As chamas enganaram Maria. Afinal, bateram-lhe à porta. Quando esta terça-feira olhou pela janela, uma pequena fogueira do lado oposto da estrada nacional 348, na freguesia de Almoster, em Leiria, dava os primeiros sinais daquela que seria uma tarde e uma noite que lhe trouxeram forças “sabe-se lá de onde”. Quando saiu para avisar o marido, o fogo já tinha atravessado o alcatrão. E foi aí que percebeu que estavam sozinhos. Não tinham outra alternativa, a não ser pegar nas coisas que estavam mais à mão, já que abandonar a casa nunca foi uma hipótese: enxadas e mangueiras. Com a água, regaram o terreno e as paredes da casa. E, com a enxada, iam tentando esconder as chamas com terra.
Nem sinal de bombeiros, nem autoridades, como tem sido habitual em várias localidades dos concelhos de Leiria, Ourém e Pombal. Finalmente, apareceram pessoas das aldeias vizinhas que ajudaram o casal de 60 anos e a casa ficou intacta. Pouco branca, é certo, mas com cor suficiente para fazer um contraste com o chão preto que ainda esta quarta-feira queimava. E reacendia. E apagava outra vez.
Esta dança das chamas nos terrenos junto à casa de Maria tiraram-lhe o sono, mas deram-lhe outra coisa: “uma genica, que a gente nem sabe de onde é que ela vem”. Esta manhã, depois de uma noite que não serviu para dormir, a enxada e a água continuavam perto dela, que passou horas com o marido a apagar “pequenas fogueirinhas”. E ela até já decorou o processo: “Isto deixa as raízes, depois a terra aquece, aquece e começa a arder outra vez”.
Enquanto explicava o processo de reacendimento, sempre mostrando a vertente prática, Maria apagava as chamas que voltaram e que estavam à frente da casa de um vizinho. Desta vez, já mais de 24 horas depois de as chamas terem destruído os seus terrenos, acabou por ficar sozinha, com a mangueira e com a enxada. Quem parou para a ajudar teve de correr para outro incêndio que começou numa zona de mato perto do cemitério de Almoster e também o seu marido tinha ido para lá. “Ui, para lá está pior, está. Eu agora fico aqui sozinha, também não deve haver perigo”.
O marido e quem ajudou Maria seguiram então pela nacional 348. Um dos destinos deste percurso chama-se Casal da Rainha, uma aldeia onde começou a arder uma zona de mato, já ao final da tarde desta quarta-feira, e juntou centenas de bombeiros e militares da GNR. Aliás, de acordo com Ricardo Costa, comandante do Comando Distrital de Operações de Socorro (CDOS) de Leiria, estavam, por volta das 21h desta quarta-feira, cerca de 450 operacionais, “praticamente todos na frente de Almoster”.
O acesso para a aldeia foi logo cortado e, com a chegada da noite, a iluminação continuava a ser dada pelas chamas, numa sinfonia com as luzes azuis dos carros de bombeiros. O cheiro, esse, é o habitual. E o som é de foguetes sem ritmo.
À entrada da aldeia, junto ao cemitério, paravam os carros que seguiriam para o combate ao fogo e várias pessoas das aldeias em volta — curiosos e com vontade de ajudar. Já outros, assumiam papéis mais específicos: Ana Maria tem um lagar de azeite mesmo junto ao cemitério, sobre o qual diz, aliás, que “temos todos lugar guardado, sobretudo quando há fogo”, Virgínia tem a sua casa à frente do cemitério e recusa arredar pé e um casal que fugiu de Casal da Rainha, depois de atirar a roupa para dentro do carro e decidir voltar para a sua primeira casa, que é em Lisboa.
Ali, em vez de alívio, a noite trouxe vento, que mudava constantemente de direção. E o vento foi um dos fatores que levou as autoridades a colocarem Almoster na linha vermelha. “Vamos passar por situações complicadas, em que há várias rotações do vento, poucos acessos, muitas localidades com gente idosa, que é preciso deslocar e que naturalmente estão a passar por uma situação muito delicada”, explicava o comandante do CDOS de Leiria, em relação a esta freguesia. Mais perto das 23h, a confusão no local espelhava a falta de informação sobre o que se estava realmente a passar nas pequenas localidades cercadas pelo fogo e pelos pedidos de informações sobre as respetivas localidades, feitos pelos bombeiros destacados de diversas zonas do país, que não conheciam o terreno.
“O último dia ainda não sabemos qual é”
O fogo vai, vem, dá a volta e volta a passar. Mesmo por sítios onde já marcou levemente a sua presença. Aconteceu ainda esta quarta-feira à noite em Almoster e aconteceu a cerca de 30 quilómetros dali, em Lavradio, concelho de Ourém, ao final da manhã, depois de as chamas terem passado por ali no dia anterior.
Nesta aldeia, é a vez de Emília pegar na enxada. Vai em direção à casa do irmão, que vive fora de Portugal, e começa a mexer a terra. Faz desaparecer os vestígios de vegetação mais próxima da habitação e volta para casa. Afinal, precisa de “descansar as pernas”, depois de uma noite sem dormir. “Há 24 horas que não comia. Comi agora um bocadinho, mas nada de especial”, contou.
O fogo chegou à aldeia na terça-feira e, nesse dia, Emília encontrou-se com a irmã na propriedade que esta última tem e onde estão porcos e ovelhas. Os animais sobreviveram, apesar de terem ficado sozinhos. Quando as duas se preparavam para regar todo o terreno, evitando assim a propagação do fogo, a GNR obrigou-as a sair, por segurança. “Foram lá buscar a gente pela mão, pegaram em nós e levaram-nos”.
Ao lado de Emília, os moradores multiplicavam-se para ajudar a combater os reacendimentos desta quarta-feira. Assim que souberam que o fogo tinha voltado, abandonaram os trabalhos e reuniram-se na aldeia. Baldes, mangueira, garrafas de água — tudo o que tinham à mão para garantir que nenhuma fagulha caía nas casas. Sobre descanso, estas pessoas têm dúvidas sobre a sua chegada e, quando se fala do dia anterior, o dia em que tudo começou, preferem evitar as palavras “último” e “dia”. “O último dia ainda não sabemos qual é”.
Levar os mais velhos, deixar quem pode ajudar
O incêndio em Lavradio não deu tréguas durante várias horas e, desde o momento em que as chamas chegaram, a preocupação tomava apenas uma direção: as pessoas. Por isso, os mais velhos foram retirados das suas casas logo no primeiro dia. María Emília, Laurinda e António não queriam, mas lá foram de carrinha para o lar das Matas, uma aldeia mais afastada do perigo. Vivem sozinhos e a junta de freguesia optou por convencê-los a escolherem um local seguro.
“Saí de casa com a roupa que tinha no corpo, não deu tempo para mais, aquilo já estava cheio de fumo. Se queria ficar lá? Queria, é a minha casa. Mas aqui também estou bem”, ia dizendo María Emília, enquanto Laurinda fazia gestos de aprovação.
Quatro incêndios continuam a não dar tréguas, três deles no distrito de Vila Real
No final do primeiro dia de incêndio, estas três pessoas regressaram a casa, quando as chamas acalmaram. Mas no dia seguinte, quando o susto voltou, elas voltaram também para o lar das Matas. Esta quarta-feira, contavam regressar de vez para as habitações que deixaram por duas vezes, sem olhar para trás.
A opção de retirar os idosos das aldeias não é exclusiva da aldeia de Lavradio. Esta tem sido, aliás, prática comum, assim que o fumo preto anuncia horas difíceis. Regressando a Almoster, em Leiria, também nesta freguesia foram retiradas pessoas mais velhas das suas casas. E os mais novos ficaram. “Estamos a retirar os idosos e as pessoas com mobilidade reduzida, para que elas possam estar em segurança. Todas as pessoas que possam dar uma ajuda aos operacionais e defender as suas habitações, essas sim, claro que não vamos retirar e vão ficar nas suas casas para se sentirem também úteis”, avançou o CDOS de Leiria.
Nestes últimos dias, defender as casas tem sido a prioridade de todos que ficam à frente das chamas — seja um habitante com uma mangueira, ou um bombeiro. Em Lavradio, a opção nunca foi abandonar as casas, mas sim deixar arder o que não tem tanta importância para também proteger vidas. “Cortem os anéis, mas deixem os dedos”, desabafava ao Observador um dos moradores, depois da passagem do fogo por ali.