Desde junho que Max Cardoso não trabalhava e o último emprego que lhe conheceram foi numa loja em França, a ganhar um salário de 1300 euros. Ainda assim o companheiro da modelo e apresentadora de televisão Ana Lúcia Matos não se coibia de comprar casas e carros a pronto e de ostentar uma vida de luxo. Ela, no entanto, garante nunca ter duvidado da origem do dinheiro e chegou mesmo a emocionar-se durante o primeiro interrogatório judicial em que respondeu pelo crime de branqueamento.
Envolvida numa fraude que terá lesado os cofres da União Europeia em 2,2 mil milhões de euros, a apresentadora foi uma dos 14 detidos há uma semana por suspeitas de crimes como associação criminosa, fraude fiscal, branqueamento e falsificação de documentos. Perante o representante da Procuradoria Europeia que conduz a investigação, Ana Lúcia Matos teve uma postura diferente daquela que foi captada pelas imagens das televisões que a aguardavam, esta terça-feira, à porta do Tribunal de Instrução Criminal do Porto. Aos jornalistas disse-lhes que eram “uma vergonha” e que em causa no processo estavam 14 arguidos e não apenas o marido. Já em primeiro interrogatório judicial, apurou o Observador, a modelo de 39 anos emocionou-se e disse nunca ter suspeitado do facto de o companheiro não trabalhar, apesar de ter residência em Portugal e em França (de onde é natural) e contas no Dubai — para onde aliás o casal queria ir viver, mas o visto de residência foi recusado a Max.
Para o Ministério Público as contas da modelo são alimentadas com dinheiro de um crime e até mesmo a empresa, que a agenciou no Dubai, recebe dinheiro de outras sociedades envolvidas na investigação e que terão fugido a impostos de milhões de euros nos últimos anos. O procurador que a interrogou teve mesmo dúvidas do “grau de ingenuidade” de Ana Lúcia. Como se explica de onde vem o dinheiro para pagar imóveis a pronto, realizar obras de decoração, comprar um Porsche e nada ter em seu nome para não declarar impostos?
Como os arguidos usaram a Amazon para fazer dinheiro
A Procuradoria Europeia já há muito que investigava os esquemas de um dos 14 arguidos neste processo, um francês de 39 anos que veio viver para Portugal em 2016 com a mulher, a sogra e o filho quando se apercebeu que em França decorria uma investigação contra ele e que iriam fazer buscas à sua casa. Ao investigar Prathikounh Lavivong e as suas diversas empresas, as autoridades chegaram a Max Cardoso, também nascido em França e já com um processo judicial também por fraude naquele país.
Segundo o despacho de indiciação dos crimes que levaram à detenção destes 14 suspeitos, os suspeitos criavam entidades de “fachada” com o único propósito de emitirem faturas forjadas num circuito de venda de equipamentos eletrónicos no mercado europeu. A ideia era não liquidarem IVA. Para movimentar o dinheiro que recebiam, abriram também diversas contas bancárias em nome das empresas e de terceiros, a quem pagariam uma comissão pelo branqueamento.
As autoridades, com o auxílio da Polícia Judiciária, perceberam então que a célula em Portugal deste grupo criminoso — que se presume com tentáculos em vários países como Alemanha, França, Itália, Chipre, Estados Unidos da América e Dubai, – era composta por um grupo de natureza mais familiar: liderado pelos franceses Prathikounh Lavivong e pela mulher Isabelle Lafontain; e do qual também fazia parte a mãe desta, Brigitte. O outro grupo seria controlado por Max Cardoso, o companheiro da apresentadora de televisão, auxiliado por Filipe Fernandes, um português de 50 anos que trabalha para uma empresa no Dubai que será das principais envolvidas neste esquema, a Unitradion. Filipe tem um apartamento no Dubai, carta de condução válida naquele país e a mulher e os filhos até têm autorização de residência. Mas ele garante que nunca lá viveu.
Marido de apresentadora de TV fica em prisão preventiva por megafraude fiscal
Para as autoridades, estes suspeitos criam ou mantêm empresas que realizam transações fora do radar fiscal, fazendo-as atuar como missing traders, interagindo com as entidades fiscais, mas escapando às obrigações tributárias em sede de IVA — com o recurso a declarações e documentação falsa. Uma das plataformas de venda online usadas era o Grupo Amazon, porque permitia abrir contas comerciais para vendedores e compradores, disponibiliza aos vendedores a distribuição e transporte dos produtos e funciona como uma entidade financeira, que recebe os valores dos clientes finais e os envia para as contas bancárias indicadas pelos vendedores.
Além destes seis suspeitos, a Polícia Judiciária detetou ainda outros casais envolvidos no esquema: Tiago Pereira e Sandra Garcia, ambos com residência na Figueira da Foz e ela com autorização para residir no Dubai, e António Pereira e Cláudia Silva — que segundo o Ministério Público se divorciaram para que ele conseguisse que o seu património escapasse aos credores, mas que permanecem juntos.
Uma viagem de táxi do Luxemburgo para Amesterdão
Mónica Vitém, uma funcionária de 44 anos da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, é também arguida. Em interrogatório judicial admitiu mesmo, pelo que apurou o Observador, o “funcionamento completamente artificial das empresas” e a falta de faturação. E lembrou um episódio que mostra bem como o dinheiro não faltava: uma vez foi à Amazon, no Luxemburgo, com Sandra e Cláudia Lourenço (outra arguida) e apanharam um táxi para viajar até… Amesterdão. Cláudia, 43 anos, preferiu remeter-se ao silêncio, já Sandra terá dado a entender que cedeu ao esquema por dificuldades económicas. O mesmo argumento foi usado pela arguida Estrela Gonçalves, que era técnica oficial de contas e a quem foram apontados vários incumprimentos nas suas funções.
Pascoal Lázaro, outro arguido de 79 anos com residência no Funchal, era quem abria muitas das sociedades usadas pelo grupo. Mas a Procuradoria focou-se sobretudo na vida dos líderes, falando mesmo numa hierarquia montada para os servir.
Quantias “astronómicas” em dinheiro nas contas
Lavivong, constataram as autoridades, tinha várias contas em nome da sogra, de 78 anos, por onde fazia passar quantias “astronómicas” em dinheiro”. Entre março de 2020 e maio de 2022, por exemplo, a conta de Brigitte Fontaine recebeu mais de um milhão de euros em movimentos vários que rondavam sempre os milhares de euros. Entrou também dinheiro resultante de património vendido e de uma empresa em que a septuagenária chegou a ter participação: a Logistar.
Em tribunal mãe e filha negaram conhecer a origem ilícita do dinheiro, apesar de saberem bem que Lavivong enfrentara um processo judicial em França e que foi por isso que vieram todos para Portugal. O casal tem um filho com problemas de saúde que continua a fazer tratamentos em França — o que, por um lado, reforçou a convicção do Ministério Público de que esta família, a viver em Guimarães, sabia como a sua fortuna crescia diariamente, mas fez com que o tribunal decidisse manter a avó da criança em liberdade, para cuidar da criança, e que a mãe ficasse em prisão domiciliária.
Lavivong tentou em interrogatório judicial responsabilizar-se e afastar a culpa da mulher e da sogra pelos movimentos suspeitos. Mas para as autoridades a mulher Isabelle, de 54 anos, não era ingénua. Não só exercia funções remuneradas nas sociedades em investigação, como foi exibindo sinais de riqueza, como jóias e artigos de luxo que lhe foram apreendidos, incompatíveis com os seus rendimentos. Mais. Também era comum Isabelle prestar informações falsas sobre o seu verdadeiro marido.
Para pedir ao tribunal que mantivesse Lavivong em prisão preventiva enquanto decorre o processo, o Ministério Público lembrou não só a sua fuga de França como um dia em que foi interrogado naquele país e que se fez passar por outra pessoa. Queria assim mostrar que se o juiz de instrução não o prendesse, que ele podia fugir e facilmente obter outra identidade.
Para a investigação, e apesar de Lavivong o negar, é evidente a sua ligação a Max, o marido da modelo e apresentadora. No ginásio de uma casa usada por Max foi encontrado um carimbo de uma das empresas ligadas a Lavivong. E as autoridades encontraram também funcionários comuns às sociedades de ambos. E não é só Lavivong que tenta mudar a identidade para não ser descoberto. A Polícia Judiciária, na centena de buscas que fez, descobriu que também Max duplica as identidades. Quem o conhece trata-o por “Bracinhos” ou “Chefe”, mas a PJ apreendeu-lhe mesmo dois passaportes com nomes diferentes e dois números de contribuinte.
Os 14 arguidos foram esta terça-feira presentes ao Tribunal de Instrução Criminal do Porto. Seis, entre eles Max e Lavivong, ficaram em prisão preventiva. A mulher de Lavivong passará para prisão domiciliária mal tenha condições de vigilância em casa. Aos oito arguidos que ficaram em liberdade, foi determinado que não podem contactar entre si, foi-lhes interdita a abertura de contas ou a criação de empresas e sempre que tiverem que se ausentar para o estrangeiro têm que avisar o tribunal.