tempo que se destinavam “milhões de contos para indemnizar capitalistas e agrários” ia conduzir o país ao “agravamento de conflitos sociais” que afetariam ainda mais “situação económica e financeira do país”. O PCP não compactuaria com tal política.
Diário de Lisboa, a 25 de setembro de 1976. Fonte: Fundação Mário Soares
Ao mesmo tempo que prometia esforços para ajudar a corrigir os erros da reforma agrária, mas “sempre com os trabalhadores”, o secretário-geral comunista vincava a posição do partido em relação à entrada de Portugal no Mercado Comum: estava em causa a “independência nacional”, num sistema que ia sugar “o nosso pequeno país”, subjugado “aos grandes países capitalistas desenvolvidos”.
Cunhal não esqueceria também os adversários políticos socialistas, num apelo que teve de esperar mais 40 anos para se concretizar, embora provavelmente em moldes diferentes do que o líder histórico dos comunistas poderia desejar:
“Apesar das críticas severas que fazemos à política dos dirigentes do PS e do Governo do PS, insistimos em que é necessário que comunistas e socialistas, assim como outros democratas se unam, na ação de todos os dias, em defesa dos interesses que são comuns e por objetivos que são comuns”, afirmou Cunhal do discurso.
Sociais-democratas e democratas-cristãos não podiam, naturalmente, passar pela Festa do Avante sem críticas ferozes de Cunhal. “Alguns chefes do CDS e PPD estão regressando (…) ao ventre fascista donde vieram”, denunciava o líder comunista. O mesmo CDS e PPD que antes “cobriam” o Governo do PS “com sorrisos e flores” agora dedicavam-se a cuspir ameaças contra o Executivo socialista. “A única aliança que pode servir a democracia é uma aliança de democratas. E uma aliança de democratas, para vencer a reação, só é possível com o Partido Comunista Português”.
Diário Popular, 25 de setembro de 1976. Fonte: Hemeroteca Municipal de Lisboa
O secretário-geral comunista procurava, desta forma, lembrar a importância estratégica do partido na construção da democracia portuguesa. Recordava o passado, mas lembrando que os comunistas estavam “voltados para o presente e para o futuro”. Falava para fora, mas também para dentro do partido:
“Para alguns que falam no enfraquecimento do nosso partido, aqui está esta Festa para lhes dar resposta. Olhem, vejam e julguem. De tudo nesta Festa se desprende a força indestrutível do partido da classe operária e do povo trabalhador de Portugal — o Partido Comunista Português”.
O sucesso da Festa do Avante era a derradeira prova de força e de capacidade de mobilização das bases do PCP. E um sinal de que o partido estava “são, unido e firme, como uma rocha”.
Hoje, 40 anos depois da primeira Festa do Avante, o PCP suporta pela primeira vez na história uma solução de poder liderada por um Governo socialista, que, em muitos aspetos, tem posições antagónicas às dos comunistas. A rocha, aparentemente, tornou-se mais porosa. Jerónimo de Sousa presta provas perante os militantes sobre os últimos dez meses de “geringonça” e na bagagem traz dois resultados eleitorais que ficaram aquém das expectativas (legislativas e presidenciais). E para o ano há autárquicas. O que dirá o líder comunista?