Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.
Três pacientes — um rapaz de 16 anos com diabetes, uma mãe de 25 anos e um avô de 75 anos de plena saúde — estão num hospital e necessitam de auxílio respiratório. Existe apenas um ventilador. A quem deverá ser atribuído? E se dois pacientes tiverem a mesma probabilidade de sobrevivência e o mesmo grau de urgência, que critério pode ser usado como desempate?
A 14 de Março, a directora-geral da saúde, Graça Freitas, garantiu que os critérios para a utilização de ventiladores em doentes infectados com SARS-CoV-2 (o coronavírus que provoca a doença Covid-19) estarão sempre subordinados à gravidade da doença e nunca à idade. Ou seja, por esse critério, entre uma criança com algumas dificuldades em respirar e um idoso com maior carga sintomática, o ventilador, ou qualquer outro recurso clínico necessário para tratar o paciente, será atribuído, em primeira instância, ao idoso.
Em circunstâncias normais este é, de facto, o procedimento habitual. Feita a seriação por severidade clínica através de métodos como a triagem de Manchester (princípio clínico que surgiu nas invasões napoleónicas, para decidir quem era tratado primeiro), em que é atribuída uma cor que corresponde ao grau de urgência clínica, os recursos disponíveis num hospital são afectados depois com base num critério de precedência cronológica — ou seja, o primeiro a chegar é o primeiro a usufruir. Não se imagina, portanto, que um ventilador seja retirado a uma pessoa para que possa ser dado a alguém que acabou de chegar. Da mesma forma, não se imagina que alguém triado com uma pulseira amarela, apenas porque tem Covid-19, tenha prioridade sobre alguém que tem uma pulseira vermelha e que, como tal, tem maior urgência. Não é o vírus que determina a prioridade, é o estado clínico dos pacientes (que pode ser condicionado pelo vírus, naturalmente).
Nestes casos, o protocolo definido segue as regras deontológicas da medicina e atende a princípios éticos com que a vasta maioria da população concorda: tratam-se primeiro os casos mais urgentes e, para o mesmo nível de urgência, aplica-se um critério de precedência. No exemplo anterior, caso não exista nenhum outro ventilador disponível naquele hospital, a pessoa é referenciada para outro hospital e, com maior ou menor demora, o problema resolve-se.
Isso seria em condições normais. Ora, o problema não se resolve quando as urgências têm apenas casos urgentes, derivado das dificuldades respiratórias e das pneumonias bilaterais verificadas em alguns dos pacientes com Covid-19, e o sistema de saúde já não consegue dar resposta a todos. Para agravo, o número de ventiladores e de quartos de cuidados intensivos, que atende razoavelmente às necessidades da população em circunstâncias normais, é manifestamente insuficiente para um surto pandémico. Mais ainda, para além dos pacientes Covid-19, continuam a existir todas as outras patologias que já afligiam a população e que também requerem cuidados de saúde. Quando o sistema de saúde está perante esta sobrecarga, decidir quem é atendido primeiro pode significar, em última análise, quem vive ou quem morre.
Como chegamos a esta situação?
Ter de se decidir quem vive ou quem morre é o que já está a acontecer em países como Itália, Espanha e, se tudo correr mal, poderá acontecer em Portugal, à medida que o surto epidémico se vai alastrando e mais pacientes vão necessitando de cuidados agudos. Precisamente em Itália, à data que este ensaio é escrito, já foram diagnosticados mais de 53.578 casos, dos quais 42.681 estão ainda activos, e foram registadas 4.825 mortes. O indicador mais grave é o número de pacientes em estado crítico — 7% de todos os casos activos, ou seja, 2.857 pessoas.
A evolução em Portugal não é ainda tão drástica, mas é difícil, nesta fase, fazer uma comparação, dado que estamos com alguns dias de atraso em relação à Itália ou Espanha desde que se registou o primeiro infectado. No entanto, os dados preliminares parecem apontar para uma reprodução elevada em Portugal, significando isso que o número de casos está a duplicar com uma periodicidade muito curta, cerca de três dias. Se no início do mês havia apenas meia dúzia de infectados, à data de hoje são cerca de 1.600, e o número continuará a aumentar até que haja uma inoculação geral. O que se espera é que as medidas de contenção social mitiguem algum deste crescimento, mas não para quem já teve contacto prévio e estava em período de incubação.
O problema surge justamente quando o número de infectados a precisar de cuidados intensivos dispara para um valor muito acima daquela que é a capacidade do sistema de saúde. Quando tal acontece, não haverá quartos de cuidados intensivos nem ventiladores para todos, sendo então necessário activar medidas de racionamento. O cenário é em tudo similar a um tempo de guerra, em que não há comida para todos.
Pode Portugal chegar a uma situação desse tipo? O cenário é plausível e tem de ser considerado. As medidas de contenção social, entre outras, servem para evitar que o crescimento do número de casos seja tão acentuado, dando tempo ao sistema de saúde para se adaptar às novas contingências. Mas, mesmo neste cenário, poderá dar-se o caso de não existirem ventiladores suficientes para acorrer a todos os infectados que necessitem de cuidados intensivos. Estes serão, segundo dados de Itália, apenas 5% de todos os infectados. No entanto, imagine-se que serão 50 mil infectados daqui a uns dias, tal como acontece em Itália. Se 5% dos infectados precisar de ventilador, estamos a falar de 2500 ventiladores. Segundo contagens recentes das autoridades de saúde, existirão cerca de 1400 ventiladores em Portugal. Neste cenário, e assumindo que não será possível adquirir mais em tempo útil, dado que todos os países estão a tentar fazer o mesmo, poderá mesmo chegar o momento em que é necessário decidir quem fica e quem não fica com o ventilador — que é como quem diz, quem vive ou quem morre.
Como decidir quem vive e quem morre?
Em seminários ou aulas que dou sobre saúde, começo invariavelmente com um dilema moral. Imagine a seguinte situação, tal como aparece na seguinte figura.
Há uma ponte, e debaixo dessa ponte corre um caminho de ferro, onde estão várias pessoas acorrentadas. Aproxima-se um comboio. Se nada for feito, o comboio acabará por matar as pessoas acorrentadas. Contudo, o leitor poderá interceder e evitar este desfecho: para tal, deverá sacrificar o gordo que se encontra em cima da ponte. Ao fazê-lo, o comboio parará, poupando as pessoas acorrentadas, mas o gordo morrerá. Atiraria o gordo da ponte?
Tipicamente, uma parte da audiência irá sacrificar o gordo e a outra parte não. Quando indago os motivos, seguem racionais completamente distintos: os que sacrificam o homem obeso fazem-no com o objectivo de salvar mais pessoas — sacrifica-se um, mas salvam-se quatro. Já os outros dividem-se: uns não querem ter o ónus de matar alguém, enquanto outros não querem, em circunstância alguma, condenar um inocente. A estes pergunto se faria diferença estarem 10 mil pessoas em vez de quatro. Muitos manter-se-ão firmes na sua resposta, enquanto outros claudicarão, acabando por, também eles, sacrificar o homem obeso. Há depois uma outra variação do dilema, que acaba por inquinar ainda mais as respostas: imagine-se que os acorrentados são a nossa família. Invariavelmente, a maior parte dos que não sacrificariam o homem obeso acabam por, nestas circunstâncias particulares, fazê-lo.
Este dilema moral é usado academicamente em cursos de psicologia, filosofia e moral, e serve para ilustrar que há decisões que não têm uma resposta certa ou errada, porque não existe uma ética universal. Os que optam por salvar mais gente são, de um ponto de vista ético, utilitaristas. Ou seja, o seu referencial ético diz-lhes que a decisão certa é aquela que conduz à satisfação ou felicidade do maior número de pessoas. São consequencialistas, portanto — a moralidade da decisão está adstrita ao resultado da mesma.
Já aqueles que jamais sacrificariam o inocente não estão tão preocupados com o impacto dessa decisão (neste caso, evitar a morte de quatro pessoas), mas sim com o racional da mesma. Estes tendem a reger-se por uma ética deontológica. Kant define esta ética como um princípio de acção racional que poderia tornar-se uma lei universal — um imperativo categórico. Neste caso, o imperativo categórico seria “Não matarás um inocente”. Nesta mesma linha, filósofos como John Locke e Robert Nozick definem que existem direitos naturais que são invioláveis. O direito à vida do homem obeso seria o que ditaria, então, a decisão certa (o direito à vida também se aplica aos quatro acorrentados, mas esse julgamento moral aplica-se a quem os acorrentou; o dilema começa a posteriori e as condições do mesmo são inalteráveis).
Serve este dilema moral para mostrar que decidir quem vive e quem morre não tem uma resposta certa, válida e inexorável. Responder a esta questão implica adoptar um quadro normativo ético e a decisão que daí advir acarretará sempre consequências.
Transpondo este dilema moral para a difícil decisão de alocar um ventilador, existem várias formas de o fazer. Como já vimos, a alocação é tipicamente feita por gravidade clínica, sendo o segundo critério a precedência: first come, first served. Outro critério seria o de atribuir o ventilador a quem pudesse pagar mais. Este critério, contudo, seria impraticável. Enquanto sociedade, definimos, a par com quase todos os países ocidentais, que a condição financeira não deve nunca ser factor condicionante do acesso aos cuidados de saúde. Ademais, este critério seria altamente assimétrico em detrimento dos mais novos e dos mais pobres, pois tipicamente os mais velhos têm mais rendimento/poupanças acumuladas. Outro critério ainda seria o de defender uma espécie de lotaria, sorteando quem teria acesso aos recursos. Os seus apologistas dizem que é a única forma de evitar a discriminação contra ou a favor de um dado grupo. Por fim, um outro método seria apurar a probabilidade de sobrevivência ao tratamento (e não o número de anos de vida): o indivíduo com maior probabilidade de sobreviver à intervenção teria prioridade.
Existem outros métodos, tipicamente usados para decidir sobre introdução de tratamentos ou fármacos inovadores, ou para decidir como distribuir as verbas disponíveis para a saúde pelas várias doenças, que também poderão ser úteis neste contexto. Um deles é o quality-adjusted life year (QALY), ou ano de vida ajustado pela qualidade. O objectivo é definir, de forma quantitativa, uma métrica que combine duração e qualidade de vida. Por exemplo, se um indivíduo viver durante um ano com saúde perfeita, então terá 1 QALY. No caso em apreço, considere-se o seguinte exemplo: uma criança de 12 anos e um idoso de 65 anos. Se ambos receberem o tratamento, então assumiremos que ambos conseguirão sobreviver com plena saúde. Para a coorte da criança de 12 anos, a esperança média de vida em Portugal será sensivelmente de 81 anos, dependendo do sexo, enquanto que para a coorte do idoso de 65 anos a esperança média de vida será cerca de 72 anos. Ou seja, uma criança teria 81 – 12 = 69 QALYs, enquanto que o idoso teria 7 QALYs. Com base nesta métrica, o tratamento seria dado à criança.
Se neste exemplo é fácil de determinar o número de QALYs, nem sempre assim sucede. Como quantificar o bem-estar associado a uma perda auditiva, por exemplo? Será que a qualidade de vida diminuiu de 100% para 50%? Ou para 20%? O valor dependerá do juízo individual, e mesmo numa óptica individual os indivíduos terão certamente dificuldade em converter um evento destes numa escala ordinal. Podemos fazer aproximações com base em inquéritos, o que acontece na prática, mas estas aproximações continuarão a ser pouco robustas.
Um outro indicador alternativo é o disability-adjusted life year (DALY), que tenta quantificar o mesmo que o indicador anterior, mas numa perspectiva oposta: isto é, ao invés de tentar quantificar quantos anos de qualidade de vida serão ganhos, tenta quantificar os anos perdidos devido a morbilidade (doença), mortalidade ou ambos. No exemplo anterior, o cálculo dos DALYs teria a mesma componente da esperança média de vida, ou seja, incorporaria a diferença da idade actual para a esperança média de vida. Isto é, no caso da criança haveria uma perda de 69 DALYs e uma perda de 7 DALYs no caso do idoso (nota técnica: estamos a assumir que não há taxa de desconto nem ajustamento à idade). Olhando para a sociedade como um todo, a alocação dos recursos em saúde tem como objectivo minimizar os DALYs, ou seja, a carga de doença, visando justamente aqueles que têm mais a perder.
Tanto os DALYs como os QALYs são, na sua essência, métodos utilitaristas, mas não privilegiam necessariamente a maximização do bem-estar do maior número de indivíduos, mas sim a maximização do bem-estar agregado. Ou seja, é bem possível que sejam salvos 3 indivíduos saudáveis ao invés de 10, se estes dez tiverem várias comorbilidadades e uma esperança média de vida muita baixa. Adicionalmente, o seu uso torna-se impraticável em situações de emergência, pois é impossível estar a apurar, caso a caso, o número de DALYs ou QALYs de cada indivíduo, especialmente quando estes têm comorbilidades.
Se para os ocidentais poderá parecer natural salvar primeiro as crianças, esta decisão poderá variar com base na cultura. O MIT desenvolveu uma “Máquina Moral” para estudar que tipo de referencial ético normativo deverá ser implementado em veículos autónomos, e os resultados foram interessantes (ler mais sobre o assunto aqui e aqui). Esta máquina moral consiste em tomar decisões perante situações com que o veículo autónomo se poderá deparar. Por exemplo, se estiver em risco de ter um acidente, deverá privilegiar os próprios passageiros ou os de outros veículos/transeuntes? Se o veículo estiver a ir contra uma passadeira e não houver forma de o evitar, deverá tentar desviar-se de alvos como crianças, em detrimento dos restantes, ou não deverá fazer nada?
Em países ocidentais, os resultados são mais ou menos os esperados (por ocidentais). Os indivíduos mais vezes salvos, por quem respondeu ao teste, foram carrinhos de bebés e crianças do sexo feminino, e os mais sacrificados foram os idosos, especialmente os do sexo masculino. Animais também são preteridos aos humanos, tendo a maioria dos indivíduos decidido sacrificá-los em alternativa a humanos. Estas decisões, contudo, variam de país para país. Se na maior parte dos países europeus predomina a preferência por salvar mais gente, em países como o Japão ou Coreia do Sul esse não é, de todo, uma preferência relevante na tomada de decisão. Da mesma forma, nos países ocidentais há uma preferência por salvar os mais novos, enquanto que nos países orientais, como é o caso do Japão, Coreia do Sul, China ou Taiwan, esse não é um critério relevante.
Seja qual for o método usado para decidir quem vive ou quem morre nesta pandemia, só há uma coisa que é certa — não existe uma resposta certa.
O que estão a fazer os outros países?
O primeiro país a ter de definidas critérios para decidir quem vive ou quem morre foi a Itália, o país mais abalado até à data pelo Covid-19, quando medido em número de óbitos. O colégio de médicos da Società Italiana di Anestesia Analgesia Rianimazione e Terapia Intensiva publicou linhas de orientação com os critérios que médicos e enfermeiros deverão seguir à medida que o número de infectados aumenta e os ventiladores escasseiam, sendo que estes se aplicam a todo o tipo de pacientes, com Covid-19 ou não. O princípio que norteia este guião, segundo o próprio colégio de médicos, é utilitarista: maximizar os benefícios para o maior número de pessoas, sendo que o critério de alocação visa garantir que os pacientes com a maior probabilidade de sucesso terapêutico terão acesso aos cuidados intensivos.
Como consequência, aqueles demasiado velhos para terem uma probabilidade elevada de recuperação ou com um número reduzido de “anos vida” restantes seriam entregues à sua sorte — o que significaria, para muitos deles, a morte por insuficiência respiratória. Não é apenas a idade o factor determinante, contudo. As linhas de orientação estabelecem também que o estado de saúde do indivíduo deve ser tido em conta, especialmente a existência de comorbilidades. Ou seja, à luz deste critério, um indivíduo jovem com várias doenças crónicas ou até paciente oncológico poderia não ter acesso ao ventilador se do outro lado estiver uma pessoa de meia idade ou até idosa, mas de plena saúde.
Recentemente, a Espanha decidiu implementar critérios em tudo similares. De acordo com as recomendações elaboradas pelo grupo de trabalho de bioética da Sociedad Española de Medicina Intensiva, Crítica y Unidades Coronarias, pessoas com maior probabilidade de sobrevivência deverão ter prioridade no acesso aos cuidados intensivos, procurando, desta forma, evitar que se aplique o critério habitual de first come, first served, para o mesmo nível de criticidade clínica. O princípio ético subjacente é o mesmo do considerado em Itália, e é de natureza utilitarista: maximizar o benefício comum. Também de forma similar a Itália, é referido que se deve prioritizar a pessoa com mais anos de vida ajustados à qualidade (i.e., mais QALYs). Por conseguinte, serão excluídos todos aqueles que estejam já em situação muito debilitada, como falência de órgãos, risco de morte elevada, etc., e será dada prioridade àqueles com melhores prognósticos de recuperação e de anos de vida. Contudo, o documento refere também que a idade do paciente não deve ser critério exclusivo, referindo que será também considerada a sobrevivência livre de incapacidades, uma métrica em tudo similar aos DALYs. Novamente, um critério em linha com os definidos em Itália.
No caso dos EUA, não existe uma resposta federal, transversal a todos os estados, pelo que caberá a cada estado, sistema de saúde e, no limite, hospital decidir como actuar neste cenário de racionamento. Existem, contudo, algumas linhas orientadoras, preparadas para catástrofes naturais como furacões ou cenários de guerra biológica. Um desses guiões é do U.S. Center for Disease Control and Prevention (US CDC), autoridade equiparável à DGS portuguesa, que data de 2009. Em 2012, com o furacão Sandy, muitos hospitais ficaram sem energia, significando isso que alguns ventiladores seriam desligados. A mesma decisão que hoje nos assola teve de ser tomada então.
Este guião sugere que seja atribuída uma pontuação, baseada em diversos factores, a cada paciente. A pesar nesta decisão estarão factores como a probabilidade de sobrevivência e o número de “anos vida” esperados — em linha, também, com os protocolos definidos em Itália e em Espanha. A comissão que elaborou o relatório vai até mais longe, advogando a ideia, bastante controversa, de retirar ventiladores a pacientes cujo prognóstico clínico tenha agravado, e realocá-los a pacientes com melhores prognósticos de recuperação.
Outros especialistas consideram também que pacientes que sejam profissionais de saúde deverão ter prioridade sobre todos os outros, por dois motivos: primeiro, porque se expuseram voluntariamente, com um elevado sentido de missão, à pandemia; segundo, porque a sua recuperação ajudará a tratar mais pacientes com Covid-19. Esta decisão também não é consensual, mas foi advogada e implementada em alguns hospitais.
O departamento da saúde do estado de Washington, por sua vez, distribuiu recomendações no sentido de transferir para cuidados paliativos os pacientes que tenham perdido a capacidade motora, a função cognitiva ou que tenham tido um agravamento generalizado do seu estado de saúde. Ou seja, seria dada prioridade a quem tem maior probabilidade de sobreviver e de recuperar sem sequelas graves. Já outros hospitais, em resposta à pandemia de H1N1, em 2009, recomendavam que os ventiladores fossem sendo realocados a pessoas com maior probabilidade de sobrevivência. Contudo, se os ciclos de realocação forem curtos, ninguém terá tempo suficiente no ventilador para poder recuperar, conclusão a que chegou um estudo académico realizado no Canadá. Um estudo realizado no Reino Unido chegou a conclusões semelhantes. Se tal acontecesse, não seria cumprido um dos desideratos destas estratégias de racionamento, que é o de maximizar o número de pessoas que sobrevive.
Em contraponto ao estado de Washington, que recorreu apenas a médicos para produzir as recomendações, o estado de Seattle alargou a comissão ao público em geral. Ao fazê-lo, houve uma recomendação clara no sentido de evitar critérios de probabilidade de sobrevivência, pois estes iriam discriminar negativamente grupos de risco como imigrantes ou afro-americanos. Em alternativa, os participantes consideraram que uma lotaria seria um processo mais justo. Em complemento, outros sugeriram aplicar critérios de QALYs, em linha com aqueles aplicados agora em Itália e em Espanha. No final do estudo, os investigadores responsáveis (da Johns Hopkins University) acabaram por estabelecer um enquadramento que atribui pontuações, tal como o guião da US CDC, com base nas probabilidades de sobrevivência de curto prazo, mas também de longo prazo. Para pontuações iguais, seria decidido de forma aleatória. Este guião está também a ser usado no estado da Pensilvânia.
No estado do Colorado, o plano também pressupõe atribuir uma pontuação, sendo que os critérios fundamentais serão a probabilidade de sobrevivência e a duração esperada do tratamento. O objectivo é evitar alocar muitos recursos a pessoas que necessitem de muitos cuidados. No entanto, este plano considera também a decisão individual de cada um, colocando a hipótese do próprio paciente abdicar de um ventilador, caso não cheguem para todos. Transpondo para o dilema moral do homem obeso na ponte, seria o equivalente a uma das pessoas atirar-se da ponte em vez de sacrificar o obeso.
O que deve Portugal fazer?
Não será demais referir que antes de termos de tomar este tipo de decisão sobre quem vive e quem morre, o melhor é evitá-la. Para tal, é necessário avaliar — e as autoridades têm tentado fazer isso — a possibilidade de converter quartos normais em cuidados intensivos, adquirir mais ventiladores, readaptar fábricas para produzir ventiladores, produzir ventiladores com recurso a impressoras 3D e software open source, solicitar a ajuda do sector privado e social, entre outras medidas. O sentido de missão e capacidade de mobilização de toda a sociedade tem sido impressionante. No entanto, todas estas medidas de contingência poderão não ser suficientes. Nesse dia, terá de existir um protocolo.
A existência desse protocolo é fundamental para garantir que estão a ser observados os padrões éticos pelos quais nos pugnamos na sociedade, mas também que não caberá ao médico ou ao enfermeiro o ónus (e o lastro) dessa decisão. Nenhum profissional de saúde ficaria de boa consciência sabendo que foi ele quem decidiu o destino de um dado paciente.
Tal como o dilema moral discutido ao longo deste ensaio, não haverá uma resposta certa para o que fazer. Olhando para os exemplos de outros países, os critérios têm sido sobretudo utilitaristas, e visam maximizar o bem-estar, medido em anos vida com qualidade, evitando, ao mesmo tempo, discriminar determinados grupos. A possibilidade de incorporar morbilidades, que condicionam a vida saudável e a esperança média de vida, significa que um idoso saudável tem tantas chances de ser o escolhido como um jovem com múltiplas co-morbilidades. Este factor é importante para garantir que não são apenas os mais jovens os escolhidos.
Caberá à sociedade portuguesa, e não apenas às autoridades de saúde, realizar esta discussão, colocando em cima da mesa as linhas vermelhas, que nunca deverão ser factor de exclusão, e tentando definir quais os princípios que deverão nortear esta escolha. O resultado, esse, nunca será o certo. Será o possível.