O nome de António Costa, chefe do Governo na altura em que o Novo Banco foi vendido à Lone Star, nunca aparece no relatório da comissão de inquérito às perdas do Novo Banco, pelo menos na versão que foi apresentada esta terça-feira aos deputados e que os partidos à direita já criticaram duramente. Há várias referências a Passos Coelho, a Maria Luís Albuquerque e até (algumas, poucas) a Carlos Moedas. Há, também, muitas críticas ao ex-governador Carlos Costa (decalcadas do “relatório Costa Pinto”), mas poucas ao seu antecessor, Vítor Constâncio. Mário Centeno, ex-ministro das Finanças e atual governador do Banco de Portugal aparece sobretudo num papel professoral, explicando, por exemplo, as consequências perigosas que teria uma liquidação do Novo Banco.
Escrito pelo deputado socialista Fernando Anastácio, o documento foi considerado pelos deputados do PSD e CDS-PP uma “narrativa” parcial: Duarte Pacheco, do PSD, detetou um “enviesamento socialista” e Cecília Meireles, do CDS-PP, disse achar que estamos perante uma tentativa de “branqueamento” e um aproveitamento político ao qual os deputados resistiram melhor noutras comissões de inquérito à banca, recordou. O PS admitiu possíveis alterações ao documento, mas pediu aos deputados que tomem mais tempo para o ler, já que – com uma leitura mais cuidada – vão ver que o relatório é mais equilibrado do que o pintaram na primeira reação – isso foi o que alegou João Paulo Correia, deputado do PS que saiu em defesa do trabalho de Fernando Anastácio.
Novo Banco: Fernando Anastácio rejeita “liminarmente” acusações de enviesamento
Além das críticas à Lone Star e à atual administração do Novo Banco (que o Observador referiu, em maior detalhe, aqui), o relatório contém referências políticas que, por si mesmo, contam uma história como ela foi vista pelo relator da comissão de inquérito. Nas cerca de 400 páginas do relatório, disponíveis nesta ligação, a ausência total do nome de António Costa contrasta com as cinco vezes em que aparece Pedro Passos Coelho – que, ao contrário do atual primeiro-ministro, foi chamado a responder por escrito às questões colocadas pelos deputados desta comissão.
Recordando a audição de José Honório, vice-presidente do Novo Banco na equipa de Vítor Bento, o relatório refere “reuniões com Maria Luís Albuquerque, ministra das Finanças, Carlos Moedas, secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro, Paulo Portas, vice-primeiro ministro, Pedro Passos Coelho, primeiro-ministro e Durão Barroso, presidente da Comissão Europeia. Estas eram reuniões em que, como sublinha o relatório, os responsáveis – todos ligados à direita política – foram informados sobre os “graves problemas que afetavam, em particular, a vertente não financeira do Grupo Espírito Santo” e, também, sobre o “impacto que o colapso deste Grupo poderia ter na economia portuguesa”.
Na primavera de 2014, quando surge o derradeiro aumento de capital do BES, “era do conhecimento de Carlos Costa, Governador do Bando de Portugal, Maria Luís Albuquerque, ministra das Finanças, Carlos Moedas, secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro, Paulo Portas, vice-primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, primeiro-ministro, e Durão Barroso, presidente da Comissão Europeia, que existiam problemas na vertente não financeira do GES, o qual estaria em iminente colapso, e que a dimensão do problema financeiro seria da ordem dos 7,5 mil milhões de euros”.
Moedas duramente questionado no parlamento (mas quase não aparece no relatório)
Esse “conhecimento” das dificuldades do grupo de Ricardo Salgado foi transmitido numa reunião onde José Honório participou não enquanto vice-presidente do BES/Novo Banco mas vários meses antes do colapso do banco (e do grupo), quando Honório estava a colaborar com o GES. Essa reunião causou um confronto político nesta comissão porque, apesar de ter sido amplamente debatida na anterior comissão de inquérito sobre o BES, a dada altura nesta mais recente comissão (sobre o Novo Banco) o tema voltou a surgir como se fosse novidade – aproveitando o PS para chamar aos trabalhos Carlos Moedas, que tinha acabado de ser designado candidato do PSD à Câmara Municipal de Lisboa.
Porém, apesar de Moedas ter passado algumas horas no parlamento a ser interrogado duramente pelo Partido Socialista acerca do seu envolvimento neste processo, o relatório da comissão de inquérito, nesta versão preliminar, não inclui praticamente nenhumas referências a Moedas, além das já citadas, onde aparece referido como tendo estado presente nessa reunião ao lado de Passos, Barroso, Portas e Maria Luís Albuquerque.
Não há, por exemplo, qualquer referência à chamada telefónica feita por Ricardo Salgado a Carlos Moedas. Esse é um telefonema que terá durado três minutos e em que Salgado terá pedido a Moedas que interviesse junto do ministro da Justiça do Luxemburgo, país cujas autoridades judiciais estavam a investigar empresas do GES. Por mais de cinco vezes consecutivas, João Paulo Correia, deputado do PS, perguntou a Moedas se disse que sim ao pedido de de contacto feito por Ricardo Salgado, invocando uma gravação dessa conversa que é pública.
Carlos Moedas admitiu que não disse diretamente que não, “como ninguém diz a um presidente do banco”. Mas “os factos são claros”, afirmou Moedas: “Eu disse, simpaticamente, a um presidente de um banco: ‘Estou a ouvi-lo, Dr. Ricardo Salgado’. Não disse nem que sim, nem que não”. O ex-governante admite que “ficou paralisado” e a pensar no que se estaria a passar, perante os pedidos do então presidente do BES. “Fui para casa e não fiz nada, como está provado. Os factos falam por si. Pela primeira vez um Governo disse que não a Salgado e eu fiz parte desse Governo”.
Costa (António) não aparece, mas Costa (Carlos) é duramente criticado
Embora o objeto desta comissão de inquérito fossem as perdas do Novo Banco (imputadas ao Fundo de Resolução), boa parte dos trabalhos dos deputados concentrou-se no período anterior ao colapso da instituição historicamente liderada por Ricardo Salgado – sobretudo as primeiras audições focaram-se muito nesse período, mesmo tendo já havido uma comissão de inquérito que se debruçou especificamente sobre esse assunto.
Havia, porém, uma novidade: desta vez os deputados puderam ler o famigerado “relatório secreto” do Banco de Portugal, cujo conteúdo o Observador tornou público a partir do dia 13 de abril. E, tal como esse relatório elaborado pelo antigo presidente do conselho de auditoria do Banco de Portugal João Costa Pinto, a versão preliminar do documento escrito por Fernando Anastácio é muito dura com Carlos Costa. Muito mais do que com o seu antecessor, Vítor Constâncio, sob cuja égide se formaram os problemas que levaram ao colapso do BES (e que levaram a problemas também noutros bancos).
Há apenas duas referências ao nome de Vítor Constâncio no documento, além de uma terceira onde apenas é elencado como um dos depoentes da comissão. Aos olhos de Fernando Anastácio, Vítor Constâncio “foi claro em reconhecer que a evolução da exposição do BES ao BES Angola – nos termos em que ocorreu, revelando um crescimento exponencial e tendo em consideração a sua natureza – merecia e exigia outra atitude” por parte do supervisor bancário.
Logo a seguir, porém, surge a defesa de Constâncio, que “lamentou” que, “na altura, não tivesse sido alertado para essa situação concreta“, embora reconheça agora que estava em causa “uma verba muito grande” de exposição do BES à unidade angolana – que acabou por ser um fator crucial que levou o banco à ruína.
Em contraste com as parcas referências a Vítor Constâncio estão as largas dezenas, ou mesmo centenas, em que Carlos Costa aparece como um dos principais culpados pela crise no BES que levou à resolução do banco. O relatório vai até mais longe do que as críticas feitas por João Costa Pinto à atuação do Banco de Portugal na era Carlos Costa: Fernando Anastácio critica Carlos Costa por, após o relatório Costa Pinto lhe ter sido entregue, não ter “desencadeado qualquer iniciativa ou ação de contraditório ou reflexão: quer a nível interno do Banco de Portugal, quer externamente sobre os factos e conclusões nele vertidas, mantendo este relatório, até hoje, a classificação de confidencial”.
Na realidade, embora, de facto, o relatório Costa Pinto nunca tenha sido tornado público, houve na altura uma iniciativa do governador Carlos Costa de pedir uma “análise crítica” aos departamentos de Supervisão Prudencial e ao Departamento Jurídico, em relação ao que estava escrito no relatório Costa Pinto. O próprio ex-governador disse, durante a sua audição, que a fragilidade do relatório Costa Pinto era, precisamente, não ter esse contraditório à partida (embora tivesse um capítulo sobre as condicionantes que limitaram a atuação do Banco de Portugal no caso BES).
A “infeliz letra da lei” e outros impedimentos ao Banco de Portugal no BES
De resto, alinhando-se com as críticas feitas no relatório Costa Pinto, cujo autor foi o primeiro a ser ouvido nesta comissão, Fernando Anastácio critica Carlos Costa por ter tido uma atitude demasiado passiva em relação a Ricardo Salgado e à acumulação de problemas no GES, que contagiaram o BES. Essa atitude, que o relator considerou pouco corajosa, é ainda mais criticável aos olhos de Fernando Anastácio, porque os serviços do Banco de Portugal alertaram Carlos Costa para os problemas.
Havia, lê-se no relatório da comissão de inquérito, “notórias diferenças de posição entre os técnicos do BdP, que acompanhavam de perto a atuação do BES e que foram inclusive produzindo as notas informativas, e o Conselho de Administração do BdP, que por vezes ignorava as notas informativas, dilatava os prazos e, muitas vezes, reconduzia a sua ação, no essencial, a sinalizar problemas e ao envio de cartas, a tal ‘supervisão epistolar'” que foi referida durante os trabalhos.
Contrato de venda desequilibrado? A culpa é da DGComp e das circunstâncias
No momento da venda de 75% do banco (ao fundo Lone Star), foi celebrado um contrato cujas condições são “desequilibradas” em favor do comprador, referiu Fernando Anastácio durante a apresentação do relatório aos outros deputados. Porém, na interpretação do relator isso não se deve a uma má negociação por parte de quem estava no poder na altura, em 2017 – o PS, com António Costa e Mário Centeno (nas Finanças).
Tendo em conta as circunstâncias, “o banco foi vendido à melhor opção” e “não havia outra proposta que melhor tivesse defendido o interesse público“, conclui o relatório, numa das frases que terá maiores probabilidades de ser disputada pelos outros partidos. “O aspeto mais importante foi que ficou definitivamente afastada a hipótese da liquidação do Novo Banco”, escreveu Fernando Anastácio, num alinhamento claro com as justificações que o PS sempre deu sobre esta matéria.
O relator lembrou que as imposições da DGComp (autoridade europeia) faziam com que, “no caso de os ativos do NB ou de as ações do próprio banco não serem vendidas no prazo máximo previsto o NB deveria cessar novo negócio e ser iniciada a sua liquidação no mês seguinte”. E isso teria, lê-se no texto, “impactos significativos para o sistema financeiro” – e “era altamente questionável que fossem as soluções que melhor protegessem o interesse nacional”.
E a alternativa da nacionalização? “A opção de manter o NB na esfera pública, ou seja, a chamada mais vulgarmente nacionalização, foi uma opção quase desconsiderada, completamente rejeitada pelas autoridades europeias”. Porém, Fernando Anastácio acrescenta: “só o governo fez uma avaliação da opção“, tendo apesar disso “concluído rapidamente que os custos financeiros, mas não só, eram incomportáveis”.
Descartada essa hipótese, “o investidor Lone Star era aquele que estaria melhor colocado para finalizar o processo de negociação com sucesso, decidindo, em conformidade, em fevereiro de 2017, selecioná-lo para fase definitiva das negociações”. Porém, diz Fernando Anastácio, “mesmo quando as negociações decorriam apenas com a Lone Star foi possível melhorar as condições de venda, mais uma vez imperou a salvaguarda pelo interesse público”.
O relator aludiu ao facto de não se ter negociado uma garantia pública, mas sim um esquema mais complexo a que se chamou “mecanismo de capital contingente” (CCA) e que em vez de fazer uma compensação direta pelas perdas nos ativos problemáticos (do perímetro definido), o Fundo de Resolução tinha de compensar a Lone Star apenas quando o reconhecimento de perdas fazia baixar os rácios de capital abaixo de um certo nível. Além disso, estava (e está) limitado a 3.890 milhões de euros.
Um dos aspetos mais significativos desta negociação será o de se ter evoluído de uma proposta onde era pretendida uma garantia euro a euro sobre as perdas que se viessem a verificar relativamente a um conjunto de ativos, o denominado “legado” para uma solução estruturada em torno de uma obrigação de capitalização do NB por parte do FdR, caso se verifiquem, cumulativamente, perdas na aludida carteira de ativos determinada pelo CCA e redução dos rácios de capital do banco, no final de cada exercício, para valores abaixo dos níveis acordados, cuja chamada de capital será sempre feita pelo menor dos valores”.
Não há qualquer alusão no relatório ao facto de António Costa e Mário Centeno terem dito publicamente, em 2017, que a solução de venda (de 75% do banco) à Lone Star era uma solução “sem impacto direto ou indireto nas contas públicas, nem novos encargos para os contribuintes”. Uma afirmação que o Tribunal de Contas desmentiu com factos e números (tal como outra semelhante feita pelo governo PSD-CDS em 2014, no momento da resolução) numa auditoria divulgada no decorrer dos trabalhos da Comissão parlamentar de inquérito.
As revelações do Tribunal e os contra-ataques do Banco de Portugal, Governo e Fundo de Resolução
Essa foi uma garantia que foi referida durante a comissão de inquérito não só pelos deputados à direita mas também, por exemplo, pelo PCP – e é uma falácia, porque todos os anos o Estado tem feito empréstimos públicos ao Fundo de Resolução para que este capitalize o Novo Banco. O impacto – direto – desses empréstimos sobre as contas públicas é inegável, mesmo que exista a obrigatoriedade de os bancos, através das suas contribuições para o Fundo de Resolução, ressarcirem o Estado ao longo de várias décadas.
Nesta tarde de terça-feira, em conferência de imprensa, Fernando Anastácio rejeitou “liminarmente” qualquer enviesamento na elaboração do relatório. “Rejeito liminarmente essa ideia de uma leitura enviesada. Aliás, é uma leitura objetiva, na minha qualificação”, afirmou, admitindo que o texto possa vir a sofrer alterações nos próximos dias. “Há muito trabalho para fazer. O relatório foi distribuído às 10h20 da manhã e são as primeiras impressões, não vamos valorizá-las tanto como isso”.