Na esquina do Saldanha com a Avenida da República, em Lisboa, cinco irmãos fazem dos ventiladores do Metro a mesa para o jantar. O mais novo, André (os nomes são fictícios), não gosta do que vê. É massada de peixe e tem “muitas espinhas”. “Não gosto de peixe”, continua a reclamar o miúdo de apenas oito anos, enquanto esconde, subtilmente, a taça forrada a alumínio ao seu lado. Cruza os braços e espera que a irmã mais velha lhe dê autorização para comer a bolacha com recheio de morango, ainda dentro do pacote. “Mas tens de comer. Vais comer o quê? Doces? Se não queres, guarda e come pelo caminho, quando tiveres fome”, insiste com paciência a irmã de 21 anos.
E os outros irmãos lá vão comendo. Miguel, o segundo mais novo, com 12 anos, também não está totalmente convencido, mas, com a ajuda do garfo castanho de plástico, separa o peixe da massa. Entre avisos e conversas, chega uma chamada. “Sim, já estamos aqui”, confirma Pedro, o irmão do meio, de 15 anos. Quando a mãe lhes liga, Pedro está de costas para a rotunda. Foi de lá que vieram antes de pararem para jantar.
Ali, mesmo na rotunda do Saldanha, há uma fila que começa a compor-se todos os dias, ainda antes das sete e meia da tarde, junto à paragem onde passa o 732 da Carris e que todas estas crianças conhecem muito bem — à exceção da irmã mais velha, são todos menores. Quem lá vai não quer apanhar o autocarro. Espera por uma taça de comida, por água, pão e fruta – alimentos que são distribuídos pela associação CASA. Aliás, a essa hora, os voluntários estão ainda a preparar os carros para fazer as quatro voltas diárias de distribuição de refeições pelas ruas da capital.
À medida que o tempo passa, começam a chegar mais e mais pessoas, que se juntam na rotunda, mesmo à frente do edifício da Direção-Geral do Consumidor. E entre o movimento habitual que denuncia um final de tarde normal – carros a apitar, ambulâncias em velocidade e pessoas a caminhar em direção à estação de metro depois do trabalho –, destacam-se, na maioria dos dias, estes cinco irmãos. São um reflexo, ainda que isolado, de uma mudança crescente nas ruas da capital. Patrícia Querido, voluntária e uma das coordenadoras da CASA, não tem dúvidas disso: “O que nós sentimos como voluntários é que o número de refeições não chega. Todas as semanas há pessoas novas na rua”.
Ouça aqui o episódio de “A História do Dia”: “Choro no quarto para não chorar à frente da mãe”
E não é só o barulho que fazem que os denuncia numa fila de histórias adultas. Primeiro, porque são crianças que estão sozinhas e, depois, porque esperam numa fila para receber a refeição que será o seu jantar.
Estão ali praticamente todos os dias. Vêm de Caneças, que já pertence ao concelho de Odivelas, e fazem as viagens também sozinhos, sem adultos — em linha reta são 16 quilómetros. Têm casa, vivem com os pais e com a avó, mas o dinheiro que chega para ter um teto não estica a ponto de comprar comida suficiente para as refeições diárias de oito pessoas.
Assim que chegam ao Saldanha, por volta das oito e um quarto, a fila já está composta, mas os cinco irmãos preferem esperar num dos bancos verdes. Naquele dia, a mais velha vai com os dois mais novos à casa de banho do quiosque que fica mesmo ao lado, enquanto os outros dois ficam sentados. De repente, um deles salta do banco, onde tentava espreitar o telemóvel da irmã mais velha, e corre em direção à fila. “Casa, casa, casa”, grita. Este entusiasmo é dirigido ao carro da associação CASA, que estava ainda à espera da luz verde do semáforo, no outro lado da rotunda. Num movimento automático, todos os irmãos o seguem para se juntarem à fila. Nesta terceira quarta-feira de fevereiro, 33 pessoas esperavam por comida no Saldanha.
“A gente vem dia sim, dia não. Ontem não viemos. Mas depende: se eles saírem muito tarde das aulas, nós já não conseguimos vir aqui”, conta a irmã mais velha, já com a refeição na mão. Dos cinco, os três mais novos andam na escola. André está no segundo ano, Miguel está no quinto e Pedro, que tem 15 anos, frequenta o sétimo ano numa escola profissional.
Normalmente, vêm até ao centro de Lisboa às segundas, quartas e sextas e, nos restantes dias, garantem que não lhes falta comida. “A minha mãe tenta sempre arranjar um prato de comida, ou uma coisa qualquer. Ela pode comer só uma sandes, mas dá-nos sempre um prato de comida. Massa, arroz, por exemplo”, explica a mais velha, que diz estar à procura de trabalho. E Pedro, sempre atento aos dois irmãos mais novos, completa: “Ontem foi massa com atum e sopa de caldo verde, que a mãe fez”.
“Os nossos pais sabem que estamos aqui”
Apesar de estarem sozinhos, todos garantem que os pais sabem. Aliás, a mãe já telefonou a um deles para saber se estavam já a comer. E Pedro não consegue esconder a preocupação da mãe, e a sua também: “Só vimos aqui quando ela pede para vir. Fica muito aflita e muito triste. E nós percebemos. Somos filhos. Eu chego a chorar no meu quarto só para não chorar à frente da minha mãe. As nossas principais dificuldades são comida, porque somos muitos lá em casa”.
Na casa de que falam vivem oito pessoas em três quartos. Os três mais novos dormem num quarto, a irmã de 17 anos dorme com a avó, os pais ficam noutro quarto e a mais velha vai saltitando entre o quarto dos mais novos e o sofá da sala.
Pelas contas de Pedro, vivem todos ali há menos de cinco anos. “Os meus pais tiveram de mudar de casa”, acrescenta. A casa anterior não tinha condições, nem quartos, suficientes para acolher todos. E até conseguirem esta nova casa, só o mais novo vivia com a família. Os restantes passaram parte das suas curtas vidas em instituições e estão todos referenciados pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ).
Antes da pandemia, as dificuldades já eram muitas, mas agravaram-se quando a mãe, que faz limpezas, foi despedida da empresa onde trabalhava, assim que o país entrou no primeiro confinamento. Certo, chega a esta casa o ordenado do pai e a reforma da avó, que dá pouco mais de mil euros, no total. “O dinheiro é todo gasto nas despesas. A minha mãe não fica com dinheiro nenhum para ela. Estamos a pagar 450 euros de renda, mais luz e as outras contas todas. Às vezes o meu pai tem de pedir emprestado ao patrão dele para pagar as nossas coisas”, conta Pedro. E a irmã mais velha acrescenta que o pai recebe o ordenado, ora ao mês, ora à semana, ora de quinze em quinze dias.
E foi então a partir da pandemia que estes irmãos começaram a deslocar-se até ao Saldanha. Souberam que nesta rotunda param várias associações e que, além de comida, podem encontrar também roupa, calçado e alguns enlatados para levar para casa e que são usados quando jantam com os pais e com a avó.
Patrícia Querido conta que estes irmãos estão sempre sozinhos e que já são conhecidos da associação. No ano passado, durante alguns meses, não vieram até ao Saldanha, mas depois voltaram a aparecer.
Vêm sempre que as dificuldades aumentam e o dinheiro não chega para comer. E estas dificuldades obrigam os cinco irmãos a gastar horas em deslocações, que se traduzem na pressa com que comem. “Vamos demorar muito a chegar. As camionetas agora, como são novas, demoram muito mais tempo”, diz Pedro aos irmãos mais novos, para que estes se despachem a terminar a refeição. Costumam chegar a casa já depois da meia noite. O caminho entre o Saldanha e a estação de comboios de Entrecampos é feito a pé. Já nas carruagens, saem em Sete Rios, onde apanham o metro ou vão também a pé até ao centro comercial Colombo. E é aqui que esperam pelo autocarro 1709 que os leva até Caneças. Por fim, a última etapa é feita, mais uma vez, a pé, durante, mais ou menos, meia hora.
“Eu nunca fui pobre”
Os cinco irmãos de Caneças não são os únicos a aparecer sem adultos nestas filas e os voluntários vão encontrando crianças – ainda que poucas – pelas ruas. Numa das habituais voltas da CASA pelo Cais do Sodré, Patrícia Querido já encontrou duas irmãs logo no início da noite, quando a associação fazia ainda uma paragem nas Docas. E não foi há muito tempo. Pelas contas desta voluntária, terá sido em outubro do ano passado.
As duas irmãs, uma com 7 e outra com 12 anos, brincavam na rua, sozinhas, quando o carro da associação estacionou e os voluntários abriram a bagageira, montaram a mesa de metal que trazem sempre consigo para colocar a caixa de bolos e de fruta. “Elas viram a carrinha e foram pedir, mas não foram de propósito à carrinha”, contou Patrícia Querido. Mas, mesmo não estando ali, na rua, à noite, para jantar, não tinham comida em casa.
E foi a mãe, que ainda estava a trabalhar, que explicou a frágil situação em que se encontravam a esta voluntária, através do telemóvel da irmã mais velha. “Foram elas que ligaram à mãe. A mãe ficou cheia de vergonha, porque elas estavam ali a pedir comida. Mas não tinham nada para comer em casa. A mãe disse que não tinha refeição e que tinha bolachas. E não foi a primeira vez”, acrescenta. Sempre que isto acontecia, “comiam pão e bebiam leite para mascarar a fome”.
Também ao telefone, a mãe destas duas crianças disse uma frase que ficou na memória de Patrícia: “Eu nunca fui pobre”. Mostra, de resto, a facilidade com que se cai quando se caminha num muro estreito. Pouco tempo antes de março de 2020, mês em que Portugal deu início ao primeiro confinamento, os pais das duas meninas abriram um restaurante. E aconteceu o inevitável: foram obrigados a fechar portas. As dívidas e a falta de apoio empurraram este casal para um trabalho noutro restaurante, que não era seu, longe de casa. Como trabalhavam até tarde nesse restaurante, as filhas tinham de ficar sozinhas em casa.
Naquela noite, as duas irmãs levaram uma refeição para casa, levaram também iogurtes e ainda voltaram uma segunda vez ao sítio onde pára o carro da CASA para ir buscar um cabaz, roupa e material escolar. Não voltaram lá e, mais recentemente, Patrícia Querido voltou a falar com a mãe, que lhe deu um cenário mais positivo. “Conseguiu mudar a situação, porque chega a casa mais cedo, é o marido que fica até mais tarde no trabalho e disse que o patrão lhes deu uma ajuda.”
E foi também nas Docas, onde o movimento dos bares e restaurantes contrasta com o silêncio das traseiras dos edifícios que servem de cama a dezenas de pessoas, que a mesma associação encontrou, no mês seguinte, em novembro, outras duas irmãs. “Disseram que os pais não tinham comida em casa. Pediram roupa e pediram para levar comida também para os pais”, contou a voluntária.
Uma delas não tinha mais de seis anos e a outra, mais velha, tinha cerca de 14. Viviam em Alcântara, tinham apoio da junta de freguesia e comiam na escola. “Não estavam sujas, nem nada, mas nunca mais as vi”, acrescentou.
Apesar de esta não ser uma realidade expressiva em números, os casos que vão aparecendo são um indicador de que as dificuldades das famílias estão a aumentar e que os mais novos também não escapam à inflação, à subida dos preços dos alimentos ou à crise da habitação. E os números divulgados pelo Eurostat, em outubro do ano passado, ilustram bem a fragilidade de milhares de crianças em Portugal. Em 2021, praticamente uma em cada quatro crianças portuguesas estava em risco de pobreza e exclusão social. Do total de crianças em Portugal, 22,9% estavam incluídas neste grupo e este é o valor mais alto desde 2017.
Eurostat: Quase 1 em cada 4 crianças portuguesas em risco de pobreza e exclusão social
E o relatório sobre pobreza e exclusão social, feito pelo Observatório Nacional de Luta contra a Pobreza traduziu estes números: “Em 2021, residiam em Portugal 388 mil crianças em risco de pobreza e exclusão social, mais 10 mil crianças do que em 2020”.
As outras associações contactadas pelo Observador dizem não ter encontrado nas ruas crianças sozinhas, mas são cada vez mais aquelas que vêm acompanhadas pelos pais. Luís Filipe, da associação Remar, que também distribui refeições por Lisboa, confirma este aumento: “Ultimamente, têm aparecido algumas crianças no Saldanha e também na gare do Oriente. São pessoas que têm casa e as crianças estão acompanhadas pelos pais”.
Este mês de fevereiro, por exemplo, o voluntário notou a presença de caras novas. E bastante jovens. “Nas últimas três semanas é que começámos a perceber que havia crianças menores com os pais”, explicou, acrescentando que, num dos casos, também na rotunda do Saldanha, “estavam dois irmãos com os pais — pediram duas sopas cada um, porque estavam mesmo com fome”. E além da rotunda do Saldanha, que é um ponto central, onde param várias associações que garantem comida a centenas de pessoas todos os dias, também no Martim Moniz começam a aparecer crianças com os pais.
Há zonas em que a maioria das pessoas que pedem refeições têm casa
“Sim? Já não têm refeições?”
A voluntária Patrícia Querido, que coordena as equipas de segunda-feira, fala ao telefone com outro voluntário, que está a fazer a volta do Oriente – onde habitualmente são distribuídas mais refeições. Há um ano, as refeições já não eram suficientes para todas as pessoas que faziam fila nas quatro paragens do Oriente. Agora, há dias em que as taças com comida acabam na primeira paragem, como aconteceu na última segunda-feira, véspera de carnaval.
O número de refeições dadas pela CASA aumentou nos últimos anos. De acordo com os dados enviados ao Observador, esta associação distribuiu 417.796 refeições em 2019 e em 2021, ano em que já se sentiam os efeitos da pandemia, distribuiu 596.220 refeições. “Há mais pedidos de ajuda e um novo tipo de pessoas, diferentes daquele a que estávamos habituados”, explica Nuno Jardim, diretor da CASA. Neste momento, existem mais jovens e mais imigrantes, quer nas ruas, quer a pedir comida.
Muitos chegam aos carros das associações com as mochilas que usam para distribuir refeições a outras pessoas – são trabalhadores da Ubereats ou da Glovo. Levam comida às costas, mas não conseguem comprar uma refeição. Rashid é um desses rostos. Com 28 anos, trocou a Índia por Portugal há cerca de três anos, partilha a rua com o irmão e todos os dias espera pelo carro da CASA para comer, junto ao metro do Cais do Sodré.
“Pagava 300 euros por um quarto, mas agora é tudo muito caro e não consigo pagar. Estou a dormir na rua há poucos meses”, conta, enquanto pede ajuda para encontrar abrigo. Rashid carrega a mochila amarela e verde de entrega de refeições e come a lasanha de legumes em menos de cinco minutos – não pela pressa, mas pela fome.
“Mas há zonas de Lisboa em que a maioria das pessoas não estão em situação de sem abrigo, são pessoas que têm casa, típicas da classe média, mas que deixaram de o ser e, neste momento, estão a pedir ajuda”, acrescentou Nuno Jardim.
Esta associação, além do aumento do número de refeições e de cabazes alimentares distribuídos – crescimento que começou na pandemia e nunca mais diminuiu –, está também a receber chamadas de pessoas que vivem noutros pontos do país e que dão conta da situação insustentável em que se encontram. “Pedem apoio para alojamento, para comida. Nós procuramos depois apoiar os que não são daqui a procurar uma solução no sítio onde moram. ‘Daqui a uns tempos vou ser posto na rua’, ‘não tenho dinheiro para pagar a renda’, ou ‘não tenho dinheiro para comer’”, são alguns dos exemplos.
E não é apenas no Oriente que as refeições acabam antes do fim da volta. A volta do Cais do Sodré também não já chega sempre ao fim. Começa perto do Museu do Oriente, percorre as docas até à estação de metro do Cais, passa pelo Mercado da Ribeira e termina, quando há comida, na Praça da Alegria. Esta segunda-feira, por exemplo, o carro da CASA já não foi até à última paragem.
Junto ao Mercado da Ribeira, enquanto entram neste espaço pessoas para jantar, os dois voluntários da associação pediam desculpa a quem ia chegando à fila. “Desculpa, desculpa, ficámos mesmo agora sem comida [quente]”, lamenta Patrícia Querido, que mostra a quem se deslocou ali o que ainda resta daquele dia: poucas águas, poucos bolos e alguma fruta.