Contra todas as expectativas e sondagens, a Nova Frente Popular (NFP), coligação de esquerda que reúne a França Insubmissa, socialistas, ecologistas e comunistas, formada para fazer frente à extrema-direita da União Nacional de Marine Le Pen, venceu na segunda volta das eleições legislativas francesas deste domingo.
A partir desta segunda-feira, os franceses têm uma Assembleia Nacional fragmentada, onde nenhum partido tem maioria absoluta e onde o bloco com mais deputados não é o mesmo que até agora sustentava o Presidente. Com este resultado inesperado, a questão é se haverá espaço para um entendimento entre a esquerda e o campo presidencial que permita a formação de um governo estável. O primeiro desafio é encontrar um primeiro-ministro que seja aceite por toda a coligação de esquerda.
A escolha do futuro primeiro-ministro de França pertence formalmente ao Presidente do país, Emmanuel Macron, que não está legalmente vinculado aos resultados das eleições. Desde o anúncio-surpresa da dissolução da Assembleia Nacional, a 9 de junho, após uma dura derrota nas europeias, Macron tinha estado praticamente remetido ao silêncio. Na noite deste domingo, a reação surgiu através de fonte do Palácio do Eliseu, que informou que o Presidente francês não iria prestar declarações. Fonte do staff presidencial, citada pelo jornal Le Figaro, referia que Macron apelava à “prudência e análise dos resultados”. Esta segunda-feira, o Palácio do Eliseu indicou que Macron pediu a Gabriel Attal, primeiro-ministro macronista, para se manter no cargo “por enquanto” a fim de “garantir a estabilidade do país”.
Neste interregno negocial, uma coisa é certa: qualquer acordo que seja firmado terá de durar um ano dado os prazos constitucionais franceses para convocar novas eleições. No limite, o novo governo dura até às eleições presidenciais de 2027, quando Emmanuel Macron abandona o Eliseu.
Unida pela batalha contra a extrema-direita, a esquerda francesa está dividida em quase tudo o resto, pelo que não há nomes óbvios. Aliás, durante a campanha, a Nova Frente Popular optou por não apresentar uma figura de proa. Mas agora será forçada a fazê-lo. Esta segunda-feira, o socialista Olivier Faure garantiu que a coligação deve “estar em condições de apresentar um candidato” ao cargo de primeiro-ministro dentro de uma semana. Quem poderá ser primeiro-ministro depois da vitória de uma “geringonça” à francesa?
Laurent Berger, o fora do sistema partidário
Uma forma de evitar divergências entre os partidos poderá passar pela escolha de alguém de fora da cena política. O eurodeputado Raphaël Glucksmann colocou esta opção em cima da mesa no mês passado, ao propor Laurent Berger, antigo dirigente de um dos maiores sindicatos franceses — a CFDT, Confederação Francesa Democrática do Trabalho.
Questionado sobre qual a figura que poderia encarnar o potencial primeiro-ministro caso a esquerda obtivesse a maioria na Assembleia Nacional, Glucksmann disse: “Tenho uma ideia e é evidente que não será Jean-Luc Mélenchon. Penso que há uma figura da sociedade civil que é capaz de trazer a calma (…). Estou a pensar em Laurent Berger, que encarnou a luta contra a reforma das pensões, que foi tão responsável como a irresponsabilidade do nosso atual Presidente”.
O antigo líder sindical é reconhecido, tanto à esquerda como à direita, pela sua abordagem moderada e capacidade de criar consensos. Berger, recorda o Le Monde, foi uma figura-chave nos protestos de 2023 contra a revisão do sistema de pensões que Macron implementou no início do seu segundo mandato.
De resto, a líder dos Verdes, Marine Tondelier, também se mostrou disponível para aceitar um primeiro-ministro nomeado a partir da sociedade civil, e não dos partidos que incorporam a Nova Frente Popular. Em entrevista ao France Inter, Tondelier deixou claro que a sociedade civil “faz parte da solução” e que a coligação vencedora “não vai passar meses e meses à espera sob instabilidade”, mas que “não vai ser fácil” conseguir um nome para liderar o governo francês.
Jean-Luc Mélenchon, o nome que mais divide
O líder da França Insubmissa (FI), principal partido da NFP, dirigiu-se diretamente a Macron poucos minutos após as primeiras projeções: “o Presidente deve deixar a Nova Frente Popular governar”. Jean-Luc Mélenchon deixou ainda um aviso para o campo dos macronistas: “Nenhum subterfúgio, nenhum arranjinho será aceitável”.
Mas a escolha de Mélenchon para primeiro-ministro está longe de ser consensual. Nas fileiras socialistas, há a noção de que Mélenchon é “um ativo tóxico”. “Prejudica a esquerda com a sua cultura de confrontação”, admitia há uns dias ao Observador um antigo governante socialista. A 24 de junho, Mélenchon precavia-se, dizendo que a FI tinha outras figuras “capazes de serem primeiro-ministro” que não ele próprio, mas por si “preparadas para isso”, destacando Manuel Bompard (que participou no primeiro debate destas legislativas) e Clémence Guetté, sua conhecida discípula.
Durante a campanha, a rejeição da figura de Mélenchon dentro da Nova Frente Popular foi sendo tornada pública por figuras como François Hollande, o ex-Presidente regressado à política como deputado eleito: “Ele [Mélenchon] já não está dentro do jogo, está só a tentar não ficar de fora. Mas foi acordado que ele não pode ser o homem escolhido para governar o país”, garantiu na passada quarta-feira.
Outras consideram que “Jean-Luc Mélenchon não está desqualificado”. As palavras são de Mathilde Panot, deputada da FI, entrevistada pela RTL. “Foi ele que ensinou à esquerda que pode voltar a ganhar”, disse. “Está longe de ser odiado, basta ir às cidades operárias. Ele defende os seus habitantes”.
François Ruffin, o crítico de Macron
A força contra o nome de Mélenchon vem também de quem, em tempos, lutou ao seu lado. François Ruffin, deputado eleito pela França Insubmissa que rompeu com o partido e chamou ao seu líder um “obstáculo”, é um nome possível e que pode ser visto como “menos divisivo” do que Mélenchon, escreve o Politico esta segunda-feira.
Pese embora seja um crítico de Emmanuel Macron, Ruffin colheu a simpatia da candidata do campo macronista, que não só desistiu a seu favor como apelou a um voto nele. E Françoys Bayrou, líder do MoDem (um dos partidos que apoiam a maioria macronista no Parlamento) chegou mesmo a dizer: “Não tenho qualquer problema com François Ruffin”.
Boris Vallaud, o socialista que já passou pelo Eliseu
Olivier Faubre, secretário-geral do Partido Socialista francês, é peremptório: a Nova Frente Popular terá de ser governo, nem outro cenário será aceite por estas forças de esquerda para quem, qualquer alternativa seria “trair o voto dos franceses e prolongar as políticas macronistas”. Matematicamente, os socialistas conseguiram este domingo eleger menos deputados do que a França Insubmissa, mas reforçaram a sua presença no Parlamento. Na hipótese de França ter um primeiro-ministro socialista, um possível candidato pode ser o deputado Boris Vallaud.
Vallaud, 48 anos, foi eleito pela primeira vez para o Parlamento em 2017. Estudou ao lado de Macron e, tal como o atual Presidente, foi secretário-geral adjunto do Eliseu.
François Hollande, o ex-Presidente que não quer o lugar
Ausente da política desde 2017, quando decidiu não se recandidatar à presidência, o ex-Presidente François Hollande regressou como deputado eleito pelo círculo de Corrèze, no centro de França. O socialista foi eleito com 43,3% dos votos e volta a ter lugar na Assembleia Nacional, numa candidatura que foi encarada com surpresa até entre as hostes do Partido Socialista, mas que Hollande justificou com o carácter “excecional” da situação política francesa.
Perfilando-se como uma voz moderada e apelando à “responsabilidade” da esquerda nas discussões sobre governabilidade, há quem agora sonhe com a possibilidade de Hollande como primeiro-ministro. Mas sobre as especulações que o apontam como um bom nome para ser primeiro-ministro, Hollande garante não ser candidato ao cargo.
Ainda assim, as fileiras da FI agitaram-se com a possibilidade de Hollande poder estar a posicionar-se para tal. Durante esta noite eleitoral, a deputada reeleita Clémentine Autain apelou no Canal 2 a um plenário da Nova Frente Popular para decidir que nome propor a Emmanuel Macron para primeiro-ministro e deixou claro: “que não seja nem François Hollande, nem Jean-Luc Mélenchon”.
Clémentine Autain, a deputada que já se posicionou para o cargo
Clémentine Autain, que fez parte da França Insubmissa nas duas últimas legislaturas e tem vindo a tornar-se uma voz cada vez mais crítica em relação a Mélenchon, é outra das candidatas possíveis. Aliás, foi a própria que disse, no mês passado, que estava “consciente” de que era “uma das pessoas que pode reivindicar ser primeira-ministra em caso de vitória”.
“Esta noite ganhámos e agora é tempo de governar”, reconheceu este domingo, após os resultados eleitorais, com uma ressalva de que não era uma noite de “marcar território” e que era demasiado cedo para “propor um primeiro-ministro”.