Não é que o relatório seja positivo para Boris Johnson. As conclusões da investigadora Sue Gray a propósito dos eventos em Downing Street durante a Covid-19 — já conhecidos como “Partygate” — não primaram pela leveza para com o primeiro-ministro britânico. “Falhas de liderança”, acontecimentos “difíceis de justificar” e “álcool em excesso” foram alguns dos termos invocados pela relatora, num documento cujo conteúdo ainda nem sequer é conhecido na íntegra. E tudo pela pena de uma funcionária que não podia ir longe em condenações políticas. A editora política da BBC, Laura Kuensssberg, lembrou que apontar “falhas graves” à liderança é, no dialeto de Whitehall, “uma quase condenação”.
Mas eis que, ao cair da noite, a tensão parecia ter-se dissipado. A reunião do primeiro-ministro com os deputados do seu partido, ao final do dia, terminou com aplausos e tories satisfeitos. A promessa de que publicará o relatório na íntegra acalmou as hostes e chutou qualquer consequência para a investigação policial, que ninguém sabe quando acabará.
“Foi tudo empurrado para a frente”, resumiu ao Observador David Jeffery, professor de Ciência Política especialista na História do Partido Conservador. “Aquilo que consta no relatório não é propriamente novo, é a avaliação de uma cultura e organização que já se tinha percebido como funciona e que Boris Johnson se limitou a dizer que ia resolver. Quando essa não é a verdadeira questão.” A questão, crê o professor da Universidade de Liverpool, é saber se Boris mentiu ou não sobre o que sabia sobre as festas, se as autorizou e até se participou — e isso só será conhecido com o relatório policial.
Matthew Goodwin, especialista na ala pró-Brexit do Partido Conservador, concorda. “Não há dúvidas de que Boris Johnson está encostado às cordas e que é um primeiro-ministro mais fraco do que era há apenas seis meses”, comenta com o Observador por email. “Contudo, suspeito que vai sobreviver a esta crise.” O maior sinal? “O facto de não ter havido ainda uma rebelião em massa entre os deputados do seu partido”.
Na verdade, o Partido Conservador parece ter chegado a uma acalmia interna e decidido deixar para depois qualquer decisão para afastar Boris Johnson. Mas o primeiro-ministro não está fora de perigo e a “Muralha Vermelha” do Norte de Inglaterra ainda lhe pode causar problemas — agora, ou no futuro.
Theresa May atacou, mas não desferiu o golpe fatal
A tarde foi marcada pelo debate sobre o relatório na Câmara dos Comuns. E, uma vez mais, o cenário para o primeiro-ministro não foi famoso. Teve de pedir desculpa e ouvir críticas até de deputados do seu próprio partido. O tiro de partida foi dado nada mais nada menos do que por Theresa May, a antiga primeira-ministra substituída por Boris Johnson, que faz poucas intervenções na Câmara dos Comuns desde que abandonou esse posto.
“Ou não leu as regras ou não entendeu o que significavam ou acha que as regras não se aplicam a si”, disse a Boris Johnson no Parlamento. “Qual delas é?” Seguiu-se o veterano Andrew Mitchell, que disse que o primeiro-ministro já não tinha o seu apoio e Aaron Bell, que perguntou se Boris o achava “um parvo” por ter cumprido as regras no funeral da avó.
Os ataques surgiram, mas também a defesa de alguns dos mais leais. E David Jeffery aponta que, apesar de o ataque de May ser duro, não deverá fazer muitos deputados mudarem as ideias que já têm sobre Boris Johnson: “Toda a gente sabe que ela não gosta dele e que há deputados que não gostam dele e têm aproveitado esta situação. Mas a maioria dos deputados conservadores está a pensar ‘Vamos esperar’. Por uma questão até pragmática: se convocarem uma moção de censura interna e ele sobreviver, depois não podem voltar a fazê-lo durante um ano, altura em que o clima político pode ser bem diferente.”
Esse é um dos fatores que faz alguns tories recuar, mas não é o único. O facto de ainda não haver um sucessor claro que possa ser mais bem sucedido que Boris em eleições pesa. A “Operação Salvar Boris” vai fazendo o seu trabalho e convencendo alguns. E até o timing, com Boris Johnson a visitar a Ucrânia esta terça-feira, não ajuda, fazendo com que alguns deputados tenham receio de ser vistos como pouco patrióticos se criticarem o primeiro-ministro nesta altura.
“Operação Salvar Boris”. O plano de Johnson para continuar ao leme do Reino Unido
Na reunião do partido no final do dia, Boris Johnson deu garantias de que vai publicar o relatório de Sue Gray na íntegra depois da investigação policial — algo que tinha evitado fazer na sessão plenária —, a garantia final que segurou os deputados. À saída, um dos mais críticos do primeiro-ministro já reconhecia à BBC que “não vamos ter as 54 cartas” para provocar a moção de censura “de forma nenhuma”. Outra deputada comentava com a Sky News que Boris usou o seu carisma e convenceu muitos: “Eles entraram a dizer ‘Grrr’ e ao fim de 20 minutos já estavam a comer da mão dele.”
Independentemente do que pensam os deputados sobre o caráter do primeiro-ministro, há um fator que orienta a sua decisão acima de todos os outros: a capacidade de Boris Johnson ganhar eleições, que ainda não está totalmente perdida. É isso que explica ao Observador Ben Page, diretor da empresa de sondagens Ipsos Moris: ”É claro que é horrível ter a antecessora no Parlamento a dizer que ele ou é estúpido ou é mentiroso”, comenta. “Mas muitos dos deputados conservadores já achavam antes que Boris Johnson é mentiroso. E quando olhamos para as métricas, nada disto significa ainda que ele vá perder as próximas legislativas. A maioria dele é enorme e, para Boris perder completamente, o Labour teria de conseguir uma vantagem semelhante à que Tony Blair conseguiu, de 40 pontos de vantagem. Neste momento, Keir Starmer tem apenas 18.”
Keir Starmer de olho no longo-prazo e na “decomposição” do governo Boris
Apesar de estar no seu melhor momento de sempre nas sondagens, o líder dos trabalhistas, Keir Starmer, não pode ainda cantar vitória. Por enquanto, a única forma que teria de afastar constitucionalmente Boris Johnson, neste momento em que segue à frente nas sondagens, seria se os próprios conservadores afastassem o primeiro-ministro. E Starmer sabe-o. “A única coisa que o Labour pode fazer agora é dizer aos conservadores ‘Este tipo está a provocar-vos danos, têm de se livrar deles”, resume ao Observador Steven Fielding, especialista na História do Partido Trabalhista.
Foi exatamente isso que Starmer fez nos Comuns esta segunda-feira, invocando até Margaret Thatcher para apelar ao coração dos tories. “O primeiro dever do governo é fazer cumprir a lei”, disse, citando a antiga primeira-ministra conservadora. “Independentemente do partido em que se vota, a honestidade e a decência importam”, afirmou o trabalhista. “Há membros da bancada oposta que o sabem. A questão é o que vão fazer com isso”, disse.
Apesar de não ter uma vantagem estrondosa nas sondagens e de estar nas mãos dos conservadores, Keir Starmer não está, porém, insatisfeito. O “Partygate” tem feito com que a imagem de Boris Johnson se deteriore perante os eleitores — uma sondagem deste dia dava conta de que o trabalhista está à frente em todas as avaliações de caráter — e possa ir marinando em lume brando. “Quanto mais tempo os conservadores continuam no poder, mais tempo têm para se ir decompondo”, resume Fielding.
Johnson vs. Starmer (31 Jan):
Starmer leads over Johnson in ALL leadership characteristics on which we poll.
On who best embodies the trait 'tells the truth,' 44% say they don't know, 42% say Starmer, and 14% say Johnson.https://t.co/oNJdPN4pdn pic.twitter.com/X9mwCsQLUM
— Redfield & Wilton Strategies (@RedfieldWilton) January 31, 2022
“Boris é na verdade ótimo para Keir Starmer”, continua o professor da Universidade de Nottingham. “Ele está a tentar reconectar-se aos eleitores da ‘Muralha Vermelha’ [círculos eleitorais do nordeste de Inglaterra, tradicionalmente pró-Labour mas que votaram em Boris Johnson em 2019], que são socialmente conservadores. Nos últimos dois anos Starmer tem tentado passar a ideia de que o Labour é um partido patriótico, diferente dos tempos de Jeremy Corbyn, e isto ajuda.” Como? Colocando-se, por exemplo, ao lado da Rainha, quando foram conhecidas as notícias de que houve uma festa em Downing Street na véspera do funeral do Príncipe Filipe, por exemplo. “Até mesmo no debate de hoje, ele disse ‘O Reino Unido cumpriu estas regras’ e isso contrastou com a postura do primeiro-ministro.”
“Muralha Vermelha” de Boris já não é de aço
Matthew Goodwin concorda que, apesar de Boris Johnson estar numa posição em que deve conseguir sobreviver, pode vir a ter dificuldades junto dos eleitores da “Muralha Vermelha”: “Na primavera vamos ter eleições locais. E os eleitores de classe trabalhadora desta zona, onde ele ganhou tanto apoio em 2019, podem na verdade ser uns desmancha-prazeres para Boris Johnson.”
Tradicionalmente trabalhistas, os eleitores destas zonas industriais do nordeste de Inglaterra surpreenderam tudo e todos há dois anos, ao apoiar em massa o atual primeiro-ministro, muito por causa da sua posição a favor do Brexit. Agora, porém, estão prontos para lhe virar as costas, segundo as sondagens. “Temos notado que as pessoas estão mais preocupadas do que nunca com as ações dos políticos neste momento”, aponta Ben Page da Ipsos Mori. “O Brexit não é nada quando comparado com isto. E esse descontentamento está concentrado sobretudo no norte de Inglaterra.”
Para além de revoltados com um primeiro-ministro que não seguiu as regras quando tiveram de abdicar de tanto, muitos destes eleitores estão também preocupados com o aumento acentuado do custo de vida. Uma análise do The Guardian deste domingo, por exemplo, aponta que quase 200 mil famílias desta zona já estão a enfrentar grandes dificuldades económicas com a subida dos preços da energia — situação que se pode deteriorar ainda mais nos próximos meses.
“Talvez isto venha a afetar profundamente Boris Johnson”, alvitra Page. O responsável por sondagens, porém, crê que mesmo perdendo nessa zona, os estudos apontam por agora que Boris manteria apoio noutras zonas do país. “Os trabalhistas são muito prejudicados pela subida dos nacionalistas na Escócia, por exemplo, e com esse problema continuam a ter dificuldade de ganhar eleições legislativas. Neste momento, se tivesse de apostar, diria que em caso de eleições os conservadores ganhariam à mesma. Se bem que pioraram muito a sua situação nas últimas semanas”.
Dentro do Partido Conservador, fazem-se contas e empurra-se o problema para as eleições locais de maio, na esperança de que tal ajude a uma clarificação sobre a liderança do partido. Isso mesmo explicava um deputado à Sky News, ainda antes de ser conhecido o relatório de Sue Gray: “Eles estão a conseguir segurar o barco”, disse, sobre a equipa que está a conduzir a “Operação Salvar Boris”. “A questão agora é se será ele a guiar-nos nas próximas legislativas. Se o salvarmos agora mas ele falhar nos meses que aí vêm, a questão volta a colocar-se no final do ano.”