Os copos de plástico reutilizáveis causaram estranheza ao princípio: quem queria ser obrigado a pagar uma caução para poder beber um copo num festival de verão? A implementação desta alternativa aos copos descartáveis foi apresentada com um propósito: sustentabilidade. Anos depois, a mudança é visível: os recintos destes eventos estão mais limpos. Mas será, de facto, uma opção mais sustentável?
A ideia, que muitos antecipavam como pouco duradoura, por implicar uma mudança de hábitos e um custo acrescido para o consumidor, tinha por base um pressuposto: o valor imposto do copo era reembolsado aquando da devolução do mesmo. Mas, em 2023, os principais festivais de música do país não permitem a devolução dos copos comprados. Do Primavera Sound Porto ao Vodafone Paredes de Coura, passando pelo NOS Alive ou o Super Bock Super Rock, todos cobram um euro por copo sem a possibilidade de reembolso. Ambientalistas dizem que o propósito ambiental pode estar comprometido.
Aquando da sua implementação, a logística de copos reutilizáveis implicava a devolução da caução. Assim era em 2016, por exemplo, no Super Bock Super Rock, ou no NOS Primavera Sound, dos primeiros festivais de música a trocar os descartáveis pela opção dita ecológica. A devolução do valor — na época, dois euros — levava a que até quando alguns copos fossem abandonados no recinto existisse alguém que os recolhia, recebendo assim o valor da caução.
E assim se pôs termo ao típico postal de fim de festa, uma enchente de copos plásticos no chão do recinto vazio. No caminho, os copos tornavam-se poderosas ferramentas de marketing, enquanto suporte de comunicação de um festival ou respetivo patrocinador, assumindo o estatuto de brinde ou recordação. Se há algo que une todos os copos reutilizáveis é que todos têm um logótipo, seja da marca de cervejas patrocinadora ou do próprio evento.
Mais sustentáveis? Ambientalistas têm dúvidas
“Do ponto de vista ambiental temos dúvidas que [os copos reutilizáveis] sejam melhores do que os de antes”, diz Susana Fonseca, vice-presidente da direção da associação ambientalista Zero. “Um produto reutilizável obriga a mais material, normalmente mais grosso, e isso aumenta o impacto. Precisamos de um mínimo de rotações para que o impacto seja amortizado e que seja vantajoso face ao descartável.”
Mariana Milagaia, engenheira de energia e ambiente da Quercus – Organização Não Governamental de Ambiente (ONGA), aponta que “estudos de análise da pegada de carbono estimam que, para que copos de plástico reutilizáveis feitos em PP (polypropylene), geralmente o tipo de plástico utilizado para os copos dos festivais, se tornem mais sustentáveis que os descartáveis, o número médio de utilizações tem de ser superior ao intervalo de 20 a 50 utilizações”. Muito mais do que os dois, três ou quatro dias de duração de um festival de verão.
“Ainda assim, consideramos que a melhor abordagem é usar copos reutilizáveis, mais resistentes, que possibilitem maior número de usos, evitando a produção de mais plástico”, frisa Milagaia, sublinhando a importância dos passos seguintes. “A recuperação e lavagem dos copos é já uma prática em alguns países e é sem dúvida uma boa forma de manter os copos em circulação, em vez de se produzirem novos”, sugere. “O ideal é que as empresas passem a depender menos da produção de materiais para gerar valor, apostando em serviços, como por exemplo, neste caso criando um serviço de lavagem eficiente dos copos para utilização posterior”, como de resto acontece atualmente no Estádio da Luz, em Lisboa, ou no Estádio do Dragão, no Porto.
Ao Observador, a Música no Coração, que organiza Super Bock Super Rock, justifica a mudança de política do evento, deixando de permitir a devolução da caução dos copos, com “a logística de toda a operação de recolha e limpeza dos copos, bem como a pequena percentagem dos copos devolvidos em edições passadas” e destacam a “possibilidade de entrada de copos de outros eventos nos nossos festivais, indo ao encontro do que realmente se pretende: o combate ao uso de plástico descartável e fomentar a reutilização, contribuindo assim de forma efetiva para a diminuição da produção de plástico”.
Quanto ao Primavera Sound Porto, “a devolução da caução deixou de existir pois, infelizmente, nasceu um negócio em paralelo, isto é, as pessoas encontravam os copos ou retiravam-nos a outros e depois faziam a sua devolução”, esclarece a organização Pic-Nic Produções, numa resposta por e-mail ao Observador. “Com isto, ganhavam dinheiro com algo que não lhes pertencia e que efetivamente não tinham adquirido”, continuam. E vão mais longe: “Apesar de o público comprar o copo não podemos afirmar que seja uma venda, visto que por de trás de tudo isto existe uma enorme logística associada à lavagem e à sua reposição, o que implica custos”.
“Já há bastante tempo que criticamos essa prática de não permitirem a devolução dos copos. O que defendemos é que haja legislação que proíba esse tipo de prática”, diz Susana Fonseca. Segundo a porta-voz da Zero, a associação está a “preparar uma proposta nesse sentido”.
Por enquanto, não existe nenhuma lei que obrigue a organização de um evento a devolver a caução. Se a organização informar os consumidores de que está a vender os copos e o respetivo valor, então nesse caso não é obrigada a aceitá-los de volta.
Em Espanha, os festivais, concertos e eventos desportivos já são obrigados a devolver a caução dos copos reutilizáveis. A lei, aprovada em março do ano passado e que entrou em vigor este ano, implica também que os eventos tenham postos de água potável gratuita — algo que festivais portugueses como o Tremor, nos Açores, ou o Neopop, em Viana do Castelo, já fazem.
É certo que os recintos dos festivais nos últimos anos ficaram mais limpos de copos, mas os armários lá de casa encheram-se de copos reutilizáveis. “Esses copos não devem ter a menção e eventos a datas, exatamente para permitir a rotação”, defende a ambientalista. Até porque “se não tiver a indicação da edição, o colecionismo de copos acaba aí.”
“A não ser que a grande maioria das pessoas utilize os copos noutros eventos evitando adquirir mais, o que não é uma realidade, obrigar o utilizador a ficar com o copo acaba por ser uma desvantagem, ambientalmente falando”, defende Mariana, da Quercus. Até à data, não há dados sobre o número de pessoas que leva o próprio copo para cada um destes eventos.
“Permitir a devolução do copo é uma forma de garantir que este é devidamente encaminhado”, frisa. “Para Além disso tem o efeito de incentivar a reutilização do mesmo, por ter um valor recuperável e na maioria das situações garante que não existem copos perdidos.”
Grande parte dos festivais de música em Portugal permite a entrada de copos de plástico nos recintos, ainda que isso nem sempre seja explícito nas páginas e veículos de comunicação oficiais. Há exceções, como o Super Bock Super Rock, que o publicita. “Todos os copos reutilizáveis são bem-vindos. Se tens um copo aferido a 25cl ou 50cl, os nossos pares estão à espera dele”, lê-se num post de Instagram do festival no Meco.
Da solidariedade ao “negócio” dos copos
“O copo não pode ser um negócio”, dizia Álvaro Covões, diretor do NOS Alive, citado pelo Jornal de Notícias, em 2019. “Temos assistido a medidas ambientais que em vez de o serem, transformam-se num negócio”, acusava então.
Foi nesse mesmo ano que o NOS Alive resolveu juntar uma vertente solidária ao processo. O dinheiro que seria entregue pela Sagres ao festival, resultante da devolução dos copos, foi doado a duas instituições de solidariedade social: a Mansarda, destinada a apoiar artistas, e a Brigada do Mar, que trabalha na limpeza de lixo das praias.
“Se as pessoas devolvessem o copo para depósito, o dinheiro [um euro] era entregue às instituições”, dizia então ao Diário de Notícias o diretor do festival. “O objetivo é que as pessoas que compram o copo possam levá-lo para utilizações futuras. Mas não sabemos se lhe vão dar essa utilização. Assim, tentamos incentivar quem não quer levar o copo, doando o dinheiro a instituições de solidariedade social”, explicava.
No ano passado, a iniciativa, em parceria com a marca de cervejas oficial do evento (já a Heineken), voltou a contemplar as mesmas associações, juntando-se a IPSS Casa do Artista. Na edição deste ano, “no final do evento os copos devolvidos são convertidos em valor de donativo para a Organização Não Governamental para o Desenvolvimento, Brigada do Mar, para a instituição Apoiarte – Casa do Artista e para a Associação de Paralisia Cerebral de Lisboa, em específico para o Centro Nuno Belmar da Costa, em Oeiras”, lê-se no comunicado da cervejeira holandesa, citado pelo Dinheiro Vivo. No total foram “28.000 copos recolhidos, um aumento de 42% face ao verificado na edição anterior, que contou com mais um dia de festival”, revela o site da Marketeer.
O Observador tentou que a Everything is New, que organiza o NOS Alive, esclarecesse a escolha das associações, bem como o valor dos donativos, mas a promotora de Álvaro Covões mostrou-se indisponível nos sucessivos contactos.
Mariana Milagaia, da Quercus, não tem dúvida que os copos de plástico reutilizáveis se tornaram um negócio. “Se assim não fosse quem iria produzi-los? Quer a venda como a oferta de copos reutilizáveis de plástico em eventos tornou-se uma oportunidade de negócio para empresas trazendo vantagens económicas ou de imagem atraindo consumidores que valorizam o compromisso ambiental”, crê. “Os produtores deixaram de produzir tantos descartáveis, mas continuaram a produzir outros, mantendo a produção de alguma forma.”