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Kathleen Hanna fotografada no palco da Brixton Academy, em Londres, em junho de 2019, num concerto das Bikini Kill

Redferns

Kathleen Hanna fotografada no palco da Brixton Academy, em Londres, em junho de 2019, num concerto das Bikini Kill

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Punk, feminismo e confissões: a revolta escrita por Kathleen Hanna

As Bikini Kill e o movimento riot grrrl, Le Tigre, The Julie Cruise e a relação com Ad Rock, as lutas contra a indústria e contra a doença de Lyme: uma autobiografia para conhecer uma história única.

Nos anos 90, feminismo ainda era uma palavra feia, mesmo na cena alternativa. Por isso, quando as Bikini Kill, e outras bandas de mulheres, como Babes in Toyland ou L7, começaram a usar a palavra ao peito, nem toda a gente apreciou a atitude, mesmo quando gostava das canções. Na autobiografia agora publicada, Rebel Girl: My Life As Feminist Punk, Kathleen Hanna, vocalista das Bikini Kill (também de Le Tigre e The Julie Ruin), uma das mulheres mais importantes da cena riot grrrl em plena era grunge, conta como, depois de um dos primeiros concertos da banda, no início dos anos 90, lhe chegou aos ouvidos que um amigo da cena punk andava a dizer que “os animais eram mais vitimizados do que as mulheres”, e por isso as Bikini Kill “tinham zero crédito” nas canções feministas que faziam.

Kathleen conta a situação com algum desalento, mas isso não a fez vacilar no ativismo. Já tinha sofrido, e testemunhado, demasiados episódios de abuso, para questionar a própria determinação com base na opinião de um homem, ainda que se tratasse de um amigo com quem acreditava partilhar ideais estéticos e, supostamente, políticos.

Kathleen também percebeu muito cedo que não eram só os homens que não gostavam das suas letras acusatórias e dos discursos sobre assédio e violação. Muitas mulheres que iam aos concertos de Bikini Kill também ficavam incomodadas e achavam as temáticas e a doutrinação “desnecessárias”. Mas, ao mesmo tempo, era comum a cantora e compositora fazer sessões de aconselhamento com jovens raparigas que a procuravam no final dos espectáculos, para desabafar sobre as suas histórias de assédio e terror. O seu grito “girls to the front” (raparigas para a frente), que apelava às raparigas para ocuparem as primeiras filas em frente ao palco durante os concertos, foi uma forma de tornar os espectáculos mais inclusivos, e, ao mesmo tempo, proteger as mulheres do assédio e das agressões masculinas que sabia acontecerem nas zonas escuras das salas.

A capa de "Rebel Girl: My Life as a Feminist Punk", biografia de Kathleen Hanna

Lembro-me dos ecos da cena riot grrrl começarem a chegar a Portugal em meados dos anos 90, através da imprensa estrangeira que apontava o fenómeno como uma espécie de fação feminina do grunge. O que era inspirador nessas histórias sobre jovens mulheres que se organizavam em grupos de música e arte era precisamente o facto de reclamarem — e conseguirem — espaço em universos normalmente dominados por homens: a cultura punk rock, a cena do it yourself expressa em fanzines, exposições de arte, espectáculos de spoken word e grupos de música. Era como uma segunda vida do punk original, tal como protagonizado por bandas de mulheres como Slits ou Raincoats, que, de resto, eram influência para as próprias riot grrrls.

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[Já saiu o quinto episódio de “Matar o Papa”, o novo podcast Plus do Observador que recua a 1982 para contar a história da tentativa de assassinato de João Paulo II em Fátima por um padre conservador espanhol. Ouça aqui o primeiro episódio, aqui o segundo episódio, aqui o terceiro episódio e aqui o quarto episódio]

O assunto acabou por esmorecer, o slogan “girl power” foi apropriado e banalizou-se como uma marca comercial franchisada. Pessoalmente, interessei-me por outras coisas. Quando voltei a ouvir falar de Kathleen Hanna, já neste século, estava nas Le Tigre, era parte de uma outra cena feminista, ao lado de gente como Peaches ou Chicks on Speed, bandas que tinham algumas afinidades com acena riot grrrl original, mas adotavam um formato mais eletroónico e dançável. Era refrescante ver como as riot grrrls se reinventavam na era do electroclash. Nesta biografia, Kathleen Hanna fala desse processo de transformação, tal como fala de como descobriu, ainda criança, que precisava de cantar para sobreviver e de como pequenos grupos de pessoas podem fazer (e destruir) grandes coisas, se estiverem empenhados nisso.

No livro, lemos como Kurt Cobain foi protetor contra ex-namorados mal resolvidos e como descobriram o desodorizante Teen Spirit numa ida ao supermercado, o que a levou a escrever “Kurt smells like Teen Spirit” na parede do quarto do cantor e compositor. Meses depois, Kurt pediu-lhe autorização para usar a frase.

Kathleen Hanna publica a sua biografia aos 55 anos, umas três décadas depois da cena riot grrrl ter tido início em Washington DC, à volta de um grupo de raparigas que se dedicava sobretudo a fazer fanzines. Percebemos, através desta viagem retrospetiva, que uma certa ideia romântica de “irmandade”, acabou por ser consumida pela voracidade dos media que procuravam a next big thing depois do grunge (e seguiram em frente quando o efeito novidade se esbateu), e pelo ego de algumas protagonistas mais aguerridas. A própria Kathleen Hanna, confessa ter-se desiludido e desligado do movimento (também por ser demasiado branco e pouco aberto a abordar questões raciais de forma séria, o que ela achava fundamental). Mas não deixa de se considerar feminista e faz questão de o colocar no titulo da autobiografia.

A escrita honesta de Kathleen Hanna mostra que a luta de bandas como Bikini Kill pelos direitos e pelo espaço das mulheres, queria de facto contestar as dinâmicas de poder masculino/feminino. Com o livro, aprendemos que parte da raiva e da motivação de Kathleen vinham do trauma pessoal: um pai alcoólico e abusivo, uma irmã mais velha muito problemática, uma mãe feminista, ainda que pouco ativista. Mas também percebemos que a profusão de namorados tóxicos e vingativos, violações, perseguições e humilhações de que foi alvo, e de que foram (e continuam a ser) alvo outras mulheres, é mais estrutural. Ainda assim, Kathleen não tem problema em falar da sua vida como stripper, uma forma de pagar as contas e conseguir comprar equipamento para ir em digressão com as bandas, concluindo que nunca sentiu risco junto dos clientes. Em contrapartida, escreve como se sentiu exposta e julgada pela comunidade punk, pelas feministas e pelas pessoas em geral, sempre que o seu “segundo emprego” foi tornado público. Entre outras coisas, isso fez com que alguns homens se sentissem à vontade para ir aos concertos, objectificá-la e insultá-la.

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Kathleen Hanna em abril de 1993, num concerto da série Rock for Choice, contra a descriminalização do aborto nos EUA, com as Bikini Kill

Getty Images

Nesta história há vários homens que perseguem, gritam insultos, agridem e violam mulheres a troco de nada, mas, nas memórias desta rebel girl, nem todos são demonizados e alguns têm aura quase paternal, como os Fugazi, Ian Mackaye em particular, o grande herói do punk hardcore de Washington. Os Fugazi são descritos por Kathleen como aliados da causa feminista dentro de uma cena que tendia para o machismo abusivo e tratava as namoradas por “cabides” porque seguravam os casacos dos rapazes enquanto estes dançavam frente ao palco nos concertos. Kurt Cobain também é visto como exceção. O líder dos Nirvana vivia em Olympia, uma cidade a menos de 100 km de Seattle, onde Kathleen estudou e manteve base durante muito tempo. Os Nirvana tocaram na galeria de arte que Kathleen abriu com as amigas numa garagem, depois de, entre outras desilusões académicas, um ex-namorado ter usado, sem autorização, fotos dela nua, numa “obra artística” para uma exposição na universidade.

Os Nirvana ainda só tinham um disco, Bleach, mas já movimentavam muita gente e tocaram à borla, garantido a sobrevivência da galeria durante meio ano. Depois disso, a amizade entre Kurt e Kathleen estreitou-se. No livro, lemos como ele foi protetor contra ex-namorados mal resolvidos e como descobriram o desodorizante Teen Spirit numa ida ao supermercado, o que a levou a escrever “Kurt smells like Teen Spirit” na parede do quarto de Cobain. Meses depois, já com mais distância entre eles, e com os Nirvana na Geffen, Kurt pediu-lhe autorização para usar a frase, ela concordou, considerando que não estava a fazer “nada de especial”. Kathleen explica como as Bikini Kill ainda foram convidadas para dançar no videoclip de Smells Like Teen Spirit, talvez como forma de agradecimento, e porque Tobi Vail, a baterista de Bikini Kill, tinha sido namorada de Cobain e tinha-lhe mostrado muita da música que o transformou, incluindo as Raincoats da portuguesa Ana da Silva. As Bikini Kill recusaram o convite, mas não alinharam com os que acusaram os Nirvana de serem vendidos.

Depois de se ter debatido com várias situações debilitantes ao longo dos anos, Kathleen foi diagnosticada com doença de Lyme em estágio avançado, em 2006, o que comprometeu a sua vida quotidiana de várias formas, durante vários anos, mas ainda assim, tem permitido um lento regresso ao quase normal. Foi nesse “quase" que escreveu as memórias de feminista punk.

Kathleen não deixa passar as dinâmicas particulares, e muitas vezes mesquinhas, da cena musical, e percebemos como a ascensão dos Nirvana ao estrelato provocou todo o tipo de ondas de choque e como a decadência e fim trágico de Cobain pareciam inevitáveis. Kathleen escreve como planeava visitar Cobain na noite em que ele se suicidou, para curar feridas antigas e retomar a amizade, mas desistiu por achar que ele era demasiado famoso e provavelmente não queria saber dela. Também ficamos a saber como se consumiu em culpa depois de saber da morte, no dia seguinte.

Há histórias de bastidores bastante coloridas, que dão um olhar privilegiado sobre Kathleen e a(s) sua(s) banda(s), mas também dizem coisas, nem sempre positivas, sobre outras estrelas do universo alternativo. Courtney Love, também ela vista como riot grrrl, protagoniza uma das cenas mais infelizes. Kathleen descreve como ela sempre tinha mostrado desdém pelas Bikini Kill e, após a morte de Cobain, se tornou mais violenta, chegando mesmo a agredi-la nos bastidores do festival Lollapalooza. A descrição é novelesca: Kim Gordon, dos Sonic Youth, avisou Kathleen para ter cuidado, porque as Hole iam tocar nesse dia e Courtney Love andava a agredir todos os amigos de Kurt Cobain, por isso, se a visse, o mais provável era haver confronto. O que de facto aconteceu, e com testemunhas. Kathleen escreve que apresentou queixa e Courtney Love foi condenada a “fazer aromaterapia para controlar a raiva, ou algo do género”.

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Em dezembro de 2016, no palco do KOKO, em Londres, à frente da banda The Julie Ruin

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Steve Albini também não passa incólume, apesar da reputação de produtor extraordinário. Para Kathleen Hanna, era inadmissível ele ter tido uma banda chamada Rapemen e considerava impossível uma feminista trabalhar com alguém assim. Por isso deitou fora a demo que a sua banda tinha feito com ele. Já Joan Jett (das Runaways e não só), que se auto propôs para produzir um single das Bikini Kill, é descrita como uma heroína à altura de todas expectativas, ou para lá disso.

As palavras mais doces e felizes de Rebel Girl são sobre Adam Horovitz, Ad Rock dos Beastie Boys, que conheceu e por quem se apaixonou platonicamente num festival na Austrália em 1996; com quem foi viver anos depois; e com quem acabou por casar em 2006, porque já não tinha seguro de saúde e estava gravemente doente. O romance entre Kathleen Hanna e Ad Rock poderia parecer improvável, e foi assim designado por muitos, quando se tornou público, mas venceu os detratores. Como é que uma feminista que vinha do punk podia estar com o elemento de uma banda hip hop que ficou conhecida pelas atitudes e letras sexistas? Kathleen descreve as considerações dolorosas, mas na altura já estava em paz com a sua desilusão riot grrrl e mais preocupada em manter-se viva e aproveitar a relação com o homem dos seus sonhos, do que em divagar sobre questões de princípio que considerava injustas.

Há histórias de bastidores bastante coloridas, que dão um olhar privilegiado sobre Kathleen e a(s) sua(s) banda(s), mas também dizem coisas, nem sempre positivas, sobre outras estrelas do universo alternativo. Courtney Love, também ela vista como riot grrrl, protagoniza uma das cenas mais infelizes.

Depois de se ter debatido com várias situações debilitantes ao longo dos anos, Kathleen foi diagnosticada com doença de Lyme em estágio avançado, em 2006, o que comprometeu a sua vida quotidiana de várias formas, durante vários anos, mas ainda assim, tem permitido um lento regresso ao quase normal. As Bikini Kill até voltaram aos concertos. Foi nesse “quase normal” que Kathleen Hanna escreveu as suas memórias de feminista punk, uma autobiografia sem filtro, que se lê de um fôlego, sem hesitar. Um livro de escrita fluída e capítulos curtos, que não se estendem em dramas, nem se esticam nas piadas, mas são capazes de grande comoção e riso fácil. Além disso, tem o bónus das múltiplas referências que podemos explorar, como a do filme Ladies and Gentlemen, the Fabulous Stains, uma pérola obscura de 1982 com Diane Lane, Laura Dern e Marin Kanter no papel de três adolescentes que formam uma banda punk e vão em digressão pela América com um grupo inglês constituído por elementos dos Clash e Sex Pistols (na vida real, porque na história estão longe de ser famosos).

Punk e feminismo, dores de crescimento de pessoas e movimentos, relações, fragilidades e capacidade de superação. Rebel Girl é um livro íntimo, tocante e inspirador.

 
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