Ao autorizar, esta quarta-feira, o uso de emergência da vacina contra a Covid-19 desenvolvida pela Pfizer e pela BioNTech, o Reino Unido tornou-se o primeiro país ocidental a ter uma vacina disponível para combater a pandemia de coronavírus — e prevê começar a vacinar os seus cidadãos já na próxima semana. Nos Estados Unidos, a autorização só deverá ser emitida a meio do mês; já na União Europeia, a decisão, que afetará Portugal, é esperada no final do mês, com a vacinação a começar em janeiro. As diferenças temporais nas aprovações por parte dos três reguladores prendem-se com diferenças na avaliação técnica das vacinas e nos processos políticos por trás das autorizações de distribuição.
Covid-19. Reino Unido pronto para começar a vacinar na segunda-feira
Das várias vacinas contra a Covid-19 desenvolvidas em várias partes do mundo, as duas que estão mais perto de chegar às populações são a que foi feita pela farmacêutica americana Pfizer em parceria com a empresa alemã BioNTech, especializada em biotecnologia, e a que foi feita pela empresa de biotecnologia norte-americana Moderna. A vacina Pfizer/BioNTech foi a primeira a dar entrada nos processos de aprovação dos principais reguladores do mundo, incluindo a Agência Europeia do Medicamento (AEM), a Food and Drug Administration (FDA, a equivalente norte-americana), e a MHRA (agência britânica).
Esta quarta-feira, o governo britânico recebeu e aprovou a recomendação emitida pela MHRA para a distribuição da vacina Pfizer/BioNTech já a partir da próxima segunda-feira, após vários meses de avaliação dos resultados dos ensaios clínicos da vacina, num processo conhecido como “rolling-review” — ou seja, uma revisão que foi acompanhando o progresso científico da farmacêutica, em vez de aguardar pela finalização do processo para fazer uma análise completa, o que permitiu poupar tempo ao regulador britânico. O ministro da Saúde do Reino Unido, Matt Hancock, já veio prometer que o Serviço Nacional de Saúde britânico “está pronto para começar a vacinar no início da próxima semana”.
Casa Branca pressiona aprovação da vacina nos EUA
Nos Estados Unidos, o processo seguido não tem sido exatamente o mesmo que na Grã-Bretanha. A Pfizer também já se candidatou a uma autorização de emergência nos EUA, mas ali a revisão dos resultados é feita de forma diferente, já depois de todo o material ser entregue pela farmacêutica. Para o próximo dia 10 de dezembro está agendada uma reunião do painel de especialistas da FDA com responsáveis da farmacêutica. A reunião — que é pública e vai ser transmitida pela internet — servirá para os especialistas discutirem a segurança e eficácia da vacina e para questionarem os responsáveis da Pfizer a propósito de questões que surjam. Embora haja a expectativa de que a aprovação possa ser atribuída no próprio dia ou nos dias seguintes à reunião, o líder do comité da FDA já veio alertar para a possibilidade de a autorização só chegar depois de “algumas semanas”.
A perspetiva de uma demora na autorização da distribuição da vacina — sobretudo numa altura em que se aproxima a tomada de posse de Joe Biden e o final do mandato de Trump — está a fazer aumentar a pressão política sobre a FDA. Esta terça-feira, o líder do organismo norte-americano, o médico Stephen Hahn, foi chamado à Casa Branca pelo chefe de gabinete de Trump, Mark Meadows, para ser questionado sobre os motivos pelos quais a aprovação da vacina estava a demorar tanto. Na reunião, Hahn assegurou que os cientistas levariam o tempo que fosse necessário para tomar a decisão adequada, mas a demora está a causar desconforto na Casa Branca.
Na União Europeia, por outro lado, o processo de análise foi semelhante ao realizado no Reino Unido — o tal “rolling-review” ao longo do processo científico. Porém, a União Europeia prepara-se para atribuir à vacina da Pfizer uma autorização condicional de comercialização, que é uma autorização mais robusta do que a simples autorização de emergência (que não prevê a comercialização futura), e que por isso demorará mais a chegar.
Esta terça-feira, a Agência Europeia do Medicamento divulgou um comunicado a anunciar que está marcada para o dia 29 de dezembro, o mais tardar, uma reunião extraordinária do CHMP, o comité especializado da AEM responsável por emitir o parecer técnico final sobre a aprovação da autorização condicional de comercialização. A AEM explica que só é possível garantir uma aprovação num período tão curto devido ao processo de revisão científica que foi feito de forma gradual ao longo dos últimos meses. “Se os dados submetidos [pela farmacêutica] forem suficientemente robustos para concluir pela qualidade, segurança e eficácia da vacina”, a reunião final ocorrerá até àquele dia, mas os prazos podem sofrer alterações. Ao mesmo tempo, a avaliação da vacina está a ser apoiada pela task-force especializada da AEM para a Covid-19, que tem permitido reunir informação científica sobre as terapêuticas específicas para a pandemia em menos tempo do que seria habitual.
Em declarações ao Observador, o economista da saúde Francisco Rocha Gonçalves, professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, que trabalhou na área do medicamento, disse que é expectável que a reunião europeia possa ser antecipada e que a autorização possa chegar antes do previsto — sobretudo agora que o Reino Unido já anunciou a sua aprovação, aumentando a pressão política sobre os decisores europeus.
Vitória para o Reino Unido no pós-Brexit
“Em termos gerais, o processo na Europa não deverá ser muito diferente do processo no Reino Unido”, explica o especialista, lembrando que até à concretização do Brexit a Agência Europeia do Medicamento estava sedeada em Londres. “Muitos dos que fazem parte do corpo técnico do MHRA atualmente trabalhavam para o organismo europeu. São pessoas que trabalhavam em conjunto até ao Brexit”, destaca Rocha Gonçalves, salientando que, do ponto de vista técnico, os processos não diferiram particularmente. Além disso, o especialista diz não encontrar grandes diferenças do ponto de vista burocrático, uma vez que todos os mecanismos de emergência foram ativados no sentido de acelerar ao máximo a aprovação dos medicamentos e das vacinas.
O académico propõe, antes, uma leitura política: para o governo britânico, anunciar uma vacina antes da União Europeia é uma importante vitória em termos de política interna no contexto do Brexit. “Têm de solidificar nas pessoas a ideia de que o Brexit foi uma boa ideia e isto ajuda”, sugere Francisco Rocha Gonçalves, salientando que uma diferença de duas ou três semanas, não sendo significativa do ponto de vista técnico, é importante para a difusão da mensagem de soberania do país. Com efeito, no tweet em que anunciou a autorização de emergência da vacina, o ministro britânico Matt Hancock fez questão de sublinhar que “o Reino Unido é o primeiro país do mundo a ter uma vacina clinicamente aprovada”.
Help is on its way.
The MHRA has formally authorised the Pfizer/BioNTech vaccine for Covid-19.
The NHS stands ready to start vaccinating early next week.
The UK is the first country in the world to have a clinically approved vaccine for supply.
— Matt Hancock (@MattHancock) December 2, 2020
A principal razão para que o Reino Unido se tenha adiantado à União Europeia reside nas diferenças entre os tipos de autorização emitidos pelo país e pelo bloco.
No Reino Unido, foi emitida uma autorização de emergência para o uso do medicamento. Trata-se de uma autorização excecional de utilização de um medicamento, equivalente àquela que pode ser definida em Portugal diretamente pelo Infarmed, em casos em que a equipa médica considere que os benefícios são superiores ao risco e em que não há outra alternativa para o tratamento de um doente. Foi este processo que permitiu, por exemplo, a utilização de um medicamento específico no mediático caso da bebé Matilde, no ano passado. Esse medicamento, todavia, continua sem autorização para ser comercializado em Portugal — para isso, dependeria de uma autorização de comercialização da Agência Europeia do Medicamento, a que se seguiria um processo negocial do Infarmed com as farmacêuticas para a definição dos preços.
Ora, o que acontece no caso dos países que pertencem à União Europeia é que a AEM pretende emitir uma autorização condicional de comercialização. Isto significa que os países não vão ficar limitados à autorização excecional para o uso, mas autorizados a comercializar a vacina — ainda que com algumas limitações. De acordo com a própria página da AEM, uma autorização condicional de comercialização é emitida quando “o benefício para a saúde pública da disponibilização imediata do produto medicinal no mercado é superior aos riscos” e quando é expectável que o produtor venha, mais tarde, a fornecer os dados completos necessários à autorização definitiva. Esta autorização é limitada a um ano, mas pode ser renovada. Mesmo chegando aos países algumas semanas depois da autorização de emergência no Reino Unido, este processo dará aos Estados-membros mais margem de manobra na utilização das vacinas.
Na manhã desta quarta-feira, os ministros da Saúde da União Europeia tiveram uma reunião informal com a nova presidente da AEM, Emer Cooke, durante a qual a responsável da agência europeia lhes confirmou a intenção de realizar a reunião que deverá aprovar a vacina da Pfizer até ao dia 29 de dezembro. Na reunião, Cooke também disse que a UE está atenta à decisão tomada no Reino Unido, mas assegurou aos ministros europeus que serão seguidos todos os protocolos, ainda que acelerados graças às vias verdes implementadas durante a pandemia, antes da aprovação da vacina. O ministro da Saúde alemão, Jens Spahn, expressou preocupação com a perceção pública do processo caso a União Europeia seja a última a aprovar uma vacina, depois do Reino Unido e dos EUA. “Temos de ser tão rápidos quanto conseguirmos”, afirmou.
O facto de uma autorização condicional de comercialização ter um prazo de um ano, ao contrário da autorização de emergência, válida apenas para uma vez, levará também a que a aprovação na União Europeia chegue depois da autorização americana — que também será uma autorização de emergência. Ainda assim, como lembra Francisco Rocha Gonçalves, “não ficaria bem à Europa ser a última”, já que os EUA não fizeram o processo de “rolling-review” que lhes permitiria poupar tempo. Para já, o que parece certo é que a vacina deverá estar aprovada no final do ano — tanto que a diretora médica da Pfizer Portugal, Susana Castro Marques, já veio admitir que a vacinação em Portugal poderá começar logo no dia 1 de janeiro.
Mesmo arrancando logo no início do ano, a vacinação em larga escala dos portugueses deverá “levar muitos meses”, como admitiu esta quarta-feira ao Observador o Presidente da República. “Não tenhamos ilusões, este é um processo lento, de muitos meses”, disse Marcelo Rebelo de Sousa. “É preciso continuar, com precaução, durante o mês de janeiro e fevereiro, quando ainda não haverá de facto muitos portugueses vacinados.”