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Para quem não perceba de futebol, a ligação entre Ricardo Sá Pinto e o movimento de mulheres iranianas, que queimam véus islâmicos na rua e cortam o cabelo como forma de protesto, pode parecer ténue. Mas o antigo atacante, que começou a carreira no FC Porto, é hoje treinador do Esteghlal, clube de Teerão. Quando, no início de novembro, o Esteghlal conquistou a Supertaça do Irão, Sá Pinto falou das más condições do estádio e dedicou a vitória a quem ninguém imaginava: “Sou um estrangeiro neste país e não viram festejos efusivos. Queríamos estar mais felizes, mas as circunstâncias do país não são felizes. Dedico esta vitória às mulheres e aos homens do Irão que estão a sofrer.”
A equipa de Sá Pinto não festejou a vitória, numa altura em que os confrontos por todo o Irão já fizeram mais de 300 mortos, entre eles mais de 40 crianças. No domingo, 6 de novembro, não foi um treinador a pôr o foco na revolução que vai tomando conta das ruas. Foi uma seleção inteira. O Irão defrontou o Brasil no Torneio Intercontinental de Futebol de Praia e os jogadores recusaram cantar o hino em protesto. Mas foi Saeed Piramoon quem deu o toque final. Depois de marcar um golo, no jogo que sagrou o Irão campeão, Piramoon fez o gesto de quem corta o cabelo — um símbolo da luta das mulheres iranianas.
Dieses Bild geht um die Welt: Saeed Piramoon von der iranischen Beach-Soccer-Nationalmannschaft solidarisiert sich (wie übrigens das gesamte Team!) beim WM-Finale gegen Brasilien mit den Protestierenden im Iran ✂️ #IranRevolution #MahsaAminipic.twitter.com/FS4Qu5zjJD
— Ario Mirzaie (@ArioMirzaie) November 7, 2022
As consequências foram imediatas: a transmissão ao vivo foi interrompida e a Federação de Futebol do Irão avisou que gestos idênticos serão punidos. A punição equivale a ser banido da equipa, nada comparado com o desejo manifestado por 227 deputados do Parlamento iraniano (de um total de 290). No domingo, 6 de novembro, em comunicado, pediram ao poder judicial a pena de morte para os manifestantes. Os parlamentares consideram que quem protesta é mohareb, inimigo de Deus, e, por isso, merecedor da pena capital. “Políticos que incitaram os desordeiros” também devem ser punidos.
Seleção de Carlos Queiroz apoia os manifestantes
A 20 de novembro, domingo, arranca o Mundial de Futebol no Qatar. A FIFA já deixou claro o que espera das 32 seleções e reforçou a ideia enviando uma carta a cada uma delas: “Foquem-se no futebol.” Apesar disso, vários futebolistas têm previstas ações pacíficas e elas podem acontecer dentro da própria seleção iraniana, treinada pelo português Carlos Queiroz.
Parte dos protestos, se acontecerem, estarão ligados à violação de direitos humanos naquele país do Golfo Pérsico e à morte de mais de 6.500 trabalhadores que construíram os estádios em condições extremas. No Médio Oriente, as temperaturas podem chegar aos 50ºC durante o verão. Outras manifestações estarão relacionadas com a violação dos direitos das mulheres no Irão e com a posição do país na guerra da Ucrânia (a venda de drones à Rússia).
Em setembro, a dois meses do Mundial, a seleção iraniana de futebol associou-se aos protestos pela morte de Mahsa Amini, uma iraniana curda de 22 anos, que morreu no hospital, no dia 16 desse mês, depois de ter sido detida pela chamada polícia da moral. O seu véu islâmico, o hijab, não estava corretamente colocado e isso traçou o seu destino. Traçou também o futuro imediato do país: desde então, os protestos na rua, reprimidos pela polícia, não pararam.
Em Viena de Áustria, antes do jogo particular com o Senegal, os atletas iranianos alinharam de igual enquanto se ouvia o hino. Mas em vez de exibirem as cores do país, esconderam-nas debaixo de casacos pretos. Ainda antes deste momento, Sardar Azmoun, jogador dos alemães do Bayer Leverkusen, quebrou o silêncio nas redes sociais: “Se eles são muçulmanos, que Deus me faça infiel.”
Ao apoiar os protestos, o jogador arrisca ser afastado da seleção. “Estamos proibidos de falar até ao final do estágio, mas não podia continuar em silêncio. Este sacrifício de ser expulso da seleção e falhar o Mundial não vale um único fio de cabelo na cabeça de uma mulher iraniana. Vocês deveriam ter vergonha pela facilidade com que matam pessoas. Viva as mulheres do Irão”, escreveu no Instagram.
A obrigatoriedade de tapar o cabelo em público foi imposta no Irão depois da revolução de 1979. Nos últimos anos, surgiu também o conceito de mau hijab, ou seja, de um véu colocado sobre a cabeça, mas de forma incorreta. No país, sempre houve iranianas que protestaram contra esta obrigação, defendendo a liberdade de escolha das mulheres.
Taremi, do FC Porto, não confia em políticos iranianos (ou quaisquer outros)
Medhi Taremi, avançado do FC Porto, foi um dos atletas iranianos a alinhar-se com os manifestantes. Como muitos outros, substituiu (temporariamente) a sua foto de perfil nas redes sociais por um fundo negro. Por duas vezes, recorreu ao Instagram para deixar clara a sua posição.
“Não percebo de política e, para ser honesto, não confio em políticos em nenhum lugar do mundo. Como jogador de futebol iraniano que cresceu nesta sociedade, apenas falo com o coração. Acredito que a violência não pode ser solução para ninguém. Durante estes dias, e depois de ver tantas imagens duras, tenho uma profunda tristeza por alguns compatriotas”, escreveu Taremi a 9 de outubro. Se seguir com a seleção iraniana para o Qatar, a sua voz poderá ser silenciada devido às regras impostas aos jogadores.
Referindo-se aos recentes eventos no seu país de origem como “inacreditáveis e dolorosos”, o futebolista disse opor-se a esse comportamento: “Especialmente bater em mulheres, que é contra a nossa religião e a nossa cultura.”
Dias antes, no final de setembro, Taremi tinha usado a mesma rede social para sair em defesa de outro futebolista iraniano que acabou detido, depois de tomar partido sobre os protestos que abalam o Irão. Foi também nessa altura que, tal como Sardar Azmoun, mudou a sua foto de perfil para um fundo negro.
Hossein Mahini, 36 anos, já jogou pela seleção do Irão. Isso não impediu mais de uma dezena de agentes da polícia de invadirem a sua casa para o prenderem. Não foi encontrado na altura, mas acabou na cadeia horas mais tarde — saiu sob fiança. Taremi publicou uma foto do jogador com os filhos e com a legenda “um homem bom”.
Daei, o iraniano cujo recorde Ronaldo ultrapassou, ficou sem passaporte
Mas Mahini não foi o único. Ali Daei — o iraniano que perdeu o recorde de melhor marcador em jogos da seleção para Cristiano Ronaldo — também foi detido. O motivo? O antigo jogador, de 53 anos, encontrava-se em Saqqez, a cidade de Mahsa Amini, onde ia juntar-se à manifestação que marcava os 40 dias da morte da jovem. O passaporte de um dos maiores ídolos do futebol no Irão já tinha sido confiscado pelas autoridades e, a 30 de outubro, Daei, que faz parte da comissão técnica da seleção, foi detido.
Entre as suas tomadas de posição, Daei falou também de Asra Panahi, uma jovem de 15 anos, para dizer que rejeita a explicação oficial para a sua morte: uma paragem cardíaca. A 12 de outubro, no liceu feminino de Shahed, várias alunas recusaram participar numa manifestação de apoio ao regime e entoar cânticos religiosos. Asra foi uma delas. Elementos da polícia à paisana entraram na escola e algumas das raparigas foram detidas e terão sido espancadas. Asra morreu no seguimento de ferimentos graves, versão que o regime de Teerão contesta.
Ali Daei faz parte de um grupo de atletas e ativistas iranianos que pediu à FIFA que excluísse a seleção do Irão do Mundial de Futebol no Qatar. O pedido foi entregue por um escritório internacional de advogados.
Já depois do pedido feito, mais atletas voltaram a insistir. Sosha Makani, antigo guarda-redes da seleção iraniana, fez um apelo, a 3 de novembro, aos adeptos na sua conta de Instagram: não assistam aos jogos do Irão.
سوشا مکانی، دروازهبان سابق تیم ملی فوتبال در ویدیویی اینستاگرامی، رفتن به قطر برای تشویق تیم ایران را در جامجهانی اشتباه دانست و گفت: «از تریبونهای خود فریاد بزنید مرگ بر جمهوری کودککش اسلامی.» pic.twitter.com/mgZWExhyTD
— ايران اينترنشنال (@IranIntl) November 3, 2022
No vídeo, o futebolista refere-se à morte de uma outra jovem, Nika Shakarami, de apenas 16 anos, defendendo que é preciso usar todas as oportunidades para dizer ao mundo que o regime de Teerão é “assassino de crianças”. Assim, considera que a presença dos adeptos nos estádios do Qatar será utilizada para passar a ideia de que os adeptos aprovam a conduta do regime.
“Este governo e os seus apoiantes nojentos assassinaram uma rapariga de 16 anos e, para fugir às consequências, atiraram-na do alto de um edifício. Acham que não vão explorar os vossos cânticos no Mundial? Usem as vossas tribunas para gritar ‘morte ao regime islâmico assassino de crianças'”, pede Sosha Makani.
A morte de Nika Shakarami é apenas mais uma de entre as várias que levantaram suspeitas. A jovem saiu de casa para participar em protestos contra o uso obrigatório do véu islâmico e o seu corpo, sem vida, foi encontrado dez dias depois. As autoridades alegam que se tratou de um caso de suicídio.
Atletas de diferentes modalidades tomam posição contra o regime
Sardar Pashaei é um antigo campeão de wrestling. Amirhossein Esfandiar é jogador de voleibol e pertence à seleção do país. O primeiro, um dos muitos atletas que escreveram à FIFA a pedir a exclusão do Irão do Mundial, argumentou que o seu país é diferente de qualquer outro. “Uma federação de futebol devia ser independente, mas no Irão isso é uma piada.”
Pashaei diz que tudo no seu país é controlado pela Guarda Revolucionária. “O que é de mais, é de mais. Acreditamos que o Irão está a matar manifestantes. Deve ser banido até que se torne um país democrático como outros países do mundo.”
Já Amirhossein Esfandiar partilhou nas redes sociais um vídeo dos protestos, onde se veem cenas de violência entre manifestantes e polícia: “Não têm noção de humanidade, por que motivo batem e assassinam pessoas inocentes?”, escreveu.
As autoridades iranianas reconhecem o papel que as celebridades e atletas do país têm tido nos acontecimentos, mas recusam a ideia de estar a deter algumas delas. O ministro iraniano dos Negócios Estrangeiros, Majid Mirahmadi, citado pela imprensa internacional, assumiu que, apesar de terem um papel determinante nos protestos, será dada às celebridades a hipótese de “corrigirem” as suas ações. Quanto aos atletas, o ministro iraniano argumenta que não foram detidos, mas que apenas receberam “orientação”.
Apesar destas declarações oficiais, o paradeiro da atleta Elnaz Rekab é incerto. A família não sabe onde está a jovem iraniana que, num campeonato de escalada na Coreia do Sul, competiu sem hijab, violando a lei do seu país. A BBC Pérsia escreve que, antes de ser levada à presença do ministro do Desporto do Irão, a jovem esteve detida, sempre sob o olhar atento de polícias à paisana, numa zona fechada da Academia Olímpica Nacional. Ou seja, Elnaz Rekab estará em prisão domiciliária, mas não em sua casa.
Ali Karimi, o “Maradona da Ásia”, quase foi sequestrado
“Nem toda a água benta pode limpar esta desgraça.” Ali Karimi, um dos maiores nomes do futebol iraniano e apelidado de Maradona da Ásia, foi rápido a condenar o regime depois da morte de Mahsa Amini. O regime foi rápido a responder. Emitiu um mandado internacional para a sua captura — Karimi vive nos Emirados Árabes Unidos — por “reunião e conluio ilegais com a intenção de agir contra a segurança nacional”. A Europol recusou-se a executar o mandado e o antigo jogador do Bayern Munique não foi extraditado.
Na sua conta oficial de Twitter, Ali Karimi mantém atividade constante. O seu apoio aos manifestantes não diminuiu, mesmo depois de ter sido, alegadamente, alvo de uma tentativa de sequestro. Um atleta pró-regime contactou o futebolista, dizendo-lhe que queria escapar do país e que tinha conseguido chegar ao Dubai, onde queria encontrar-se com Karimi. A estrela iraniana desconfiou, mas foi uma mensagem de última hora, a avisá-lo de que se tratava de uma armadilha, que o levou a evitar o encontro.
No Twitter, Karimi assumiu que ele e a sua família têm sido alvo de ameaças. Quanto ao outro atleta, terá regressado ao Irão onde continua a fazer publicações a favor do regime.
Atrizes mais amadas do Irão juntam-se aos manifestantes
Muitas celebridades iranianas, do mundo do espetáculo, têm juntado a sua voz à dos manifestantes. Um dos incidentes aconteceu quando o regime ergueu um enorme cartaz com 50 iranianas a usar hijab. O slogan? “Mulheres da minha terra.” Bastaram 24 horas para a Guarda Revolucionária ter de retirar o painel publicitário, depois de muitas das retratadas se terem queixado de a sua imagem estar a ser usada sem autorização.
A mais famosa de todas, com uma reação bastante visceral, foi a de Fatemeh Motamed-Arya, 61 anos, uma das atrizes mais premiadas, respeitadas e queridas do Irão. No vídeo que correu as redes sociais, a atriz aparece de cabelo descoberto. “Não sou considerada mulher numa terra onde crianças, raparigas e jovens amantes da liberdade são mortas nas ruas. Sou a mãe de Masha, sou a mãe de Sarina. Sou a mãe de todas as crianças mortas nesta terra. Sou a mãe de todos na terra do Irão, não uma mulher na terra de assassinos.”
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Fatemeh Motamed Arya, Iranian actress is referring this billboard mad by Owj Arts and Media Organization which belongs to Islamic Republic Revolutionary Guards. She says when you kill #MahsaAmini and teenagers in the streets, then I am not counted as a woman.#مهسا_امینی pic.twitter.com/95s9GlwZOE— Masih Alinejad ????️ (@AlinejadMasih) October 13, 2022
Também a atriz e realizadora Marzieh Boroumand, 71 anos, deixou clara a sua posição no Instagram. “Senhores, removam a minha foto da parede debaixo da qual vocês oprimem crianças e jovens. Nunca permitirei que nenhum grupo, dentro ou fora do país, use a minha identidade cultural para seu benefício próprio.”
A 6 de novembro, outra mulher bem conhecida do público iraniano alinhou com os protestos. Taraneh Alidoosti, 38 anos, vai deixar de trabalhar, para poder apoiar as famílias dos mortos nas ruas do Irão. “Eu fico aqui e não tenho intenção de sair”, disse a atriz, explicando estar disposta a pagar o preço que for preciso para lutar pelos seus direitos.
“Vou ficar e olhar-te nos olhos como todas estas pessoas normais quando gritar os meus direitos. Herdei essa coragem das mulheres da minha terra, que há anos vivem diariamente com resistência e igualdade. (…) Vou ficar com as famílias dos presos e assassinados e exigir os seus direitos, vou lutar pela minha casa, vou pagar o que for preciso para defender os meus direitos, e o mais importante: acredito no que estamos a construir hoje”, escreveu a atriz.
A 9 de novembro voltou à rede social para publicar uma fotografia sua sem hijab e segurando uma folha onde se lê “mulher, vida, liberdade”, a frase que se tornou o slogan dos protestos.
Em outubro, Elnaaz Norouzi, 30 anos, publicou um vídeo na mesma rede social que começa com a atriz da Netflix completamente tapada com as vestes islâmicas. Ao longo do vídeo, vai tirando várias camadas de roupa, até ficar quase despida. Em cada momento, a legenda é semelhante: “Se esta é a tua escolha, é OK.”
Várias organizações internacionais têm feito o balanço das mortes ocorridas durante os protestos no Irão. Uma delas, a Human Rights Activists News Agency (HRANA), sediada nos Estados Unidos, tem publicado no Twitter relatórios diários, com dados não confirmados pelas autoridades do Irão.
A 9 de novembro, a organização dava conta de 328 manifestantes mortos durante os protestos, entre eles, 50 crianças. O contraste com os números oficiais é enorme. Do lado do regime, contabilizam-se 39 mortes. Além disso, já foram detidas 14.825 pessoas, segundo as contas da HRANA.
Entre os detidos estão vários jornalistas, como NazilaMarufian, que entrevistou o pai de Mahsa Amini. Depois de ter estado em prisão domiciliária, a jornalista foi transferida para a prisão de Evin. Segundo o Comité para a Proteção dos Jornalistas, uma organização internacional, mais de 60 repórteres foram detidos no Irão desde que a morte de Mahsa Amini fez levantar a onda de protestos.