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Um Facebook virado para a privacidade e um Instagram que quer combater a pressão social. As redes sociais lideradas por Mark Zuckerberg, de 34 anos, estão apostadas em mudar depois de sucessivos casos de violação de privacidade que afetaram milhões de utilizadores.
No final de abril, Zuckerberg apresentava aquela que será a nova plataforma do Facebook, vocacionada para “conversas privadas e protegidas”. “Até de nós”, chegou a dizer, diante de uma plateia de programadores no Centro de Congressos de São José, em Silicon Valley, EUA. Outra das principais mudanças apresentadas tem que ver com o Instagram, rede social detida pela gigante Facebook, cujo número de pessoas que gostam de determinada publicação vai passar a estar escondido, num teste que já arrancou no Canadá. A ideia, explicou Adam Mosseri, presidente executivo do Instagram, passa por convidar os utilizadores a gostar do conteúdo pelo que é e não por mera pressão social, numa tentativa indireta de melhorar o bem-estar coletivo.
Mas, afinal, que perigos enfrentamos nas redes sociais e como é que as mudanças assinaladas podem impactar positivamente as futuras gerações de utilizadores? As respostas não estão isentas de um contexto em particular: Mark Zuckerberg quer limpar a sua imagem e salvar o negócio multimilionário — no final de abril, o Facebook tinha chegado aos 2,38 mil milhões de utilizadores.
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Os perigos que se escondem nas redes sociais
Um inquérito realizado em 2017 pela britânica Royal Society for Public Health, feito a 1.500 adolescentes e jovens adultos, definiu o Instagram como a “pior rede social” ao nível da saúde mental e do bem-estar. Apesar de somar pontos por promover a expressão individual e a identidade em si, a plataforma de fotografia foi associada a elevados níveis de ansiedade, depressão, bullying e até FOMO — sigla inglesa para “fear of missing out”. No entanto, é importante não diabolizar as redes sociais, até porque também há estudos que sugerem que o mesmo Instagram é utilizado para partilhar histórias sobre depressão e inseguranças pessoais. Já dizia Carl Honoré, fundador do Slow Movement (o nome da iniciativa fala por si), não é a tecnologia que tem de se adaptar, mas sim os seus utilizadores.
Em abril, o Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida (ISPA) mostrou que o uso excessivo das redes sociais e da Internet “contribui para o sentimento de solidão”, mesmo quando há uma boa rede familiar e social. A investigação — que contou com o contributo de 548 estudantes e jovens entre os 16 e os 26 anos — aponta que “a comunicação online não proporciona a riqueza sensorial que o cérebro necessita para que se gerem sentimentos de conexão social”, isto é, conversar com alguém online não estimula o cérebro da mesma forma que uma conversa presencial. A associação entre solidão e o uso de ecrãs não é nova e tem sido amplamente debatida, mas, nos tempos que correm, parece que ainda há muito a dizer. Uma outra investigação, desta vez da Universidade de Stanford, afirmava em fevereiro que ao abandonar a rede social Facebook as pessoas passavam menos tempo online e nos telemóveis, pelo que a saúde mental saía reforçada.
Não é por acaso que vivemos numa era onde se fala em “solidão digital”, uma espécie de “epidemia” dos tempos modernos que resulta de um paradoxo extremo: nunca estivemos tão conectados e, ao mesmo tempo, tão sós. Ao Observador, a psicóloga clínica Filipa Jardim da Silva já antes afirmou que a solidão digital é uma forma de solidão acompanhada. Agora, faz o reforço: “Há uma solidão disfarçada nas redes sociais mas que é muito real. São vários os casos com que tenho contactado, direta e indiretamente, em que os níveis de saúde física e psicológica diminuíram francamente por fatores associados às redes sociais. Quando o tempo despendido online é excessivo e quando as interações virtuais tendem a compensar a ausência de interações reais, começam a somar-se fatores de vulnerabilidade”.
Nem de propósito, em 2017, o Observador divulgou a conclusão de um estudo orientado por investigadores do ISPA, o qual dizia que 25% dos jovens portugueses, entre os 12 e os 30 anos, estavam viciados em tecnologia e 14% eram dependentes dos smartphones.
Solidão na era digital: nunca estivemos tão conectados e tão sós
Quem fala em solidão fala também em pressão social. “Cada vez mais pessoas se sentem ansiosas por perder publicações, stories e mensagens com receio de se sentirem excluídas dos seus grupos”, afirma Filipa Jardim da Silva. “Mais e mais pessoas comparam as suas vidas às vidas projetadas online e concluem que não são suficientemente boas, fomentando maiores níveis depressivos. Mais e mais pessoas idolatram modelos de beleza adulterados por filtros resultando numa menor auto-aceitação e autoestima”, conclui.
No consultório da psicóloga infantil Inês Afonso Marques, da Oficina de Psicologia, em Lisboa, é recorrente ouvir desabafos “com alguma angústia” que decorrem precisamente das comparações proporcionadas pelo Instagram. “Os jovens encaram os ‘likes’ como reforço social, fazem quase depender o seu bem-estar deles, é como se fosse um termómetro de popularidade. Comparam-se muito com os outros”, diz ao Observador, referindo ainda que, muitas vezes, nota sintomas depressivos associados às comparações sociais no mundo online.
As redes sociais — em particular o Instagram — têm o poder de ampliar a necessidade de aceitação social entre os mais novos. Os “likes”, diz Inês Afonso Marques, são uma dupla métrica que permite perceber quem é aceite e quem é popular. Daí que quem não os acumula possa cair em sofrimento. Não raras vezes, atesta a psicóloga, há adolescentes que publicam fotografias com poses mais provocadoras q.b, nas quais parecem mais velhas, porque “eventualmente têm essa vontade de serem vistas e de serem gostadas” — caso assim seja, é uma “forma frágil” de pedir atenção. Na adolescência “não há filtro do que está certo ou errado”, pelo que há maior dificuldade em perceber as consequências a médio e a longo prazo. A publicação surge mais associada ao prazer imediato, sendo que, mediante a exposição nas redes sociais, “há uma incapacidade de antecipar as consequências”.
“Likes” invisíveis são a solução?
Há muito que os “likes” do Instagram estão associados a “gratificação instantânea”, mas a médio prazo podem levar os utilizadores a encará-los como uma ferramenta de medição do valor pessoal, o que tem invariavelmente peso na autoestima e, em casos extremos, pode levar — de acordo com alguns estudos e publicações — a situações de depressão, ansiedade, solidão, perda de sono e imagem corporal negativa. Daí que o Instagram tenha optado por, no Canadá, esconder os “likes” das publicações numa tentativa de diminuir a pressão social.
De um momento para o outro Sarah Roberts, uma escritora de 22 anos que mora na cidade de Otava, no Canadá, deixou de ver os seus “likes” e os dos outros também. Ao The Huffington Post, a canadiana conta que, após duas semanas inserida no teste, já consegue habituar-se a um Instagram com “likes” invisíveis. “Pessoalmente, adoro não ver a contagem dos likes. Parece estranho dizer, mas parei de me comparar com contas maiores.” Roberts explica também como começou a “gostar” das publicações numa perspetiva mais pessoal e não em função do que os outros preferem. De referir que, no teste, apenas a pessoa que publica o conteúdo tem acesso aos “likes” — os números de visualizações dos vídeos e de seguidores também é omitido.
Ricardo Belo, de 26 anos, também está de acordo com a opção de esconder os “likes”. A viver no Canadá há sensivelmente um ano, onde trabalha na área das tecnologias, conta ao Observador que teve acesso ao teste do Instagram durante uma semana. Após o F8 — evento anual para programadores do Facebook que aconteceu a 30 de abril –, Ricardo recebeu uma notificação à qual só pôde dizer “ok”. “A partir daí desapareceram todos os likes. Nas publicações só aparecia ‘x pessoa e outros gostam disto'”, relata. O teste em vigor no Canadá desde o início de maio afetou todo o feed de Ricardo Belo que, segundo próprio, ficou muito mais democratizado porque, agora, tudo tem o mesmo peso. “O número de likes deixou de importar tanto e o feed ficou muito mais natural. Acabas por ser o juiz daquilo que realmente é importante para ti”, conta. “Há menos pressão e posso concentrar-me num conteúdo mais honesto e menos artificial”, diz ainda.
Esta “versão mais gentil do Instagram”, tal como escreve o The Huffington Post, foi inspirada pelo formato de sucesso conhecido como “InstaStories” — fotografias ou imagens cuja publicação dura apenas 24 horas, em que não são reveladas quantas pessoas viram os respetivos conteúdos. Já em 2016, o co-fundador do Instagram, Kevin Systrom, disse ao TechCrunch que uma das razões pelas quais criaram as “InstaStories” foi para fugir à pressão associada aos “likes”. As “Stories”, um produto copiado do Snapchat, foram um sucesso e, segundo este artigo, traduziram-se na decisão mais inteligente do Instagram (até agora).
O teste a decorrer no Canadá traz outras questões além da saúde mental dos utilizadores, uma vez que os influencers — pessoas que fazem carreira e dinheiro no Instagram através de publicações pagas — podem vir a sentir-se afetados no que à sua relação com as marcas diz respeito. No entanto, segundo esta publicação canadiana, embora haja influencers intrigados com a possibilidade de adaptações importantes ao negócio, o teste está a ser bem recebido. Em Portugal, Constança Firmino, com quase 9 mil seguidores no respetivo perfil, assegura ao Observador que os “likes” não são assim tão importantes e que gosta de partilhar com a comunidade aquilo que para si faz sentido. “Não acho que o facto de os ‘likes’ estarem escondidos vá afetar de todo a relação dos influencers com as marcas. Pelo que li, os influencers têm acesso às suas estatísticas e as marcas vão continuar a ter acesso a esses dados. Acho que não vai mudar nada. Acho é que as pessoas vão parar de se comparar umas às outras e que o Instagram vai voltar a ser aquilo que deve ser, uma ferramenta de partilha orgânica“, defende.
Helena Magalhães, também ela influencer seguida por quase 25 mil pessoas, discorda e considera que não havendo “likes” na rede social o negócio pode vir a sofrer sérias alterações — mas também é precisamente por isso que não acredita que o teste se torne em algo definitivo. “Se os likes deixarem de ser a métrica de poder, as pessoas vão deixar de sentir necessidade de patrocinar as suas fotos”, argumenta. A influencer que também é escritora afirma que, neste momento, “o Instagram é a rede social mais tóxica”. “Costumo dizer que as pessoas deixaram de ter uma vida normal porque, agora, têm uma insta-vida”, continua, reiterando que a vida real não tem os filtros do Instagram.
O teste em questão faz parte de uma medida maior da aplicação para combater o bullying, pelo que outras “ideias” estão em cima da mesa: desde o “abanão” antes da publicação de um comentário mais agressivo, de maneira a que o utilizador repense o que está a escrever, à introdução de um “Away Mode” que permita “sair” do Instagram numa altura mais sensível — “como mudar de liceu ou enfrentar uma separação”, disse Adam Mosseri, presidente executivo do Instagram, no evento já citado.
Mudanças para bem do utilizador ou da faturação?
Ivone Patrão, uma das autoras do estudo do ISPA já citado sobre a dependência dos ecrãs entre os jovens portugueses, não tem dúvidas: as mudanças anunciadas tanto no Facebook como no Instagram podem vir a traduzir-se numa melhoria ao nível do bem-estar nas gerações mais novas. A também psicóloga clínica, que dá consultas no âmbito dos comportamentos e dependências online, explica ao Observador que as crianças e os jovens “agarrados” ao ecrã são, por norma, “mais ansiosos e deprimidos” e tendem a apresentar alterações no comportamento familiar, bem como a estarem mais isolados socialmente. Sendo estes “jovens mais vulneráveis”, os mesmos podem vir a beneficiar de, por um lado, mais privacidade, e, por outro, de menor pressão social. Em última análise, atesta a investigadora, podem ter vantagens do ponto de vista da segurança online.
“Sim, estas mudanças podem vir a fazer-nos bem, sobretudo porque as crianças e os jovens ainda estão no processo de desenvolvimento, ainda estão a desenvolver as questões da auto-regulação, pelo que esta pode ser mais uma ferramenta para que não estejam tão expostos. Para os adultos, ter likes visíveis ou não ter privacidade é capaz de ir dar ao mesmo”, afirma Ivone Patrão.
Consultadas pelo Observador, ambas as psicólogas Inês Afonso Marques e Filipa Jardim da Silva consideram as medidas apresentadas pelo Facebook e pelo Instagram como positivas. A primeira — psicóloga infantil da Oficina de Psicologia, em Lisboa — argumenta que o Instagram continua a oferecer o sentimento de “aprovação” porque os “likes” são visíveis a quem publica, mas a sua omissão para os restantes utilizadores anula a comparação social que, muitas vezes, “causa sofrimento”. A medida “mais protetora” não anula, porém, a responsabilidade do educador, que deve ser modelo de um uso tecnológico saudável das redes sociais. Já Filipa Jardim da Silva assegura que a implementação de uma medida como aquela testada no Canadá poderia aumentar os níveis de liberdade individual, além de colocar mais ênfase no conteúdo concreto ao invés da popularidade do mesmo. Mais: não alimentaria hierarquias sociais com base no número de gostos, retiraria pressão a quem publica os conteúdos e diminuiria comportamentos comparativos.
Mas as mudanças apresentadas — referentes sobretudo ao Facebook e ao Instagram — podem derivar de outras necessidades. Elizabeth Dwoskin, correspondente em Silicon Valley pelo The Washington Post, afirmou recentemente numa participação televisiva que Zuckerberg é “um mestre a seguir tendências e em ficar com o crédito por liderar essas mesmas tendências”. A jornalista referia-se às questões da privacidade e lembrou que, antes do anúncio público de Zuckerberg, já o CEO da Apple falava sobre privacidade (prova disso são as mensagens encriptadas enviadas de iPhone para iPhone) e já os antigos fundadores do Whatsapp — agora detido pela gigante Facebook — acreditavam na informação encriptada. “O Facebook está a tentar restaurar a sua reputação entre o público, pelo que faz sentido falar em privacidade, mas não nos esqueçamos que esta é a pessoa que há 10 anos disse que tudo devia ser público. É, sem dúvida, uma volta de 180 graus para a empresa e para Zuckerberg”, disse Elizabeth Dwoskin à PBS.
Quando o co-fundador do Facebook Chris Hughes defendeu, numa recente entrevista ao The New York Times, o desmantelamento daquela rede social devido ao “impressionante poder” de Mark Zuckerberg, o analista de tecnologia Benedict Evans respondeu: “Todas as redes sociais refletem e influenciam o comportamento humano. Às vezes esse comportamento é mau. Não vejo como mudar quem detém essas redes mudaria isso”.
As mudanças referentes tanto ao Facebook como ao Instagram são um reflexo dos tempos. Carl Honoré, fundador do Slow Movement, jornalista e autor de várias palestras — inclusive em empresas de Silicon Valley –, explicou ao Observador que “de cada vez que surge uma tecnologia nova há sempre um primeiro ciclo em que não temos regras sociais ou normas” e que, agora, “estamos a chegar ao fim dessa fase”. Para ele, tanto os utilizadores como as empresas tecnológicas começaram a perceber que é preciso estabelecer limites tendo em conta a utilização das redes sociais: “As mesmas empresas que criaram as tecnologias estão a mudar completamente a forma como estas são usadas. As pessoas que nelas trabalham veem que é demasiado — nas suas casas não há ecrãs e não dão telefones às crianças. O Silicon Valley é uma espécie de farol, mostra o caminho que os outros vão seguir”.
O homem que está na esfera do que acontece dentro de algumas tecnológicas é perentório quando afirma, em entrevista ao Observador, que as empresas de tecnologia estão a perceber que os modelos que lançaram no mercado “podem ser completamente aniquilados” caso as pessoas lhes virem as costas. É também por isso que as mudanças estão a ocorrer — mesmo que em causa possam estar apenas “questões de faturação”. A verdade é que se agora o Facebook anuncia ao mundo que o futuro é privado, há uma década Marck Zuckerberg afirmava precisamente o contrário, isto é, que a “privacidade estava morta”.