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“Oy u luzi chervona kalyna pochylylasya,
Chohos’ nasha slavna Ukrayina zazurylasya.”
Na nova morada dos Volkogons, ouve-se a canção Oy u luzi chervona kalyna (“No prado há uma kalyna vermelha”) várias vezes ao dia. A versão que toca nesta casa em Ivano-Frankivsk, no sudoeste da Ucrânia, não é a tradicional do folclore ucraniano, mas sim a que foi popularizada por Andriy Khlyvnyuk, cantor da banda ucraniana Boombox que está agora a combater em Kiev, num vídeo divulgado no Instagram.
“No prado há uma kalyna [flor de uma planta típica da Ucrânia] vermelha, está vergada para baixo / Por alguma razão, a nossa gloriosa Ucrânia tem estado tão preocupada”, cantam a plenos pulmões Sasha e Oryana, de sete e dois anos, enquanto pulam de excitação no corredor da casa dos avós. É ali que estão a viver há quase uma semana, depois de os pais, Mykola e Svitlana, terem tomado a decisão de abandonar o apartamento onde viviam em Kiev, perante a maior frequência da queda de bombas. “Nós queríamos ficar em Kiev. Mas quando vi o medo nas caras deles, decidi que tínhamos de sair”, conta agora a mãe, sentada na mesa da cozinha da casa onde cresceu.
Ouça aqui a conversa com Cátia Bruno no episódio de “A História do Dia”.
A decisão foi tomada quase por impulso. Dias antes, quando a guerra rebentou, Mykola estava noutra cidade do país a participar numa conferência para agricultores. Biólogo de formação e investigador de profissão, trabalha agora como consultor agrícola e estava ali para fazer uma apresentação sobre como rentabilizar os solos: “Recordo-me dos power points que levava naquele dia e daqueles conselhos todos para os agricultores e… Parece-me tudo tão irrelevante agora”, partilha.
Agora, a maior preocupação para esta família é a situação do pai de Mykola, atualmente com o filho mais novo em Chernihiv, cidade que está a ser bombardeada e onde pelo menos 47 pessoas já morreram por causa de ataques aéreos russos. Apesar disso, não quer sair. Diz que aquela é a sua casa e que ninguém pode tirá-lo de lá. Mykola compreende, mas preocupa-se. Todos os dias telefona com o coração nas mãos.
Nas várias cidades ucranianas que estão a ser atacadas, todos colocam a si próprios a mesma questão: tentar sair ou ficar?
— “Ela está a perguntar se achamos melhor ficar ou sair.”
— “Ela é que sabe, mas… Eu diria para sair e sair já”, responde Mykola, encostado ao fogão, enquanto se serve de mais uma chávena de chá preto.
— “É uma amiga nossa que está em Kiev”, apressa-se a explicar Svitlana ao Observador, em inglês. “Ninguém sabe o que fazer. As pessoas ligam-me e perguntam se acho melhor sair ou ficar. E eu não sei o que lhes dizer.”
A conversa entre marido e mulher decorre enquanto Oryana dorme a sesta e Sasha está entretido a desenhar na mesa da cozinha. As formas inicialmente confusas que vai rabiscando na folha de papel começam a fazer sentido ao fim de algum tempo. Quatro vagões de comboio, alinhados, divididos a meio por um homem. “É o meu pai”, explica o rapaz. Apesar de a sua cor preferida ser o vermelho, Sasha opta por pintar as roupas de Mykola de verde, como os camuflados militares. A cena não difere muito das de centenas de pais a despedirem-se dos filhos em estações de comboio na Ucrânia, antes de partirem para a frente de batalha, que Sasha tem visto na televisão nos últimos dias.
Na casa dos avós Mykhailo e Maria, onde também vive o tio Oleh, a televisão só é ligada durante o pequeno-almoço, para evitar a overdose mediática. Apesar disso, é impossível escapar à ideia da guerra e nem as crianças são exceção. Quando os Volkogon saíram de Kiev, Sasha e Oryana fizeram muitas perguntas. “Os russos também nos vão atacar a nós?” foi aquela que ficou a ecoar na cabeça da mãe até agora. “Eles ainda estão abalados. Vejo que o Sasha, por exemplo, fica muito tenso quando o pai sai, a tentar perceber para onde ele vai e se vai voltar. E vejo que fica cheio de medo quando as sirenes tocam. Felizmente, não tocam há dois dias”, diz Svitlana, suspirando de alívio.
O pão de Svitlana, decorado com símbolos da Patrulha Pata e de Minecraft
Nessa noite, as sirenes voltarão a tocar. Mas, por enquanto, são quatro da tarde e a luz do dia que entra pela janela ainda não é prenúncio dos terrores da noite. Sasha largou os lápis de cor e faz agora aviões de papel com as folhas. Atira uma contra a janela da cozinha, levando de imediato uma reprimenda. Rapidamente contra-ataca: “Queria enviar um para as pessoas que estão na rua, dar-lhes uma coisa boa”, diz à mãe, que fica enternecida. “Ó Sasha, sabes que isso não é possível…”
Não é, da mesma forma que já não é possível Sasha levar todos os dias para a escola o pão que a mãe faz em casa e que abastece agora toda a comunidade escolar. Svitlana foi advogada, mas hoje em dia dedica-se a tempo inteiro aos filhos. Nos momentos livres, começou a fazer pão caseiro e a aperfeiçoar receitas. Já o faz de forma tão profissional que, na crosta, faz desenhos como flores típicas da Ucrânia, o símbolo da Patrulha Pata ou até bonecos de Minecraft — o jogo que os filhos adoram. “A Oryana farta-se de chorar a dizer que também quer ser ela a levar o pão para a escola, então no outro dia fizemos-lhe a vontade. Ficou tão feliz”, conta.
Como uma atriz à espera da sua deixa, Oryana acorda nesse preciso momento. Svitlana levanta-se para ir buscá-la à sala, agora transformada em quarto para o casal e os dois filhos. Volta para a cozinha com a criança ao colo, ensonada, com vergonha. Nem os elogios ao seu pijama de unicórnios a fazem despertar da rabugice que ainda traz do sofá-cama, agora coberto com uma colcha azul. Mas não demora muito até que Oryana desperte e se junte às brincadeiras de Sasha. Dali a pouco, estará a fazer corridas de trotinete no corredor, a dançar a Oy u luzi chervona kalyna (“E nós, a nossa gloriosa Ucrânia, iremos animar-nos e alegrarmo-nos”) e a chamar o gordo e pachorrento gato Ice — que também veio de Kiev —, cantando o hit “Ice Ice Baby”.
Passa agora pouco das 17h30 e Svitlana e Mykola decidem levar o Observador a dar uma volta pelo centro da cidade de Ivano-Frankivsk. As baixas temperaturas e o sol quase a pôr-se não convidam ao passeio, mas a hospitalidade impõe-se — e sente-se que o casal também aprecia o momento fora de quatro paredes, em que podem falar mais à vontade sobre a guerra sem os filhos, assustados, a ouvir por perto.
O centro desta cidade com cerca de 200 mil habitantes está agora deserto. “Foi a primeira coisa que notei quando chegámos na quarta-feira: pela primeira vez na vida, não tive problemas em encontrar um lugar para estacionar aqui”, comenta Mykola. Na primeira noite da guerra, o aeroporto da cidade foi bombardeado, levando muitos habitantes a partir assustados, em direção à Polónia, de imediato. Restou uma cidade quase fantasma, onde se erguem barricadas e se organizam alguns esforços de voluntariado. Mykola tem tentado ocupar algum do tempo desde que chegou a Ivano-Frankivsk ajudando nesses mesmos esforços. É agora voluntário da Cáritas, todos os dias descarrega os camiões que chegam da Europa com ajuda humanitária e volta a carregar outros que partem para Kiev, Kherson e Chernihiv — onde está o seu pai.
Svitlana vai praticando outras formas de ativismo: “Ela foi banida de alguns grupos de Telegram russos, depois de ter entrado lá para partilhar notícias sobre o que se está a passar na Ucrânia”, conta o marido, rindo-se. E o casal acredita que isso pode resultar? Svitlana acha que não há esforços em vão, Mykola é mais cético. “Tirei um MBA há uns três e anos e, na altura, um dos trabalhos que tive de fazer foi tentar identificar alguns dos valores centrais de todos os países do mundo. Na maioria consegui. Mas, no caso da Rússia, não consegui identificar nada: é uma zona cinzenta para mim, não compreendo o que os move.”
Em frente ao edifício da Câmara Municipal, a visão de vários civis armados faz Mykola recordar-se de uma conversa que teve recentemente com um amigo norte-americano: “Ele disse que eu devia arranjar uma espingarda Winchester e que nem ia precisar de a disparar. ‘Quando se ouve o som de alguém a montar uma Winchester, uma pessoa normal foge de imediato. Se é alguém que não foge, é porque é alguém que deve ser abatido. Portanto, só por montar a arma obtém-se muita informação sobre quem está do outro lado’”. O ucraniano considera a ideia “interessante”, mas isso não o fez comprar uma arma. “Não saberia usá-la, sou apenas um biólogo. E acho que neste momento elas são mais úteis para quem as sabe usar”, conclui, com os ombros encolhidos não apenas pelo frio.
Bandera, tryzub e um prato de 1937 numa casa ucraniana, com certeza
O relógio de uma das três principais igrejas de Ivano-Frankivsk — ortodoxa, greco-católica e católica — dá as 19h e é altura de regressar. Aqui, janta-se cedo, não apenas por hábito cultural. Às 22h, todas as luzes da cidade têm de ser apagadas, como medida de segurança para a noite, altura em que ocorre a maioria dos ataques aéreos. O presidente da Câmara avisou mesmo que a eletricidade será cortada aos cidadãos que não o fizerem.
Na casa dos pais de Svitlana, Sasha e Oryana já jantaram. Para os adultos, há canja que sobrou do dia anterior, para aquecer o estômago, mas não só. A conversa vai fluindo, à medida que vão sendo colocados na mesa uma série de petiscos: o peixe marinado do avô Mykhailo, a adjika (molho feito com pimentos vermelhos e especiarias) de Maria, holubtsi (couve recheada com carne e arroz), salo (uma espécie de toucinho), salmão fumado e manteiga à temperatura ambiente, tudo acompanhado pelo pão caseiro de Svitlana.
“Na Ucrânia ocidental, a hospitalidade é levada muito a sério. Costuma exigir-se aos convidados que comam não apenas tudo o que têm no prato, mas também tudo o que está em cima da mesa”, avisa Mykola. O irmão Oleh lança um desafio aos convidados: “Que idade dão a este jovem tão em forma?”, pergunta, apontando para o avô Mykhailo. Perante a sugestão de 65 anos, a mesa reage em uníssono numa gargalhada, acompanhada pelo ar desapontado de Mykhailo. Tem 64, mas os desconhecidos costumam achar que tem menos.
Nada que demova o bom-humor deste avô, que parece investido em entreter a família. Mostra aos convidados todos os símbolos nacionalistas que tem em casa, típicos de uma casa no oeste da Ucrânia. O símbolo nacional da Ucrânia, o tryzub, feito em madeira, está por cima da porta da cozinha — e também ao seu peito, num pingente dourado esculpido por si. ”E Bandera, claro!”, acrescenta, num grito entusiástico, referindo-se ao polémico herói nacionalista e apontando para um prato pendurado na parede em frente à mesa, arrumado entre outros trazidos como souvenirs de locais tão distantes como Berlim, Hollywood ou Istambul.
Maria já o tinha destacado à tarde, em conversa com o Observador, o que a fez ir buscar uma relíquia de família a um armário alto da cozinha: “Este prato é de 1937, sobreviveu à II Guerra Mundial”, contara, segurando com cuidado na loiça branca já lascada. Pouco depois, Mykhailo — um auto-denonimado “verdadeiro cossaco” — havia irrompido pelo corredor adentro, em tronco nu, para mostrar o cinto de cabedal feito por si que trazia à cintura. Era um cheres tipicamente Hutsul, o grupo étnico de que Mykhailo descende, bem como o bartka (machado adornado com pedras) que retirou de um cabide para mostrar.
Ao jantar, entre uma fatia de salo e uma garfada de holubtsi, Mykhailo continua a sua empreitada de comprovar que o nacionalismo ucraniano está vivo naquela casa. “Taras Schevchenko!”, grita, enunciando o nome do escritor mais famoso do país e apontando para um dos livros do autor, que está atrás da mesa. “É uma inspiração para o meu bigode”, acrescenta, colocando ao lado do rosto a capa do livro, que tem uma ilustração de Schevchenko com um bigode farfalhudo — mas ainda assim mais comedido do que o de Mykhailo. Uma gargalhada geral volta a estalar à mesa.
“Slava Ukraini! Amo-vos muito” antes de deitar
À medida que a refeição se encaminha para o fim e se começam a levantar os pratos, porém, o tom das conversas vai baixando de volume. Aproximam-se as 22h e não tarda que as luzes tenham de ser apagadas. Oleh parte entretanto, para ir dormir a casa da namorada. Sasha e Oryana são chamados novamente para a cozinha, onde vão comer um pouco de papa antes de dormir, dada pela avó. Svitlana abre o computador para ver uma receita de pão com sementes de linho e de sésamo: “Vou fazer agora, para termos pão fresco amanhã”, anuncia.
Chegadas as 22h em ponto, Mykhailo e Mykola começam a apagar todas as luzes do teto. Ficam apenas ligados candeeiros mais pequenos, com o foco de luz abafado por tiras de papel. Na cozinha, Svitlana vai trabalhando o pão apenas com as luzes da bancada e do forno. Interrompe a tarefa apenas para ir ajudar Sasha e Oryana a lavarem os dentes antes de deitar. “Vá lá, Sasha, não faças parvoíces”, pede ao filho, enquanto este faz caretas ao espelho.
Svitlana interrompe a tarefa para olhar para o Apple Watch que traz ao pulso e consultar uma notificação: “Sirene, sirene, sirene”, avisa, levantando o tom de voz e empurrando apressadamente os filhos para o corredor — a zona mais segura desta casa que não tem abrigo subterrâneo, longe de qualquer janela. Todos se juntam naqueles poucos metros quadrados A normalidade e boa disposição do jantar, que fizeram todos esquecer por momentos a guerra, são quebradas instantaneamente. Svetlana cerra os maxilares, Mykola olha para o teto em desespero. Sasha tenta voltar à casa-de-banho para continuar a lavar os dentes e ouve de imediato os gritos da mãe, para que não se atreva a sair do lugar em que está. Ele obedece.
Dez minutos depois, Svitlana volta a consultar o relógio e diz a todos que podem respirar de alívio. Os ombros relaxam e ouvem-se alguns suspiros. Mykola ousa falar: “É por isto que pedimos a no fly zone. Porque podemos matar cada cabrão de um russo que nos apareça à frente, mas contra os mísseis não podemos fazer nada”, declara.
A família tenta retomar as últimas tarefas antes de ir dormir. Mykhailo regressa ao computador e Svitlana vai colocar a massa do pão num recipiente tapado com película aderente para levedar durante a noite. Mas o feitiço foi quebrado pela sirene: já ninguém consegue voltar a esquecer-se de que há uma guerra na Ucrânia. Para serenar os ânimos e tentar que as crianças tenham uma noite mais tranquila, a família reúne-se na sala para cumprir o ritual que criaram nestes dias. De joelhos à volta da colcha azul que tapa o sofá-cama onde os Volkogon dormem agora, avós, pais e netos colocam as mãos umas por cima das outras. Oryana, entusiasmada, espera para ser a última a colocar a mão, por cima da do irmão. “Slava Ukraini! Amo-vos muito”, repetem todos, em uníssono. Depois, baixam as cabeças e rezam um Pai-Nosso.
A manhã romperá com os gritos entusiasmados de Sasha e Oryana, já esquecidos da tensão da noite anterior. Após uma sessão de ginástica matinal, dada pela mãe Svitlana, regressam às corridas de trotinete no corredor. Em cima da cama, Sasha — que em Kiev tinha aulas de teatro — protagoniza um espetáculo de dança ao som de A Sky Full of Stars, dos Coldplay, enquanto Oryana simula que está a tocar piano. A mãe sorri ao vê-los distraídos. “É bom vê-los divertidos”, confessa. Durante esses momentos, não fazem perguntas sobre quando poderão voltar a ver os colegas de escola ou as professoras. O que lhes responde Svitlana quando perguntam isso? “Digo a verdade. Uma versão light da verdade, é claro. Mas a verdade.”
Sasha e Oryana ainda não perguntaram aos pais quanto tempo vão ficar em casa dos avós — e eles agradecem, porque não sabem ainda o que responder. O plano da família é que Svitlana parta com os filhos para a Alemanha, onde vive a irmã de Mykola. Todos os dias ela manda mensagens a insistir para que venham. Todos os dias Mykola pergunta a Svitlana se parte no dia seguinte. Todos os dias a ucraniana responde que não, que ainda não se sente preparada.
“É uma decisão muito difícil”, confessa ao Observador. Os pratos do pequeno-almoço — papas de aveia, ovos mexidos e ovos de codorniz — já foram lavados e Svitlana está agora sentada à mesa, sem nada para fazer a não ser pensar em voz alta. “Não vou ter nada para fazer na Alemanha a não ser preocupar-me. Preocupar-me com o Mykola, com os meus pais, com o pai dele”, sussurra. Gostava de poder continuar a rezar o Pai-Nosso em família, todas as noites. Mas tem pouca fé de que a guerra acabe em breve. Antes da despedida, partilha um último desejo: “Só espero que nos deixem ficar com a nossa terra. Toda.” Atrás dela, colado na porta da cozinha, está um pequeno cartaz laranja com poucas palavras — mais um dos símbolos nacionalistas arranjados por Mykhailo: “Aqui, a liberdade não volta para trás”, pode ler-se em ucraniano.