Reportagem em Marselha, França
Misturar a obra-prima do compositor francês Maurice Ravel com gestos de uma claque de futebol pode não ser do agrado dos mais puristas, tanto de um lado como do outro. Mas é precisamente nisso que se empenham os jotas da Frente Nacional, momentos antes de começar o último comício de Marine Le Pen antes da primeira volta das eleições presidenciais francesas, em Marselha.
Primeiro, o Bolero de Ravel ecoa entre as paredes curvas do Dôme, o pavilhão escolhido para o evento. Poucas composições conseguirão agarrar uma multidão de forma tão eficaz como esta, marcada por um crescendo longo mas irreversível, que começa na mais pura das calmas e termina num êxtase catártico.
É já perto da fase final da música de Ravel que entram os jovens militantes da Frente Nacional, todos vestidos com pólos azuis-escuros com a sigla FNJ. Perante uma sala cheia, levantam-se em grupo e erguem os braços. Depois, batem palmas de forma ritmada, como se a estrela da seleção francesa estivesse prestes a marcar um livre perigoso. Primeiro lento, devagarinho, até que o ritmo acelera aos poucos, chegando a uma fase final em que a sincronia dá lugar à euforia. O pavilhão junta-se-lhes rapidamente, abafando o Bolero.
https://twitter.com/AlineB_FN/status/854941363342802944
Tudo isto é obra de Aline Bertrand, 31 anos, conselheira regional da Frente Nacional em Provence-Alpes-Côte d’Azur — situada no Sul de França, a região onde as sondagens dão o melhor resultado a Marine Le Pen, chegando aos 35,5%. É Aline que, sentada entre os militantes mais jovens, coordena todas as ações do seu núcleo, que percorreu os 65 quilómetros entre Toulon e Marselha para ouvir Marine Le Pen, a mulher que poderá vencer a primeira volta das eleições.
E, se isso vier a acontecer, terá de agradecer em parte aos jovens. Segundo uma sondagem da Ifop feita em março, Marine Le Pen era a candidata preferida dos jovens entre os 18 e os 25 anos. Ao todo, 29% disseram que iam votar na candidata da Frente Nacional. Logo a seguir, aparecia o centrista liberal Emmanuel Macron, com 28%. Em terceiro, o candidato da extrema-esquerda, Jean-Luc Mélenchon, surgia com 14,5%.
O que faz a geração Erasmus junto da candidata que quer colocar a França fora da União Europeia e que quer fechar as suas fronteiras? Para Aline, a pergunta não faz sentido. “Esta geração não é a ‘geração Erasmus’, isso é uma patranha dos media”, diz. “Esta geração de jovens é a geração que quer salvar a identidade francesa.”
Marine Le Pen no Snapchat, a cantarolar e com orelhas de cão
Num esforço que demonstra, se mais evidências fossem necessárias, que a Frente Nacional já há muito tempo deixou de ser um partido de nicho, Marine Le Pen respondeu a perguntas de vários jovens franceses no Snapchat. Tudo isto poucas horas antes de subir ao palco em Marselha. Com um sorriso benévolo, respondeu a perguntas sérias sobre a saída de França do euro ou sobre a atribuição de bolsas de estudo. Depois, procurou entrar na brincadeira. Quando uma jovem lhe perguntou se era possível “ser pago para ficar deitado na cama”, Marine Le Pen estendeu-se num sofá e respondeu, numa gargalhada: “Tenho pena, mas não penso que isso seja possível”. Mais à frente, chegou até a cantar — e a usar um filtro que a deixou com um focinho e orelhas de cão. E disse que gostaria que houvesse um de um gato.
https://www.youtube.com/watch?v=TOcYu8zyNNY
“Nós somos o partido que mais serve aos jovens, sem dúvida”, diz Aline ao Observador, congratulando-se com os números apresentados por essa sondagem. Mas como explicá-los? Para Aline, essa tarefa parece ser simples: “Marine Le Pen é a única candidata que verdadeiramente promete empregos e segurança aos mais jovens”. E remata: “Os jovens olham à volta e olham para um país que já não lhes serve”.
Foi precisamente isso que Aline se lembra de ter sentido quando decidiu emigrar em 2008. Naquela altura, tinha dois empregos. Durante o dia, trabalhava numa loja. À noite, ia servir às mesas num restaurante. O retrato que faz daqueles dias é de extrema insegurança — à semelhança do discurso da Frente Nacional. “No pouco tempo que me sobrava, queria sair à noite, ir ter com os meus amigos, e não podia fazê-lo. Tinha de ter cuidado com o que vestia, com a maneira como me apresentava”, queixa-se. “Não gostava da vida que tinha aqui e então peguei nas minhas coisas e fui-me embora.”
O destino foi longínquo em termos geográficos, mas ainda assim próximo em quase todo o resto — o Quebec, a região francófona do Canadá. Trabalhou durante quatro anos na Universidade do Quebec, como orientadora dos estudantes recém-chegados. Nos últimos seis meses, conta, começou a ter saudades de França — e esse sentimento também vinha acompanhado de pensamentos políticos. “Fiquei com uma vontade enorme de voltar ao meu país e ajudar a reerguer o patriotismo francês”, diz. Era, então, 2013.
“Com muita pena minha, as coisas ainda não mudaram muito desde essa altura”, explica. As saídas à noite, sublinha, continuam a ser muito perigosas. “Ainda no sábado passado fui jantar com uma amiga. Quando saí do restaurante, estava sozinha. De repente, estou numa rua escura, só com homens à volta, enquanto estou a caminho do meu carro”, diz, de olhos arregalados. “Isto dá medo.”
Filho de mãe árabe e pai socialista — e eleitor da Frente Nacional
Este domingo, Samuel Grisvard não vai hesitar quando tiver a ocasião de votar pela primeira vez numas eleições presidenciais. Para este estudante de Psicologia de 20 anos, não há hesitação possível: a sua escolha será Marine Le Pen.
Em casa, a sua escolha está longe de ser consensual. Filho de pai francês e de mãe de origem árabe (os avós maternos emigraram da Argélia), cada um vota à sua maneira lá em casa. O pai, desiludido com os grandes nomes, deverá votar num “pequeno candidato”. A mãe, que até agora tem votado sempre no Partido Socialista, irá escolher Jean-Luc Mélenchon. Em casa, as discussões são saudáveis, assegura Samuel. Mas nunca chegam a acordo.
“Se queres votar neles, pronto, vota, tu é que sabes”, atira-lhe a mãe, sem qualquer esperança de convencê-lo.
Samuel é sensível ao facto de haver uma aparente contradição entre o facto de os seus avós de fé muçulmana terem imigrado para França e de ele hoje estar disposto a votar num partido anti-imigração e com um discurso que repetidas vezes critica o Islão. Porém, o jovem estudante de Psicologia encontra uma forma para passar ao lado disso. “O problema da imigração não é a da geração dos meus avós”, explica. “O verdadeiro problema nem é a imigração em si, porque estas pessoas já cá estão há muito tempo. O problema são as segunda e terceiras gerações, aqueles que vivem nas communautés [NR: sinónimo de “comunidades”, o termo original é utilizado frequentemente para referir minorias que vivem de forma isolada] e que não respeitam a França”, indica.
“As pessoas da geração dos meus avós que emigraram para França respeitam o país e as suas instituições, amam esta nação, sabem o que é preciso fazer para cá estar”, diz. “Agora isso já não acontece com as gerações mais novas. E é uma pena tremenda.”
Ao lado, Raphäel Leroux, 23 anos e estudante de Comunicação, escuta as palavras do amigo. Estas não são as suas primeiras eleições presidenciais. Há cinco anos, escolheu votar em Nicolas Sarkozy nas duas voltas. “Sarkozy é um grande estadista e um homem importante para este país e na altura pensei que ele era a melhor escolha”, diz. “Não foi sequer um voto útil contra a esquerda, foi um voto consciente.”
Entretanto, as coisas mudaram de figura para Raphäel. Em 2012, ainda antes da derrota, Nicolas Sarkozy deixou uma promessa caso viesse a perder: “Ninguém vai voltar a ouvir falar de mim”. Porém, menos de cinco anos depois, eis que ele volta para tentar entrar de novo pela porta grande do Eliseu. “Por mim, não entra, porque deixou claro que a sua palavra não vale nada”, pensou Raphäel quando Nicolas Sarkozy anunciou a sua candidatura às eleições primárias da direita — que veio a perder, sem chegar sequer à segunda volta.
Hoje, não tem dúvidas de que Marine Le Pen é a melhor opção para França. “Ela é a grande mulher com a grande visão para o nosso país”, diz. Sobre o pai da atual líder, o polémico co-fundador e líder honorário do partido, Jean-Marie Le Pen, Raphäel guarda palavras de respeito. “Jean-Marie Le Pen é um grande homem, com grande visão, que apenas era polémico porque percebia que essa era a maneira de atrair a atenção mediática”, diz, sobre as tiradas anti-semitas do ancião que a própria filha tentou, sem sucesso, expulsar do partido.
Ao longo dos anos, Jean-Marie Le Pen soube sempre ser um homem polémico. Ainda assim, no meio de várias declarações controversas, houve uma que disse e repetiu ao longo de vários anos: a de que as câmaras de gás usadas no Holocausto tinham sido “um mero detalhe em toda a história da Segunda Guerra Mundial”.
“Não é por haver anti-semitismo aqui dentro que vamos deixar de votar no partido”
Sacha, 26 anos, e Benjamin, 31 anos, são irmãos. Por partilharem o apelido Elbaz e também um tom de pele mais escuro do que a maior parte daqueles que vieram ouvir Marine Le Pen, estão habituados que lhes perguntem se são árabes. “Não, somos judeus”, respondem com um sorriso, à entrada do comício, ainda antes de este começar.
O negacionismo de Jean-Marie Le Pen não é coisa que os incomode. “Já se passou muita coisa desde esse tempo e ele já não manda no partido”, garante Sacha. E Benjamin explica que, até nesses tempos já simpatizava com a Frente Nacional. “Votei neles, sempre. Tal como o nosso pai, que é obviamente judeu, também votou na Frente Nacional”, garante. “Não é por haver anti-semitismo aqui dentro, como também há na esquerda, que vamos de deixar de votar no partido que mais se identifica connosco.”
Para Benjamin, o maior problema no país é o “Islão político”. “Em muitos sítios, os árabes estão em maioria e por isso sentem-se mais fortes”, explica, com ar de desaprovação. “Isso leva ao crescimento de movimentos que misturam política com religião e que vão contra os valores da França.”
Além disso, aponta um problema aos imigrantes que partem do Norte de África para França: “Eles têm um défice democrático que é muito evidente. Foram formados noutra cultura, sem democracia, têm outros códigos”.
Sacha, aproveita a deixa do irmão para dizer, com um tom de algum alarme, que “o estilo de vida ocidental está em risco”. Essa é uma das suas grandes preocupações. Depois, há ainda outra questão que lhe tira o sono: a Europa. “Temos de sair da União Europeia quanto antes”, assegura. “O Islão político de um lado e o mundialismo europeu do outro estão a sufocar-nos.”
Sobre o facto de as sondagens apontarem a Frente Nacional como o favorito entre jovens, Sacha ri-se e depois passa a explicar-se. “É normal que seja assim”, explica. “Os jovens são os primeiros a darem conta destes desequilíbrios todos, porque são expostos a eles nas escolas.” Embora não o diga diretamente, é implícito que Sacha fala de “desequilíbrios” em termos demográficos — ou, no fundo, raciais e culturais. “Por tudo isto, é evidente que temos de proteger o estilo de vida ocidental”, conclui, já de saída. Está com pressa: o comício está prestes a começar.
Pouco depois do fim apoteótico do Bolero de Ravel e das palmas dos jotas da Frente Nacional, as pessoas presentes no pavilhão são convidadas a assistir a um vídeo de campanha de Marine Le Pen. Nele, várias pessoas, de todas as idades, elencam os seus problemas. Um empresário, uma reformada ou um jogador de râguebi, por exemplo. No final, completa: “Eu preciso da Marine”.
Até que, enfim, surge o último testemunho. Uma jovem, que fala em voz-off sobre imagens em que aparece a estudar, diz: “No final dos meus estudos, não quero fazer a escolha de trabalhar por um salário de miséria ou ir para o estrangeiro. Quero um futuro no meu país. Eu preciso da Marine”. E eis que aparece Marine Le Pen nos ecrãs: “Para voltar a pôr a França em ordem, preciso de vocês”.
A sala desfaz-se em aplausos. Mal estes terminam, os jotas, sob a orientação de Aline, começam a entoar as primeiras frases do hino nacional francês. “Vamos, filhos da pátria / O dia de glória já chegou…”