23 de Outubro de 1931. Um operário agoniza numa enfermaria do Hospital da Marinha. Tem 23 anos e trabalha como torneiro mecânico nas oficinas da Aviação Naval. Entrou há pouco no hospital. Ao médico que o atende, Mendes Belo, o jovem operário, ainda com o fato de ganga com que fora trabalhar, diz com dificuldade “Foi depois de ter comido pão com chouriço…” O seu estado é tão grave que apesar de ser civil foi solicitado o seu internamento naquele hospital reservado à Marinha.
Às 12h30 o escrivão anota no livro de registos de ocorrências do Hospital da Marinha: “Torneiro mecânico José Manuel Soares, em serviço nas Oficinas da Aviação Naval – Hospitalização acidental, julgada urgente.”
Enquanto presta os primeiros cuidados ao doente, o médico nota que os seus gestos são seguidos com crescente interesse pelos marujos e pessoal do hospital. Há quem acorra para ver o que está acontecer. Para surpresa do médico o grupo desses assistentes não pára de aumentar. Até que, como mais tarde relatará o médico Mendes Belo a um jornalista, “os rapazes” lhe disseram: “É o Pepe!”
“É o Pepe!”
Quem estava entre a vida e a morte naquela enfermaria era o primeiro grande ídolo do futebol português: o torneiro mecânico José Manuel Soares era o jovem que em 1927, com 19 anos acabados de fazer e a camisola da Selecção vestida, marcou dois dos quatro golos com que Portugal esmagou a França. Foi também o autor do golo na vitória sobre a Checoslováquia em 1930 e capitão de uma das mais importantes equipas de então, o Belenenses.
Como dramaticamente se percebe naquela tarde de 23 de Outubro de 1931 no Hospital da Marinha, em Lisboa, Pepe era um dos rostos da mudança que então se vivia no mundo desportivo: ainda sem se poder dizer um desporto de massas, o futebol era em boa parte ignorado pelas elites mas tornava-se cada vez mais popular entre o povo. Assim, o médico não conhecia a estrela do futebol mas os trabalhadores do hospital e os marujos, esses, reconheceram de imediato o Pepe no jovem operário que, apontando para a barriga, dizia ao médico Mendes Belo: “Daqui é que parte”.
A notícia da hospitalização corre do Hospital da Marinha a Belém, onde vivia Pepe e o Belenenses tinha o seu campo, nas Salésias até chegar às redacções dos jornais…
Especula-se com o que teria levado Pepe a ser hospitalizado. Doença? Consumo dos malditos géneros podres e adulterados que pululavam pelas mercearias e talhos da capital?…
A comoção aumenta quando se sabe que quase à mesma hora que Pepe era levado para o Hospital da Marinha a sua mãe começara a sentir-se mal. Pouco depois foi a sua irmã Susana que começou com queixas. Pelas cinco da tarde o irmão Rogério cai desmaiado e é levado para o Hospital de São José… A noite vai chegando. Os outros dois irmãos de Pepe, Jorge e Ana, também não se sentem bem.
Apenas o pai não apresenta queixas.
Entretanto, nas oficinas da Aviação Naval, aparece num canto o corpo sem vida da gata Faroleira, mascote dos operários, e que estivera brincando junto de Pepe nessa manhã.
Seguindo o rasto de todas estas pessoas – da gata Faroleira falaremos depois – chega-se a uma hora e um dia em que parece estar a chave para esta sucessão de acontecimentos: seis e meia da tarde de 22 de Outubro. Ou seja, temos de recuar à véspera de Pepe ter entrado no Hospital da Marinha, mais precisamente temos de olhar, como quem contempla as peças desarrumadas de um puzzle, a última refeição que a família de Pepe tomou em conjunto.
Um jantar em família
São seis e meia da tarde, hora a que então se jantava em muitas casas. À mesa estão Pepe, a mãe e os irmãos Ana, Rogério, Jorge e Suzana. A refeição consta de sopa de grão com massa acompanhada por carne de vaca cozida, entrecosto e chouriço.
Mas nem todos comem o mesmo: o pai jantara mais cedo e comeu apenas grão. A irmã Ana praticamente só come massa. E, claro, todos comem pão. Muito pão.
Acabada a refeição ainda sobra algum tempo antes da hora de deitar. Nos últimos tempos os serões de Pepe eram passados na casa da noiva, Rosa do Carmo. Mas antes das dez da noite já Pepe fazia o caminho de regresso da Calçada do Galvão, onde vivia Rosa do Carmo, para a Rua do Embaixador, onde o capitão do Belenenses vivia com a sua família no minúsculo n.º 17.
Naquela zona popular o sono chega cedo porque é também muito cedo que começa o dia. Às seis e meia da manhã do dia 23 acorda-se no n.º 17 da Rua do Embaixador. Todos bebem café e comem pão. O pai é o primeiro a sair: vai para o Mercado de Belém, onde tem uma banca.
Depois é a vez de o irmão Rogério seguir para oficinas da CML, em Alcântara. Às sete e meia da manhã, imitando um gesto já feito por Rogério, Pepe pega na lancheira arranjada pela mãe. Lá dentro está o almoço: pão com o chouriço que sobrara do jantar da véspera.
Pepe despede-se e sai. Percorre uma cidade no bulício das primeiras horas do dia: “De todos os lados, as donas de casa saíam à rua, dirigindo-se às padarias. Leiteiros, braços pendidos ao peso das bilhas, palmilham as ruas, batem às portas, sobem aos andares dos prédios”, escreve no Notícias Ilustrado o jornalista Tomé Vieira, na reconstituição que faz sobre as últimas horas de Pepe. “Pepe dirige-se ao Centro de Aviação Marítima, no Bom Sucesso, em cujas oficinas é empregado. Pelo caminho: rua de Belém, largo de Belém, largo dos Jerónimos, encontra amigos, camaradas, admiradores, que o saúdam: ‘Adeus Pepe. Adeus Pepe’. E ele responde, sorrindo sempre: ‘Bons dias! Bons dias!’”.
A um quarto para as oito está nas oficinas da Aviação Naval. Muda de roupa e começa a trabalhar. Às 10h30 pára para comer. Pergunta aos colegas: “Vocês querem da bucha?” Estes respondem: “Obrigada, bom proveito”. Pepe começa a comer. Partilha o chouriço com a mascote da oficina, a gata Faroleira.
Às 11h experimenta os primeiros sinais de mal estar. Diz para os colegas: “O pão e o chouriço que comi fizeram-me mal.” Piora. Tem de interromper o trabalho porque se sente sem forças.
Às 11h30 o seu estado já inspira cuidados e os colegas levam-no ao posto de enfermagem que existia nas oficinas. O enfermeiro não está. Um oficial toma a decisão de transportar Pepe no automóvel da unidade até ao Hospital da Marinha. Às 12h30 já o escrivão fazia o registo do seu internamento.
Duas horas depois a sua situação agrava-se. O pulso desaparece. O médico toma a decisão de fazer uma transfusão de sangue. Vários braços se oferecem. O pulso reaparece mas a esperança dura pouco: Pepe volta a piorar, entra em coma e às 10h30 do dia 24 morre.
Porquê?
Perante o absurdo desta morte, uma primeira pergunta impõe-se: porque morreu Pepe? E vinda não se sabe donde outra surge: e se alguém matou Pepe?
Mais ou menos consensual é o facto de Pepe ter um aparelho digestivo sensível, claramente mais sensível que o dos irmãos, nomeadamente do que o de Rogério, apresentando às vezes queixas de mal estar. E também não se pode ignorar que, dada a condição de atleta de Pepe, ao jogador cabia sempre uma maior porção de carne e enchidos na divisão do rancho familiar. Mas nada disto chega como explicação daquela morte.
Os jornais enchem-se com várias hipóteses. Alguns dão mesmo espaço a diferentes jornalistas que montam e desmontam as mais diversas teses. Todas elas levam invariavelmente àquele jantar de dia 22 em que todos, menos o pai, que aliás nunca se sentira mal, tinham estado. E há que não esquecer a gata Faroleira com quem Pepe na oficina partilhara o chouriço que sobrara desse jantar e fora a primeira a morrer.
Sendo mais ou menos consensual que a morte de Pepe fora desencadeada pelo que comera no jantar de 22 a dúvida incide sobre a casualidade dessa intoxicação alimentar: teriam Pepe e a sua família sido vítimas das mixórdias e produtos estragados que entravam, por exemplo, no recheio de muitos enchidos ou alguém teria envenenado a sopa de grão com massa e carne servida nessa refeição? E porque quereria alguém fazê-lo?
As palavras que se pronunciam para responder a esta questão nada têm a ver com futebol mas sim com ciúmes, paixão e bruxaria.
As damas de luto
A morte de Pepe e muito particularmente o seu velório levou a que os olhos dos curiosos caíssem em cima da sua namorada, Rosa do Carmo. Ela lá está, qual viúva, coberta de luto e lágrimas. Mas Rosa do Carmo não era a única jovem mulher a chorar um homem que acreditou seu. No imenso tapete de flores que se estende pela câmara ardente de Pepe uma coroa tem a seguinte inscrição “No meu coração permanecerá uma eterna saudade”. Por uns momentos Rosa do Carmo diz que a coroa foi enviada pela “outra! A do Porto” cujo retrato Pepe guardara. Mas não, aquela coroa chegara de Lisboa. Fora enviada por aquela a quem os jornalistas vão poeticamente chamar “a dama de luto” mas que afinal era a Celeste do Parque Mayer, a Celeste que se fascinara de tal forma por Pepe que em 1927 trocara o Benfica pelo Belenenses. A Celeste que se ia despedir de Pepe quando ele partia com a selecção para o estrangeiro e que lá estava à espera dele quando regressava. A Celeste, pequeno e solitário vulto negro no cortejo fúnebre do Pepe.
Mas por maiores que fossem as rivalidades entre as mulheres que amavam Pepe nenhuma delas entrou no n.º 17 da Rua do Embaixador nem teve por qualquer meio possibilidade de deitar no caldo e na carne aí comidos na noite de 22 os pós receitados por uma qualquer bruxa.
Excluída o que os jornalistas designam como “cisma de noiva ou de qualquer outra mulher endoidada de amores” logo surgem outras explicações: havia forte desacordo na família de Pepe por causa do anunciado casamento com Rosa do Carmo. O pai e a irmã Ana eram contra esse casamento. A mãe e os restantes filhos a favor. Daí a conjecturar-se que a irmã Ana por vingança resolvera recorrer ao veneno foi um passo… Mas também esta explicação caiu por terra: que sentido fazia, para evitar o casamento do irmão, envenenar toda a família e a si mesma?
No meio de enorme comoção tem lugar o funeral de Pepe. A importância que o futebol adquirira torna-se óbvia diante daqueles muitos milhares de pessoas que constituem um mar de gente que se estende da Rua da Junqueira ao cemitério da Ajuda.
Nos dias seguintes sucedem-se as romagens à campa de Pepe e também os interrogatórios da Polícia de Investigação Criminal a todos aqueles que podem esclarecer as razões daquela morte tão prematura: pelo Torel passam os familiares, vizinhos, colegas, a namorada, Rosa do Carmo, a “dama de luto” ou mais precisamente Celeste Infante…
Fazem-se perícias laboratoriais e análises. A equipa do Belenenses joga com braçadeira de luto. Pepe torna-se memória: no campo das Salésias, em 1932, foi inaugurado um monumento em sua honra e quase noventa anos depois da morte de Pepe o Futebol Club do Porto quando joga com o Belenenses continua a colocar nesse monumento uma coroa de flores em memória de Pepe.
Quanto à pergunta “Quem matou o Pepe?” nunca teve uma resposta oficial mas o tempo foi consolidando aquela que parece ser a explicação mais provável para a morte do capitão de Belenenses: Pepe morreu provavelmente vítima de um erro da sua mãe, que terá usado soda caústica pensando estar a usar sal ou bicarbonato.