“Eu comecei a gostar disto sem saber o que era isto”, diz Bernardo. “Quando percebi que isto existia, pensei: afinal posso ser assim”, diz Ana. Não se conhecem. Mas partilham um “isto” que os une: o mundo BDSM. O que os distingue está nas posições que assumem. Bernardo é dominador, Ana é submissa.
Ele gosta de “liderar” nas relações, de tomar as decisões, desde decidir o sítio para onde vai de férias com a parceira a decidir o caminho para onde segue a relação. Ela gosta que o seu “dominador” decida tudo por ela, recorre sempre a ele em (quase) todas as situações, seja para pedir uma opinião ou ter autorização, porque “ele decide sempre o melhor” para ela.
A dinâmica Dominação/Submissão “inclui uma variedade de comportamentos que envolvem troca de poder consensual entre parceiros (…)”, como consta na tese de mestrado “Para além da dor: fantasias de prazer, poder e entrega”, elaborada por Ana Mafalda Ventura Mota, junho de 2011. Mas a dinâmica (D/s) é apenas uma das três dinâmicas do universo BDSM. Outra é Bondage e disciplina (B/D), que “envolve a retenção física e/ou representações de dinâmicas de poder, podendo haver alguma punição física mas enquanto expressão de disciplina sexual psicológica e não com o objetivo de causar dor”. E Sadismo e Masoquismo (S/M), que correspondem a “comportamentos e atividades sexuais que incluem experiências envolvendo dor ou ameaça de dor física ou psicológica”.
Alexandra Oliveira foi a orientadora do estudo e é professora da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto. Define o BDSM, em termos gerais, como “uma forma de relacionamento sexual não convencional ou atípico, um jogo entre adultos que oferece prazer mútuo, onde pode haver restrição física e dor erótica”. É um jogo “consensual de troca de poder erótico”, explica. Consensual. Palavra-chave. “Só aqui está quem quer e só faz o que quer e deseja a cada instante”, lê-se num dos documentos entregues a praticantes a que o Observador teve acesso.
Este será o único mandamento a seguir. De resto, as práticas, os objetos ou a natureza das relações ficam para cada um. Há pessoas que têm só relações sado/masoquistas, há quem goste só do controlo psicológico da dominação/submissão, há quem junte a dominação/submissão ao sado-masoquismo, há quem goste só de provocar ou receber dor, há quem goste das duas sensações, dependendo do momento e do/a parceiro/a.
Há casais que adotam as práticas sado-masoquistas na vida sexual, um com o outro, e há casais que têm um terceiro elemento para essas práticas. Os termos do BDSM funcionam como “guarda-chuvas”, onde cabem um sem-número de variedades de ligações.
As relações e o sexo “baunilha” não entram no BDSM
No BDSM cabe tudo, menos o “sexo baunilha”. O termo é conhecido entre os praticantes. Designa aquele sabor comum, que não é bom nem mau, “não é grande coisa, entra em qualquer doce”, explica Bernardo. Quem está no BDSM tem interesse por “algo mais do que o sexo tradicional”, explica o médico, 38 anos. “Baunilha” é a ideia de “sexualidade comum”. E o BDSM é mais que isso.
Ana tinha um namorado há sete anos. Estava insatisfeita. Achava que faltava qualquer coisa. Não sabia o que era. Na altura, estava no fim da faculdade. Conheceu pessoas que tinham feito um trabalho sobre BDSM, foi à internet pesquisar e identificou-se com o que viu e leu. Identificou-se com o papel de submissão. Falou com o ainda namorado sobre esse interesse de ser “dominada”, mas não teve a recetividade que queria. Terminou a relação.
Hoje, a arquiteta de 30 anos diz que aquele era um relacionamento baunilha. Como assim? “Um relacionamento em que os dois decidem tudo em conjunto ou em que as decisões são tomadas pelos dois. Por exemplo, eu decidia que ia fazer qualquer coisa e se calhar nem dizia nada ao meu namorado porque me esquecia, mas não havia problema”, explica. Era tudo “muito conversado” entre os dois e a margem de manobra de Ana era maior. Na relação que tem hoje, o poder está todo do lado do seu dono.
Mas vamos por partes. Depois do luto, encontrou um site português ligado ao BDSM que anunciava uma festa. Foi, sozinha. “Estava muito nervosa”, recorda. Chegou, foi “muito bem recebida” pelos donos da festa, assumiu-se logo como submissa, conversou com muita gente, absorveu o ambiente. “Vi algum spanking, jogos com cera, coisas que nunca tinha visto ao vivo, só em imagens na internet. Aquelas pessoas estavam (a ter aquelas práticas) a dois, três metros de mim, mas parecia que estavam no mundo deles”, lembra, naquela que foi a primeira de muitas festas.
Nesses encontros, há quem vá para exercer práticas sado-masoquistas e há quem vá simplesmente para assistir. Há quem vá vestido de forma comum, há quem vá de látex, há quem opte por algumas máscaras ou por fantasias de profissões. Há símbolos – chave que fazem parte de uma espécie de protocolo. Se alguém tiver uma coleira, significa que é submissa/o e tem dono/a. Se alguém estiver com um chicote, significa que provavelmente é um dominador/a.
Ana conheceu uma submissa da zona de Lisboa com que clarificou muitos conceitos do mundo BDSM. “Ela ajudou-me em coisas muito simples como: quando chego a uma festa, com quem é que posso falar? O que é que posso dizer?”. Há um código de conduta. Se uma submissa for a uma festa com o seu dono, ninguém pode falar com a submissa sem lhe pedir autorização, por exemplo.
A arquiteta tem um dominador há três anos. Conheceu-o num fórum na internet. Lá, cada um tem a sua posição definida a seguir ao nome. Ana, 30 anos, submissa. João, 40 anos, dominador. Para não haver enganos. Das conversas na internet passaram a um café. Ficou encantada, conta. Diz que ele a soube encaminhar desde o início.
“Ele soube antes de mim que eu era masoquista”. A experiência dele no meio foi essencial. João viu o masoquismo em Ana pelo interesse que ela manifestava em querer saber como determinadas práticas se faziam, como é que se prendiam as mãos, em que é que consistia a colocação de agulhas, como é que se faz isto e aquilo.
Ele começou por introduzir uma venda para lhe tapar a visão, enquanto passava uma pena pelo corpo dela. Depois, colocou-lhe umas algemas, “mas lembro-me que as algemas ficaram só levemente presas, precisamente para eu saber que me podia soltar a qualquer momento”, para que Ana ficasse mais relaxada e à vontade. Depois, um chicote muito leve.
“Comecei a perceber que, qualquer coisa que ele use ou faça, ou dá só prazer ou provoca dor e, aí, aumenta a intensidade de tudo”, descreve. “Tinha respostas fisiológicas do meu corpo que me diziam que aquilo era bom, mas tinha o meu cérebro a pensar: mas é dor, não pode ser bom”, explica. O choque da vontade de sentir com a vontade de parar só terminou com a confiança “total” no dono.
Antes da prática, o mais importante é ler
As mulheres submissas estão “num ponto de vista mais vulnerável”, advertem alguns autores na internet. É importante entrar “devagar” neste mundo. “Antes de se saber exatamente o que se quer, é importante manter a privacidade: não assumir o nome completo, recusar fornecer moradas ou outros dados pessoais, fotos de rosto”, explicam.
O conselho mais importante, dizem, é “ler muito sobre o tema”, porque “quanto mais preparado se está, mais se desfruta”, asseguram. Foi precisamente isso que Bernardo fez. Conta que, antes de se envolver sexualmente com uma pessoa masoquista, estudou a questão para perceber se fazia sentido. “Percebi que havia muita bibliografia sobre o tema e consumi-a toda. Fiz alguns workshops com pessoas altamente experientes, desde militares a pessoas ligadas às artes circenses. Aprendi os mecanismos de submissão e dominação ao longo da História e percebi que há uma correlação física na sensação de prazer masoquista”, explica.
Bernardo, 40 anos, seguiu um caminho diferente de Ana. Sempre teve uma “postura dominante” nas relações. “Já gostava disto antes de saber o que era isto”, sintetiza. Soube que a comunidade BDSM existia por volta dos 30 anos. Primeiro conheceu a comunidade americana pela internet. O primeiro contacto direto foi com a comunidade inglesa.
“Quis perceber até onde é que podia ir nesta viagem”.
Bernardo estava no Reino Unido. Foi a um dos encontros informais da comunidade BDSM britânica, os chamados “munches”, em cafés ou restaurantes. “São pessoas de origens completamente diferentes que se encontram para tomar café e conversar”, conta. Ficou a observar e conversou com várias pessoas. Voltou a ir a dois ou três munches, até que foi a uma festa.
Um bar fechado, só para aquelas pessoas, “porque o objetivo não é chocar ninguém, a consensualidade é obrigatória”. A maioria vai “vestida a rigor, é uma festa onde as pessoas expressam sexualmente o que gostam de ser”. Depois do Reino Unido, foi também a festas em Amesterdão ou na Irlanda.
Em Portugal pode haver festas para 3 ou 4 casais ou para 200 pessoas. Bernardo já ficou simplesmente a conversar noites inteiras nas festas BDSM e já se entregou a práticas sado-masoquistas: chicote e agulhas, por exemplo. O envolvimento sexual depende da química que estabelece com a submissa.
BDSM, uma parafilia nos manuais de psiquiatria
O mundo BDSM saltou para a esfera mediática com o fenómeno do livro e agora filme “Cinquenta Sombras de Grey”, escrito por E.L. James. O protagonista Christian Grey é um dominador e um sádico. Anastasia é submissa e masoquista — entrega-se aos jogos de poder erótico. Na história, o dominador foi abusado na infância e o trauma estará diretamente relacionado com o gostar de utilizar estímulos de dor com Anastasia.
Alexandra Oliveira diz que esta associação existia e estava nos manuais de psiquiatria e saúde mental mas,”no estado atual da investigação científica, não tem grande consistência científica”. No entanto, o BDSM ainda é considerado uma parafilia (perversão sexual, comportamentos desviantes) pela Sociedade Americana de Psiquiatria, uma das mais importantes em todo o mundo. Na última versão do DSM — Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (Manual estatístico e de diagnóstico das perturbações mentais), lançada em 2013, há uma divisão entre parafilias e desordens parafílicas.
“Há uma diferença entre ter um comportamento e ter uma desordem”, clarifica a professora da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto. A “desordem parafílica é que é uma perturbação mental”. Vejamos o exemplo do sadismo sexual: alguém que tem prazer em provocar dor no outro. Se for feito numa relação em que a outra pessoa gosta de receber dor, não está a usá-la, na medida em que há um acordo entre ambas, os limites estão definidos e os envolvidos podem parar quando quiserem. “Se um agressor submeter alguém a uma prática sádica sem o seu consentimento, então isso pode levar a um diagnóstico de uma desordem parafílica”, refere.
Ou seja, esta divisão “não etiqueta os comportamentos sexuais não normativos como patológicos. Para se fazer o diagnóstico, há que ter em conta uma série de critérios para se perceber se tem ou não uma perturbação mental”, explica Alexandra.
Aqui, trata-se de “patologizar comportamento sexuais que não são normativos, há um julgamento moral” implícito nestas designações. Alexandra lembra outros casos. “Por exemplo, a masturbação e o sexo anal já estiveram incluídos nestes manuais” como perturbações mentais. “A homossexualidade só foi removida do DSM em 1973, o que mostra que há uma relativização socio-cultural”, explica a especialista.
O movimento Revise F65 dedica-se a discutir diagnósticos psiquiátricos “não-científicos” ou “estigmatizados” como o BDSM — uma das parafilias em causa. Lutam para que deixem de vigorar nos manuais de saúde mental de referência.
Em 2009, uma investigação aos hábitos sexuais dos australianos concluiu que 1.8% dos entrevistados tinha aderido a práticas de BDSM no ano anterior e que os seus praticantes não revelavam qualquer dificuldade na inserção social. Um trabalho apresentado numa conferência científica no ano passado concluiu que a prática de BDSM altera os estados de consciência, chamando-lhe o “novo yoga”. No passado dia 9 de fevereiro, a propósito das “Cinquenta Sombras”, um artigo do Guardian defendia as virtudes do BDSM em relações longas, dada a maior vontade dos praticantes em revelar os seus desejos e em satisfazer os desejos dos parceiros.
Ana e Bernardo aceitaram falar com o Observador, mas sempre sem revelarem o nome real. O estigma social existe. Ana diz que não é preciso estar no mundo BDSM para o perceber. “É só preciso querer perceber”. Bernardo fala do preconceito em relação ao BDSM e em relação ao sexo no geral. “Há uma espécie de culpa que nos constrai no que toca ao corpo”, considera.
Um caso real que se relaciona com esta situação foi recriado no filme SM Rechter, onde um juiz belga foi preso e acusado de violência doméstica por se ter envolvido com a mulher numa situação de BDSM absolutamente consensual. É um exemplo frequentemente citado quando se refere precisamente o estigma social associado a estas práticas.
https://www.youtube.com/watch?v=QSKr0vgpC5Y
Onde está a fronteira com o abuso?
A tríade que rege o BDSM é: são, seguro e consensual. Alexandra diz: “se existe uma relação abusiva sem consentimento, é violência domestica, não é BDSM”. Bernardo diz: “para mim até é mais do que isso. Tem de haver consentimento e desejo das duas partes”. Ana diz: “sinto a dor de uma forma positiva porque confio na pessoa que está comigo”.
A dinâmica da história das Cinquenta Sombras, entre o dominador Christian e a submissa Anastasia, motivou críticas de associações de defesa dos direitos das mulheres nos EUA e Canadá. Megan Walker, diretora-executiva de um centro que combate os abusos contra as mulheres no Canadá, apelou mesmo ao boicote pela “violência doméstica” no filme e pela “normalização de situações que têm um final muito diferente e muito menos feliz” na vida real. Elementos da comunidade BDSM criticam o filme precisamente pela falta de consentimento e pela ligação ao passado de abuso que a personagem Christian sofreu na infância.
A importância do consentimento está sempre presente. A pessoa que se submete ao jogo erótico “tem prazer em submeter-se e pode parar quando quiser”, explica Alexandra. O BDSM deve ser consensual e não lesivo. Dos dois lados. Bernardo diz: “Eu sinto-me responsável pela minha parceira. Tenho de conhecer minimamente a pessoa, perceber a experiência dela, que tipo de práticas já teve, etc”. Ana diz: “É preciso ter muita segurança, saber onde se está a tocar e com que intensidade. Eu confio naquela pessoa para me deixar ser como sou”.
Simplesmente, sentir
Ana diz, com a voz sorridente: “hoje o meu dominador decide tudo por mim. Se ele me disser ‘acho que não devias fazer assim’, eu aceito. Se for preciso, ele decide por mim 24 horas por dia”, conta. Em público, ninguém nota que têm uma relação BDSM. Mas quando está num café, num restaurante ou no cinema, tem de ter sempre contacto visual com ele. “Procuro o ‘sim’ dele”, diz. “Se eu sentir alguma coisa estranha, eu tenho de lhe dizer para que ele possa perceber melhor o que senti, para poder decidir melhor. É muito íntimo.”
Não se sente dependente dele? “Não. Desde que comecei a relação estou mais autónoma, estou mais feliz, estou mais livre. Tenho um relacionamento que me preenche. Sei que parece um contrassenso, mas o facto de eu recorrer a ele para lhe pedir uma opinião, é porque sei que aquela pessoa me dá força. Hoje, como tenho confiança nele, consigo estar relaxada. E, simplesmente, sentir”.