Esta segunda-feira, os reclusos de duas alas do Estabelecimento Prisional (EP) de Braga recusaram almoçar. Não provocaram desacatos, é certo: simplesmente não quiseram comer. Mas, aos olhos de quem trabalha diariamente nas prisões e que falou com o Observador, é um primeiro sinal daquilo que poderá acontecer.
Sobretudo tendo em conta que, ainda no domingo, na prisão anexa à Polícia Judiciária do Porto, a mesma decisão teve consequências mais graves. Também ali, os reclusos começaram a organizar-se para recusar o almoço — em manifestação pelo facto de as visitas terem sido suspensas. Mas um deles não quis juntar-se aos restantes e envolveram-se todos em agressões. O guarda que tentou separá-los acabou ele por ser agredido com uma cadeira, tendo mesmo recebido tratamento hospitalar. “Os ânimos estão a alterar-se”, resume ao Observador Vítor Ilharco, secretário-geral da Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso (APAR).
É que o anúncio da ministra da Saúde caiu como uma bomba no interior do sistema prisional. Quando Marta Temido, na noite de sábado, anunciou que as visitas a prisões no norte do país estavam suspensas temporariamente devido ao novo coronavírus, a confusão instalou-se. “Ninguém sabia de nada”, denunciou Jorge Alves, presidente do Sindicato Nacional do Corpo da Guarda Prisional (SNCGP) à Rádio Observador, poucas horas depois desse anúncio. No dia seguinte, domingo, as indicações concretas continuavam sem chegar. O resultado? Algumas prisões permitiram visitas, outras não. Algumas deixavam entrar sacos com comida e roupa, outra não. E, face a esta incoerência, reclusos e visitantes começaram a indignar-se.
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Na tarde de domingo, chegaram algumas indicações para as prisões do Centro e do Sul. Nestas, as visitas são suspensas apenas ao fim de semana. Durante a semana, as visitas mantém-se, mas mais reduzidas: antes podiam entrar três pessoas por recluso, agora só podem entrar duas. “O vírus só se propaga ao fim de semana? Só se propaga se houver três pessoas?“, questiona Vítor Ilharco, da APAR, indignado. E acrescenta: “Como ninguém entende, isto causa mau estar”. Para o sindicato, algumas medidas também não fazem sentido e, por serem pouco claras, enviou esta segunda-feira uma lista de propostas ao diretor-geral, Rómulo Mateus. A Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) assegura ao Observador que o plano de contingência para o Covid-19 “está a ser implementado”.
A palavra que resume o que se vive atualmente nas cadeias portuguesas é confusão. A “má organização”, para usar palavras do sindicalista, não é de agora. Existe um plano de contingência aprovado há quase um mês, mas, em parte, ainda por aplicar. A grande maioria das cadeias ainda não tem zonas de isolamento. No EP de Vale de Judeus, o local para isolar funcionários é a capela da freguesia. O sindicato e a APAR queixam-se de que não foram ainda distribuídas máscaras nem equipamento de proteção.
O que diz o Plano de Contingência da DGS de resposta ao coronavírus
Guardas prisionais e reclusos temem que as prisões portuguesas possam a ter situações como em Itália, onde se vive uma vaga de motins. Ali, as restrições de contacto entre reclusos e familiares já levaram a dezenas de incidentes deste género, que provocaram até vítimas mortais. Ao Observador, a DGRSP garante que “as questões de segurança estão sempre acauteladas em qualquer circunstância e são ajustadas”.
Quando a ministra da Saúde anunciou que as visitas das prisões do norte do país iam ficar suspensas, começaram a chover telefonemas para as prisões, de familiares que queriam saber se ia ou não haver visitas no domingo. O problema? “Os próprios guardas não sabiam o que transmitir às pessoas, porque não foram informados de nada”, disse à Rádio Observador Jorge Alves nesse domingo. “A maior parte das prisões do distrito do Porto efetivamente não tiveram visitas, mas Custoias deixou entrar sacos com roupa e comida“, garantiu. Também Vítor Ilharco, da APAR, disse ao Observador que, no domingo, no EP de Izeda, as visitas decorreram normalmente e os sacos entraram. Na visita da manhã do EP do Porto, deixaram entrar apenas sacos, mas, na visita da tarde, nem sacos nem pessoas.
[Ouça as declarações de Jorge Alves, presidente do sindicato dos guardas prisionais, à Rádio Observador, no domingo]
12h. Apesar das recomendações, há prisões no norte a receberem visitas
Face à incoerência de indicações, a DGRSP emitiu um comunicado na tarde de domingo com medidas concretas — mas que estão a gerar indignação. Afinal, quais são as ordens?
Visitas suspensas em dez prisões e só durante a semana nas restantes. Entrada de roupa e comida será recusada
Por enquanto, não há — de todo — visitas em dez estabelecimentos prisionais: Paços de Ferreira, Porto, Santa Cruz do Bispo (masculino e feminino), Vale do Sousa, na prisão anexa à PJ do Porto, Aveiro, Braga, Guimarães e Viana do Castelo; e em dois centros educativos: Santo António, no Porto, e o centro educativo de Vila do Conde. “Procurando facilitar o contacto com familiares e amigos, foi permitida a realização de três chamadas telefónicas diárias com a duração de cinco minutos cada”, anunciou a DGRSP.
Já nos restantes estabelecimentos do país foram suspensas as visitas aos fins de semana. Deverão acontecer apenas “em dias úteis e limitadas a um máximo de dois visitantes por recluso”. Para o sindicato, esta medida não faz sentido, uma vez que, durante a semana, os guardas prisionais têm “uma série de atividades a fazer”. “Ao fim de semana é só visitas e os guardas podiam concentrar-se mais na visita e com mais cuidado”, explica Jorge Alves, acrescentando que “muitos dos familiares só podem ir à visita durante o fim de semana por causa do trabalho”. Na lista de medidas enviadas à DGRSP, o sindicato propõe que a visita seja feita ao fim de semana e que sejas distribuídas aos visitantes “máscaras para prevenção do contágio”. Mais: propõe ainda a “suspensão de visitas íntimas”.
A DGRSP anunciou também no domingo que “não se está a aceitar a entrada de bens alimentares, ou outros, entregues pelos visitantes”. Mas, lembra Vítor Ilharco ao Observador, “nenhuma cadeia lava a roupa dos reclusos” — o que, teme, pode vir a traduzir-se num problema de higiene. O mesmo foi confirmado pelo sindicalista Jorge Alves. Questionada, a DGRSP nega: “Os reclusos costumam também lavar a sua roupa nas prisões. Tem de se fazer isso a partir de agora. Além de que as roupas de cama são fornecidas pelos serviços prisionais, mas há quem queira levar de fora”.
Quarentena de 14 dias. No Funchal, dois reclusos ficaram fechados por terem tosse, mas saíram para jantar
A DGRSP também decidiu colocar em “quarentena profilática de 14 dias” reclusos “oriundos da liberdade”. Por exemplo, pessoas a quem foi aplicada agora prisão preventiva e, por isso, vêm do exterior. Segundo a indicação, durante esses 14 dias, “serão diariamente monitorizados”. O sindicato quer ainda que seja feito um “controlo dos reclusos que regressam de precária”.
A par desta medida “a DGRSP criou duas enfermarias de retaguarda, uma no Estabelecimento Prisional do Porto e outra no Hospital Prisional de São João de Deus em Caxias, para internamento de reclusos que, eventualmente, venham a acusar positivo”. Ao que o Observador confirmou junto da direção-geral, até esta terça-feira não foi detetado nenhum caso suspeito.
Jorge Alves lamenta, no entanto, uma situação que ocorreu no EP do Funchal. Ali, dois reclusos queixaram-se de tosse e dores no corpo. “Ficaram fechados o dia toda na cela, mas depois saíram para jantar ao refeitório“, conta ao Observador o presidente do sindicato.
Em Vale de Judeus, o espaço de isolamento para guardas é uma capela. Várias prisões ainda não definiram estas zonas
No comunicado, a DGRSP lembrava também que “está igualmente aprovado um plano de contingência para os trabalhadores”. A verdade é que não era preciso esperar pelo anúncio da ministra da Saúde para começar a aplicar medidas. Já desde 17 de fevereiro que podia ter sido feito. Foi nesse dia que o diretor-geral do Serviço Prisionais, Rómulo Mateus, aprovou um plano de contingência para o novo coronavírus, que tinha por base uma reunião de 13 de fevereiro, onde se discutiu a elaboração do plano de contingência. Assim, era proposto:
- Que fosse atribuído um “computador com endereço eletrónico específico”, no Hospital Prisional São João Deus, para centralizar toda a informação relativa ao plano de contingência;
- Que fosse definido “um espaço de confinamento” em prisões e centros educativos;
- Que fossem fornecidos “equipamentos de proteção individual a todas as unidades orgânicas”;
- E que fosse nomeada uma “estrutura de coordenação nacional” para acompanhar a evolução do vírus em articulação com a Direção-Geral de Saúde.
Mas “a maior parte das cadeias ainda não tem nenhum espaço de confinamento, nem para o reclusos, nem para os funcionários”. Segundo o sindicato, Pinheiro da Cruz, Funchal, Viana do Castelo, Aveiro e Tires são algumas das prisões onde ainda não foi definida uma zona de isolamento para levar funcionários e reclusos que apresentem suspeitas de infeção pelo novo coronavírus. Em Vale de Judeus, o local de isolamento para funcionários é a capela da freguesia, denunciou o sindicalista Jorge Alves. Ao Observador, a DGRSP diz apenas que “o plano de contingência está a ser implementado e que estão a ser estabelecidos os espaços de isolamento”.
“Devem requisitar gel desinfetante e máscara”. Os reclusos requisitaram, a resposta terá sido: “Não há”
Na prisão de Izeda, garante ao Observador o secretário-geral da APAR, terá sido colocado nas paredes de todos os pavilhões um cartaz onde se pode ler: “Devem requisitar gel desinfetante e máscara”. Mas “não há uma máscara, não há uma gota de gel“, garante Vítor Ilharco.
Um discurso semelhante tem o sindicalista Jorge Alves. “Não há desinfetantes. Líquidos: zero. Proteção: zero. Não há nada nas cadeias ainda. As luvas que os guardas usam não são adequadas: são luvas de cozinha que não protegem nada. E não têm máscaras”, acusa, ao mesmo tempo que lembra que o plano de contingência aprovado pela DGRSP já há quase um mês prevê “intensificar a limpeza e higienização dos diferentes espaços prisionais” e fornecer “equipamentos de proteção individual a todas as unidades orgânicas”. Ao Observador, a DGRSP garante que as máscaras e os líquidos desinfetantes estão a ser entregues: “Está em processo de distribuição”.
Na prisão feminina de Santa Cruz do Bispo, outros problemas começam a surgir. “Algumas das empresas que enviam materiais para as reclusas trabalharem são de Felgueiras e já estão a deixar de os trazer“, conta Jorge Alves. Em Felgueiras concentra-se mais de uma dezena de casos de infeção. Também em Braga, conta, todos os materiais que vêm da China “ficam 48 horas depois de descarregar no armazém, onde ninguém lhe toca”.