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Hugo Moreira

Hugo Moreira

RAYE foi um raio de luz na última noite do MEO Kalorama

No dia em que Burna Boy era cabeça de cartaz, foi RAYE quem mais brilhou. A terceira edição do MEO Kalorama terminou este sábado. Festival regressa em 2025, mas ainda sem confirmação de datas.

Foi o dia menos concorrido dos três. Embora a organização não tenha avançado com números oficiais, algo raro num evento desta dimensão em que as pulseiras de acesso permitem escrutínios ao minuto, não será descabido apontar para uma assistência a rondar as 15 mil pessoas. Era possível andar com tanta folga pelo recinto que, quando Burna Boy subiu a palco, na condição de cabeça de cartaz deste sábado, não havia praticamente ninguém do meio da plateia para cima, onde no dia anterior LCD Soundsystem e Jungle preenchiam toda a colina do Parque da Bela Vista.

Terá sido um tiro ao lado apostar no maior artista africano desde Fela Kuti para fechar esta edição, ele que tem 18 milhões de ouvintes por mês, parcerias com Justin Bieber, Sam Smith, Beyoncé e Ed Sheeran, só para mencionar alguns super-artistas, e que em 2022 deu um dos concertos mais elogiados do festival Afro Nation, em Portimão, para uma assistência de 40 mil pessoas? É uma questão de resposta difícil, mas que certamente merecerá uma reflexão séria por parte da promotora responsável pelo MEO Kalorama, a Last Tour.

O que falhou nesta terceira edição não foi apenas isso, mas também (e talvez sejam pontos cumulativos) a comunicação com o público, bem como o assumir de responsabilidades quando as coisas correram menos bem. Questionada sobre os atrasos gritantes de acesso ao recinto registados no primeiro dia, a organização limitou-se a dizer que “trabalhou com grande rapidez, reforçando a sua equipa, para ajustar o fluxo de entradas que teve o seu pico às 19h”. Ora, rapidez não é de todo um adjetivo que quem esteve 1h30 na fila possa consentir de ânimo leve. Infelizmente não é a primeira vez que, mediante falhas graves de organização, os grandes eventos prestam esclarecimentos vagos, despachados em respostas telegráficas.

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Também o sistema cashless associado às pulseiras, a única via para o público fazer os seus consumos durante o festival (fosse na restauração ou na banca de merchandising), não funcionou eximiamente, com queixas de vários erros no momento de carregamento com dinheiro (quem vos escreve, tentou carregar três vezes através do QR Code presente no chip da pulseira e das três vezes nenhuma funcionou). Quem conseguiu e ficou com saldo por gastar, será automaticamente reembolsado a partir do dia 3 de setembro, terça-feira, no caso dos carregamentos terem sido feitos online ou através da digitalização do código da pulseira. Quem se dirigiu a um dos pontos de carregamento presentes no recinto, terá de pedir reembolso entre os dias 3 e 18 de setembro.

No final das contas, não se pode dizer que a terceira edição do MEO Kalorama tenha sido memorável. Valeram os concertos sólidos e uma qualidade de som robusta, melhoria clara em relação às edições passadas, para salvar a honra e colmatar o desconforto sentido no acesso ao recinto e na própria fruição das infraestruturas. O festival, segundo comunicado de imprensa enviado já de madrugada, regressa em 2025, mas as datas ainda não foram anunciadas.

O triunfo de RAYE e de Ana Moura e um intermitente Burna Boy

O melhor deste último dia de festival foi a estreia em Portugal de RAYE, artista britânica que conquistou um número recorde de seis BRIT Awards numa só edição (2024) e que trouxe a Lisboa o espetáculo ancorado no seu álbum de estreia, My 21st Century Blues (2023). Vê-la tão à vontade em palco fez-nos quase acreditar que Rachel Agatha Keen já era veterana nestas andanças e não uma rapariga de 26 anos que teve que romper com uma grande editora (a Polydor) para estabelecer as suas regras de jogo. RAYE tem uma voz magistral, com um alcance de potência semelhante ao de Adele, mas com declinações e trejeitos de Amy Winehouse, principalmente quando abraça o registo de big band. Tem R&B, hip hop, jazz, blues e pop no seu cantar, géneros que envolve com muita naturalidade, seja numa narrativa de disco, seja numa só canção, como acontece com “Genesis”.

Em Lisboa mostrou toda a sua versatilidade e talento galático, quer nas interpretações quer na forma como comunicou despretensiosamente com a plateia. “Eu gosto de falar”, advertiu, alongando-se em explicações sobre ser uma pessoa muito dramática, sobre a condição aditiva do ser humano, enunciado de “Mary Jane”, ou sobre os traumas relacionados com o abuso sexual do qual foi alvo aos 17 anos, que lhe deram vontade de “vomitar”, mas que foram transformados em canção de superação. I’m a very fucking brave strong woman é grito de empoderamento em “Ice Cream Man”.

A atuação acabou numa grande festa disco, a cargo de “Secrets” e “Prada” e, só porque ela se sentia muito feliz por ali estar, confidenciou entre lágrimas e sorrisos, ainda tivemos direito a “You Don’t Know Me”, canção extra do alinhamento, antes do esperado ponto final com “Escapism”. Da próxima vez que RAYE vier a Portugal, será provavelmente em nome próprio, de tão grande ela se está a tornar. Não nos equivoquemos: estamos perante uma das divas deste século.

Se RAYE é diva, também o é Ana Moura, mesmo que estejamos a falar de uma escala diferente, por força da dimensão do mercado. Prince há muito que sabia disso. Foi com o The Artist que a fadista perdeu os seus maiores medos, partilhou numa entrevista ao Expresso em 2017, e o resultado desse processo de crescimento e autoaceitação revelou-se em pleno com Casa Guilhermina. O sétimo álbum de estúdio de Ana Moura, considerado por várias publicações da especialidade como o melhor disco português de 2022, continua sólido na estrada e a expandir o seu universo para novas paragens.

“Desliza” foi apresentada no palco principal do MEO Kalorama, antecipando o lançamento oficial da faixa, que acontecerá ainda este mês; “Lá Vai Ela”, primeiro single a sair para o mercado depois do disco com o nome da sua avó, abriu a atuação cheia de segurança; “Te Amo”, canção original dos Calema, deixou bem claro que o fado de Ana Moura não é para ficar guardado na gaveta das peúgas, mas para bailar sem complexos no meio da rua com o quizomba, o semba, e a pop; “Loucura”, a capella, foi uma bofetada de luva branca nos velhos do Restelo que se acham donos e senhores da moral e dos bons costumes do fado; “Agarra em Mim”, dueto com Pedro Mafama, verteu sensualidade, com direito a beijo no final e tudo; e “Mázia”, na versão remisturada por Vanyfox, recordou a prima Cláudia, responsável por ter inscrito uma tímida Ana Moura, então com 17 anos, num karaoke, primeiro palco de muitos outros que se lhe abririam. O deste terceiro dia de MEO Kalorama, o principal, assentou-lhe muito bem.

Seria exatamente este o palco onde atuaria às 00h30 Burna Boy, o gigante nigeriano responsável por elevar o orgulho de todo um continente, demasiadas vezes subtraído à exótica e abstrata condição de world music, a um patamar que poucos conseguiram até hoje. A expetativa em torno do cabeça de cartaz do último dia do MEO Kalorama era grande e quando Damini Ogulu, nome próprio de Burna Boy, entrou com “Location” e com uma banda de sopros, percussões, bailarinas e efeitos visuais que iam dos simples vídeos a chamas lançadas desde a frente de palco, parecia que os ingredientes estavam todos reunidos para cozinhar um final de noite épico.

Porém, mesmo com o êxtase gerado por temas como “On the Low”, “It’s Plenty”, “Ye” ou “Last Last”, Burna Boy não conseguiu manter a chama acesa do início até ao fim. A atuação foi oscilante e por mais do que uma vez tivemos dificuldades em ouvir a voz do artista que em 2020 ganhou o Grammy de Melhor Álbum de Música Global com Twice as Tall. “Jerualema”, do Dj e produtor sul africano Master KG, foi um dos raros momentos em que se vislumbrou total comunhão entre o público que, à medida que o concerto ia avançando, se dividiu em dois grupos: aqueles que sabiam as letras de cor e que foram ao Parque da Bela Vista especificamente para ver Burna Boy, e os que, não estando por dentro do fenómeno nigeriano, rei da afrofusion, se foram afastando daquele lugar para irem mais cedo para casa.

Quem ficou no recinto, ainda suou com o B2B de DJ Glue e Shaka Lion, substitutos da dupla Soulwax que, devido à tempestade que despenteou Madrid na noite de sexta-feira e que danificou parte do equipamento artístico, teve que cancelar as atuações no MEO Kalorama e no Kalorama Madrid. Nota ainda para o concerto de dEUS, banda que, volvido quase um quarto de século desde o despontar do caldeirão musical da Antuérpia, experiência de fusão entre o rock, o jazz, o folk e o techno, ainda é capaz de espantar novos públicos com canções como “Instant Street” ou “W.C.S. (First Draft)”. Sendo o espanto uma das grandes virtudes da vida – como também o saberá Yves Tumor, outro dos nomes que atuou neste último dia – não é coisa pouca o que os dEUS fizeram em Lisboa. Tudo o que podemos desejar é que mais bandas lhes sigam os passos.

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