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Insónias, pesadelos e horários de sono alterados. Este tem sido o quotidiano de praticamente metade dos portugueses desde o início da pandemia. Com o sedentarismo a aumentar e os horários do teletrabalho a serem cada vez mais flexíveis — e longos —, registam-se cada vez mais queixas no que diz respeito à hora de dormir.
Um inquérito realizado pelo Centro de Investigação em Neuropsicologia e Intervenção Cognitivo-comportamental da Faculdade de Psicologia e Educação de Coimbra (FPEC) — em parceria com a Associação Portuguesa do Sono (APS) –, veio mostrar que durante o primeiro confinamento 45,7% dos inquiridos sentem que o sono piorou, contra 37,8% que referem que os hábitos na hora de ir dormir se mantiveram. E apenas 14,6% revelaram que dormiram melhor durante o confinamento.
“Há um impacto diferente”, começa por dizer Ana Allen Gomes, psicóloga, membro da APS e professora na FPEC. Os efeitos na pandemia no sono não são “iguais para toda a gente” — houve pessoas que até “melhoraram os hábitos de sono”, confirma.
O principal problema, de acordo com o inquérito, são as insónias. 18% dos inquiridos sofrem de “insónias clinicamente significativas”, que vão além de sintomas isolados. E este número é “superior” à “prevalência habitual”, que normalmente se regista em outros países, que se situa nos 10%. Há ainda uma subida face aos dados de 2017, que davam conta de que eram 11% os portugueses que sofriam de insónias crónicas. Como consequência, surge um aumento da fadiga, de problemas gastrointestinais e dores também crónicas. Um estudo publicado esta segunda-feira também relaciona os distúrbios do sono com má higiene oral nas crianças.
Ainda de acordo ainda com a sondagem da APS, foram as mulheres, os estudantes e os cuidadores informais quem mais viu o seu sono piorar durante a pandemia. Do outro lado, quem relatou mais melhorias foram os jovens trabalhadores sem filhos. E há um outro dado interessante: “Os horários de sono, de uma forma média, estão mais mais tardios à semana. Por outro lado, aos fins de semanas, as pessoas vão dormir mais cedo. Há uma maior aproximação dos dias da semana aos do fim de semana, o que pode ter contribuído para uma melhoria do sono”, explica Ana Allen Gomes.
Mas de que modo é que pandemia afetou o horário de sono dos portugueses? Quais são as consequências? E o que podemos fazer para melhorar?
O que é, afinal, dormir mal?
A neurologista Teresa Paiva define que uma má noite de sono para um adulto é “dormir menos do que precisa”, o que “garantidamente é menos que cinco horas por noite“. Mas também há outros sinais que indicam uma “higiene do sono” deficitária:
“Dormir fora de horas e para ir para a cama muito tarde (depois das 2h00)”;
“Quando ocorre alguma coisa durante a noite”, ou seja, quando se “demora muito tempo a adormecer”, sempre que se acorda “várias vezes por noite” ou mesmo nas ocasiões em que se “sonha muito”;
Sintomas como “ressonar”, “ter um sono agitado” e acontecerem “coisas bizarras”, como “cair da cama” ou “gritar”.
Na manhã seguinte, explica Teresa Paiva, quem dorme mal vai sentir que o sono não foi “retemperador”, sentindo um “maior cansaço” e “dores de cabeça”. Mas também há efeitos a longo prazo devido à privação de sono, incluindo maior probabilidade de desenvolver cancro, Alzheimer, doenças cardiovasculares, autoimunes, gastrointestinais e cerebrovasculares.
Além disso, dormir mal pode estar na origem de mais “acidentes” e há uma maior probabilidade de existirem “comportamentos de risco”. “Há um maior risco de morte precoce”, sintetiza a neurologista.
Porque é que a pandemia piorou o sono?
A pandemia de Covid-19 teve um “impacto em toda a organização da vida das pessoas” e “as rotinas foram arrasadas”, diz Ana Santa Clara. “Houve uma quebra da rotina, do que eram as atividades diárias e isso acabou inevitavelmente por ter impacto quer no sono, quer no horário, quer na qualidade do sono”, diz. O dever geral de confinamento e o isolamento acabaram, assim, por criar obstáculos a uma boa noite de descanso.
Um maior sedentarismo foi dos primeiros efeitos da pandemia, o que origina uma diminuição do sono pela falta de atividade física e ainda um aumento de peso — que agrava e potencia quadros clínicos de apneia de sono. Também houve, de acordo com Ana Santa Clara, uma “alteração, para pior, do padrão alimentar”.
Além disso, as pessoas também “empurraram o sono mais frente”. Para Teresa Paiva, esta prática é um “erro massivo para a saúde física e mental”. E o teletrabalho ajuda a explicar o fenómeno: “Não existe uma delimitação entre o trabalho, a casa e a vida pessoal, passa tudo a ser fluido. Com esta mistura de ambientes, torna-se muito complicado estabelecer limites”.
O “trabalho excessivo, com interrupções, com multitasking e com reuniões Zoom a toda a hora”, em que as pessoas “são baratas tontas”, acaba por ser um “violência sobre os trabalhadores”, tendo um impacto evidente na qualidade de sono, indica Teresa Paiva. “Tem de haver limites claros” para as pessoas “trabalharem bem-dispostas” — e, para isso, precisam de uma boa noite de sono.
Com a ordem para evitar sair à rua, Ana Santa Clara salienta igualmente a falta de exposição à luz solar: “As pessoas apanham menos luz, que faz falta para a regularização do padrão do ciclo de sono”. A psiquiatra destaca que é “importante estar sincronizado com o ciclo do dia e da noite”.
A ansiedade foi algo que também aumentou durante a pandemia e que acabou por prejudicar a qualidade do sono: “Houve mais queixas de sono, da ansiedade e de padrão de depressão”, assinala Ana Santa Clara. Também Teresa Paiva corrobora a ideia de que uma abordagem mais “pessimista” na vida, em que se pensa demais em “chatices”, acaba por desajustar os padrões de sono. “Quando alguém se mete na cama a ver se dorme para esquecer os problemas, é uma péssima ideia”, sublinha a neurologista.
A boa notícia é a tal de que há pessoas a dormir melhor, muito por causa da suspensão de rotinas que normalmente causavam stress, como as horas de ponta no trânsito, de manhã e ao fim da tarde. “Este grande nervosismo em que as pessoas estão durante três horas diárias reduziu-se de forma significativa”, sinaliza. E isso acabou não só por reduzir a ansiedade, como também por tornar mais fácil aumentar as horas de sono.
Como dormir melhor? E o que não se deve fazer para ter uma boa noite de sono?
Para as especialistas, há vários truques para ajudar a dormir melhor durante a noite, que já provaram ser “eficazes” cientificamente.
Praticar exercício físico e ter uma boa alimentação, preferencialmente regular. Ana Santa Clara aconselha uma caminhada à hora de almoço, que promove não só a atividade física, como também permite a tal exposição à luz solar.
Impôr uma “regularidade horária”, ou seja, ter sempre a mesma hora de ir para a cama e a mesma hora de acordar. É essencial manter o “ritmo regular”, diz Ana Gomes Allen.
Fazer um esforço para estar exposto à luz natural, o que ajuda o organismo a calibrar os horários de sono. E mesmo quem não tem varanda ou jardim, deve tentar abrir os cortinados ou persianas.
Comer três horas antes de ir para a cama e não na hora de dormir.
Tirar um tempo para se fazer o que mais se gosta e socializar com familiares e amigos, de modo a evitar o isolamento, que traz quadros de depressão e de ansiedade — que acabam por perturbar a qualidade do sono.
Estabelecer um local de trabalho que deve ser diferente daquele em que se dorme. Para aqueles que utilizam a mesma divisão para trabalhar e para descansar, deve haver duas zonas diferenciadas. “Não se devem misturar os espaços”, afirma Ana Allen Gomes.
Por outro lado, quem dorme mal deve evitar:
Utilizar aparelhos eletrónicos uma hora antes de ir dormir. Não só pela “luz”, mas também pelo “conteúdo”, que “pode criar dificuldades para adormecer”, indica Teresa Paiva.
Estar horas a jogar no computador e ver televisão durante muito tempo durante o dia. A dependência e o uso excessivo destes equipamentos são “muito negativos”, diz a neurologia.
Passar muito tempo sem comer.
Comer muito e consumir bebidas alcoólicas antes de ir para a cama.
Trabalhar na cama.
Para Ana Santa Clara, o “sono é uma coisa de 24 horas”, não apenas uma atividade que se inicia “quando as pessoas vão para cama”. É por isso necessário manter um padrão de vida saudável durante o dia para garantir uma boa noite de sono, “fundamental para que as pessoas funcionem bem”. “O sono é essencial à sobrevivência, é quando se recupera tudo o que se gasta, é quando as memórias são consolidadas e se reorganiza a informação mais importante”, explica ainda a psiquiatra.
Para ajudar a compreender melhor os padrões de sono dos portugueses, há um inquérito que está a ser realizado pelo Grupo de Investigação Covid-Saúde-Hábitos, a que pode responder aqui.