Passava pouco do meio-dia e o sol batia de chapa na antiga fábrica de tijolos de Subotica, na Sérvia. Foi assim, a 13 de setembro de 2015, em pleno pico da crise dos refugiados, que conhecemos Issam, um sírio fugido da guerra a caminho do asilo na Alemanha.
A história de Issam é um reflexo claro daquilo que é a vida na Síria desde que o país se tornou palco de uma guerra civil sem fim à vista. Issam, médico, vivia na cidade costeira de Latakia quando começaram as manifestações contra o regime de Bashar Al-Assad em 2011, embaladas pela Primavera Árabe. Nem mesmo o facto de aquela cidade ser um bastião do ditador sírio a poupou a algumas manifestações — como aquela que levou a que Issam escolhesse fugir de lá juntamente com a mulher. A decisão foi tomada no dia em que estava de serviço no hospital e viu um colega afeto ao regime esmurrar uma mulher que tinha ido para as urgências depois de ser baleada num protesto contra Assad. “Não foi para isto que eu estudei para ser médico, não é nada disto, nada, nada. Um médico tem de ajudar as pessoas, seja lá quem elas forem. Não serve para torturá-las”, disse-nos em setembro.
Depois desse episódio, Issam instalou-se em Sarmada, uma cidade síria na fronteira com a Turquia, que estava sob controlo dos rebeldes — e que entretanto já foi alvo de bombardeamentos aéreos russos. Em Sarmada, Issam vivia fora das rédeas do regime de Assad, é certo, mas não estava seguro. Quando saía de casa para trabalhar como médico na ONG International Medical Corps, era costume ver cadáveres no meio das ruas. Não demorou muito até ir para o outro lado da fronteira, na Turquia. Nessa altura, já com um filho nas mãos, um rapaz chamado Bisher que nascera em plena guerra civil.
A decisão de vir para a Europa foi tomada sobretudo por causa de Bisher. E também foi por ele, e pela sua segurança, que Issam escolheu fazer a perigosa viagem para a Alemanha sozinho. A mulher e o filho iriam juntar-se-lhe mais tarde, quando conseguisse finalmente o estatuto de refugiado na Alemanha. Com esse papel na mão, Bisher e a mãe poderiam viajar de avião da Turquia até à Alemanha, em segurança.
Nem tudo correu como planeado — embora tenha conseguido chegar à Alemanha poucos dias depois daquela tarde em setembro, Issam continua ainda hoje sem o estatuto oficial de refugiado. Vive agora em Wadersloh, uma pequena localidade com pouco mais de 10 mil habitantes no Oeste da Alemanha. Não muito longe de Colónia, a cidade onde a passagem de ano foi marcada por uma onda de assaltos e assédio sexual em massa, incluindo três alegadas violações — as testemunhas no local apontam invariavelmente que os agressores eram árabes, entre eles refugiados.
Issam acredita que os incidentes de Colónia colocam a Alemanha perante um desafio: “Distinguir entre os verdadeiros refugiados que precisam de ficar aqui e os que não precisam”. Mas também adianta que a longa espera que cada um tem de fazer para ser entrevistado para receber asilo pode levá-los à loucura — e também ao crime. Na casa onde vive, juntamente com 50 homens que dividem uma cozinha e duas casas de-banho, já houve quem tentasse o suicídio. E Issam, passados quatro meses de espera, já pondera voltar para a Turquia, para junto da mulher, que trabalha como caixa de supermercado em Antakya (cidade na fronteira com a Síria), e do filho de quase três anos, e não contentar-se com as conversas pelo chat, por muito regulares que sejam. “Prefiro estar numa zona de perigo e correr o risco de morrer com a minha família do que estar numa casa com cinquenta pessoas desta maneira.”
Em setembro, escrevemos uma reportagem quando Issam estava prestes a atravessar a temida fronteira da Sérvia com a Hungria. Agora, damos a conhecer a história dos quatro meses que se seguiram a esse momento, contada pelo próprio:
A chegada à Alemanha. “Minha vida, faz as malas”
“A noite em que atravessei a fronteira da Sérvia para a Hungria foi a pior da minha viagem. Ficámos numa floresta até à meia-noite. Estava muito frio e não conseguia ver nada à minha volta. Havia uma porta na vedação [entre os dois países] e passámos para o lado da Hugnria. Éramos um grupo de 25 pessoas e o nosso contrabandista era um tipo do Paquistão. Depois de esperarmos, apareceu uma carrinha. Entrámos lá para dentro. Andámos durante sete horas sem parar. Atravessámos a Hungria toda e quando soube já estava na Áustria.”
“Passei uma noite em Viena. Depois comprei um bilhete de comboio para Munique. Quando chegámos à fronteira com a Alemanha, a polícia mandou parar o comboio e meteu-nos noutros comboios a seguir. Foi aí que passámos a fronteira. Nessa altura mandei uma mensagem à minha mulher. Estávamos tão felizes. Disse-lhe: “Minha vida, finalmente estou na Alemanha. Tu e o nosso rapaz vão finalmente estar seguros. Começa a fazer as malas porque em breve vamos estar juntos. Foi um sentimento lindo”
“O comboio onde me meteram foi para Dortmund. Éramos mais ou menos 200 pessoas lá dentro, a maior parte eram do Bangladesh, do Paquistão e da Índia. Quando lá chegámos havia tanta gente a receber-nos… Tudo a dar-nos as boas-vindas. E assim que fomos recebidos em Dortmund deram-nos uma refeição quente num refeitório. Foi um gesto bonito. Depois do jantar, fomos de autocarro para Gelsenkirchen. Foi lá que vivi durante dois meses. Dormia num pavilhão desportivo com outros refugiados. Depois, mandaram-me para esta aldeia para ficar num grupo de homens.”
A vida à espera numa casa sobrelotada. “É um pedaço de inferno”
“A casa onde eu vivo é um pedaço de inferno. É grande e tem dois andares. Cada andar tem seis quartos pequenos e cada quarto tem quatro camas. Mal dá para andar lá dentro. Somos 50 homens e temos de partilhar uma cozinha. E só há uma casa de banho por andar! Se pusessem porcos neste sítio eles morriam numa semana. É um sítio imundo… 25 pessoas cada casa de banho… O que é que achas? É de loucos. Há discussões e gritos a toda a altura. É inaceitável. Há gente que até já fugiu daqui. Ninguém sabe onde eles estão.”
“Houve uma pessoa cá em casa que tentou matar-se por desespero. Nós estamos todos aqui à espera de nos darem uma data para sermos entrevistados — é nessa altura que decidem se nos dão asilo ou não. Nem é pela entrevista que esperamos. É pela data! E há gente que está há sete meses à espera. É o caso de um que se tentou matar. Ele enlouqueceu. Deu um murro numa porta de vidro, ficou com a mão cheia de sangue. Depois tentou cortar os pulsos. Felizmente não lhe aconteceu nada de grave e um dos nossos vizinhos conseguiu levá-lo a tempo para o hospital.”
“Há aqui uma falha do Governo alemão. Isto não faz sentido. Eles têm tempo para nos darem uma bolsa de 340 euros por mês. Têm tempo para nos darem aulas de alemão a todos. Têm tempo para nos acompanharem em hospitais. Mas depois não têm tempo para nos fazerem uma entrevista de 10 minutos no máximo. Estamos só à espera que nos deem uma data para sermos chamados. Ninguém sabe se isso vem hoje, amanhã, ou se só vem daqui a vários meses. Ninguém sabe. E parece que é tudo feito de forma aleatória. Houve gente que chegou e passadas duas semanas foram chamadas. Eu estou neste sistema, eu sei que sim, e sei que as intenções são boas. Mas este sistema é estúpido.”
Os crimes de Colónia. “Há pessoas na minha casa que mais tarde ou mais cedo podem tornar-se criminosos”
“A culpa do que aconteceu em Colónia é deste sistema estúpido. Há muita gente a entrar aqui. Gente do norte de África, do Paquistão, Bangladesh, Índia… Eles passam pelas mesmas fases do que qualquer refugiado para terem papéis. E ficam aqui muito tempo, até que alguns começam a causar problemas, porque na verdade não acham que vão ter de ficar aqui para sempre. Eles sabem que um dia vão poder voltar aos seus países. Nós, os sírios, já não. Por isso temos cuidado para não cometermos nenhum erro que possa afetar a nossa situação neste país. Quem montou este sistema na Alemanha vai ter de saber distinguir entre os verdadeiros refugiados que precisam de ficar aqui e aqueles que não precisam.”
“Mas depois há outra coisa. Há pessoas aqui na minha casa que, independentemente da sua nacionalidade, correm o risco de se tornarem criminosos mais tarde ou mais cedo. Basta continuarem nesta situação durante mais tempo. Sem documentos, sem trabalho, sem nada. Passam o dia a beber.”
Vontade de voltar para trás. “Estou a perder o meu tempo aqui”
“Eu tento fugir à má vida. É tudo muito difícil para mim, porque tenho poucas coisas para ocupar o meu tempo. Vou às aulas de alemão todos os dias de manhã. Depois volto para casa e faço o meu almoço. E depois vou para o meu quarto e fico a ler. Leio o livro de alemão, todos os dias estudo palavras novas. Já falo um bocado. Ser gut [Muito bom]. Ja [Sim]. Ich muss lernen [Tenho de aprender]. E também leio livros de medicina em inglês que trouxe comigo da Síria.”
“Nunca me senti discriminado aqui em Wadersloh. As pessoas daqui são simpáticas, muito acolhedoras, nunca me fizeram sentir à parte. Mas a verdade é que eu gostava de ter mais contacto com eles. Esta casa acaba por nos isolar. Não é que estejamos fisicamente isolados, mas a casa está cheia de homens adultos. E por mais simpáticas que sejam, as pessoas são sempre mais abertas a mulheres e crianças do que a homens como nós.”
“Ontem voltei a falar com a minha mulher sobre a minha situação aqui. Ela diz-me que eu tenho de ter mais paciência, que tenho de aguentar mais… O pior de tudo é esperar durante um tempo sem limite, sem previsões, sem nada. E nem sabemos bem do que é que estamos à espera ao certo.”
“Já tenho muitas saudades da minha mulher e do meu filho… Sinceramente já começo a pensar em voltar para a Turquia. Tenho lá a minha família. Eu só vim para cá com a ideia de eles virem também mais tarde, quando eu já tivesse os papéis todos resolvidos. Mas isto nunca mais avança. Prefiro estar numa zona de perigo e correr o risco de morrer com a minha família do que estar numa casa com cinquenta pessoas desta maneira. A maioria deles não sabe ler nem escrever e eu sou médico. Há gente a precisar de mim! Eu assim não sirvo para nada. Estou a perder o meu tempo aqui.”