Quando, em 1950, João Gaspar Simões publicou a sua biografia de Fernando Pessoa ainda não se estampavam t-shirts com caricaturas do poeta, não havia conúbio post-mortem na sua cama, universidades com o seu nome, ainda o seu colo empedernido não aninhava turistas e do famoso baú ainda não se conhecia a imensa coleção de mascaradas.
O “drama em gente” tornou-se um drama em multidão, tanto aquela que Pessoa albergava como a que o aplaudia, pelo que se tornava cada vez mais necessária a presença de um condutor das massas. Gaspar Simões, que não conhecera o Livro do Desassossego nem muitos dos heterónimos ia-se afogando entre o barulho pessoano, e a obra e os estudos de Pessoa clamavam por uma nova voz organizadora, capaz de pôr ordem na arca.
Eis que aparece Richard Zenith; faz orelhas moucas às discussões políticas e ideológicas sobre a obra de Pessoa, não se deixa atemorizar pela confusão de personalidades e atira-se ao arquivo seguindo a máxima cartesiana: se um problema é complexo, divide-se em partes mais simples. Aponta novos heterónimos, distribui os textos por quem de direito, descreve personalidades e põe a vozearia pessoana a cantar afinada, num complexo coro de várias vozes.
É difícil ter noção da importância do trabalho de Zenith com a obra de Pessoa; uma das maneiras mais fáceis de a notar, contudo, passa por esta biografia e pela sensação de que ela não era completamente necessária. É claro que é bom ter a informação biográfica de Pessoa reunida num só volume, e que não deslustra a imagem do nosso maior poeta contemporâneo a existência de uma biografia de dimensões bíblicas. A sensação que se tem ao lê-la, contudo, é a de que não há aqui nenhuma descoberta verdadeiramente importante. É claro que Zenith tem informação nova, que há cartas que mais ninguém tinha lido ainda, pormenores sobre a família que não eram conhecidos; no entanto, o efeito ordenador que uma biografia costuma ter sobre a imagem de um poeta, a demonstração de uma coerência ou de grandes períodos criativos, não aparece propriamente nesta biografia. Isto não se deve a um mau trabalho de Zenith — deve-se ao bom trabalho anterior. O acesso que temos hoje à obra de Fernando Pessoa dá-nos uma imagem da sua personalidade fragmentada e uma consciência do jogo de estilos e personalidades que se devem, em grande parte, ao esforço organizador de Zenith. Se esta biografia não nos desse mais nada, dava-nos a consciência da importância do trabalho editorial que, nos últimos anos, foi feito em torno de Pessoa.
Não há nenhum leitor interessado em Pessoa que não conheça a questão da heteronímia e não saiba até que ponto esta fragmentação foi explorada por Pessoa; não há ninguém que não tenha consciência das contradições do poeta e que não saiba que o poeta também tinha consciência delas. Aquilo que Zenith tem para nos dizer sobre Pessoa parece pouco, no muito da muita informação que nos traz, porque já no-lo disse da maneira mais generosa possível: ao fazer parecer que, na leitura de Pessoa, éramos nós que o descobríamos, como se a organização dos trabalhos do poeta não influenciasse a leitura que fazemos dele.
Esta biografia não foi escrita para o público português. Isso nota-se no modo como é exposto o contexto histórico, talvez um pouco básico para o leitor português, familiarizado com a vida política da I República ou do Estado Novo. Há um travo pedagógico no livro que, para lá daqueles assuntos em que parece despropositado para um português, tem as suas virtudes e os seus defeitos.
É bom, por um lado, porque se tornará, com certeza, um utilíssimo instrumento de trabalho. Zenith esforçou-se por ser, em certa medida, “generalista”. Isto é, a sua biografia de Pessoa não tem propriamente tese. É uma coleção de factos bem ordenados, sem grandes voos interpretativos, mais concentrada em apresentar todas as minudências sobre a vida de Pessoa do que em mostrar uma caudalosa veia hermenêutica. Quer isto dizer que qualquer pessoano futuro poderá colher daqui informação para as suas teses: Zenith não escolheu informação, preferiu deixar a porta aberta para qualquer um poder servir-se a trazer uma chave de leitura muito sofisticada.
E se isto será útil para estudos vindouros, tem também o reverso da medalha. Parece paradoxal olhar para esta biografia, tão organizada, tão informada, com um ar tão claro de conclusão de um trabalho de anos, como uma obra inacabada. Mas a verdade é que a grande utilidade desta biografia parece ser, precisamente por causa das suas qualidades, aquilo que ela não fez. A partir daqui podem surgir muitos olhares novos sobre Pessoa. Haverá quem retire de minudências biográficas significados complexos e quem corrobore teses com o conhecimento que Zenith tem das leituras de Pessoa ou das suas relações afetivas. Não foi esse o trabalho, contudo, que Zenith fez. A sua biografia, tão pedagógica em certos aspectos, tão voltada para o grande público, parece por outro lado não se lhe destinar precisamente por isto. Todas as grandes biografias têm alguma coisa a dizer. Esta, contudo, parece escusar-se a isso. Dá-nos o suficiente para que possamos dizer muita coisa sobre Pessoa; Zenith, no entanto, não parece ter muito a dizer sobre ele.
A biografia de Gaspar Simões, tão criticada e tão louvada ao longo dos anos, tinha pelo menos esta qualidade. Podíamos não concordar com a leitura psicanalítica que o crítico fez de Pessoa, podemos até saber que o próprio Pessoa desconsiderava a interpretação de Gaspar Simões; no entanto, é uma biografia que resiste ao tempo, mesmo que entretanto já se saiba muito mais sobre a vida de Pessoa, já se conheçam textos — alguns até dos mais importantes – que alteram obrigatoriamente a imagem do poeta e que a psicanálise já não esteja na moda. A ideia de ver o desdobramento heteronímico como um sintoma de uma personalidade mal integrada, de perceber o drama de Pessoa ortónimo como o da personalidade com consciência dessa incapacidade de integração, tem obviamente uma força poderosa que dá unidade ao livro.
Não estamos, com isto, a defender a necessidade de uma interpretação “original” só porque sim; é claro que as interpretações só têm utilidade na sua relação com a verdade dos textos. Isto é, de nada nos serviria uma interpretação psicanalítica de Fernando Pessoa se esta não aprofundasse os textos, se não nos desse uma maior consciência da complexidade pessoana mediante a leitura.
O que acontece com esta biografia de Zenith é, então, uma espécie de contenção no papel do intérprete que tira alguma força ao livro. É interessante saber muito sobre a vida de Pessoa? Certamente, mas no capítulo da curiosidade. A força maior de um livro destes passa por aquilo que pode dar à leitura de Pessoa. Ora, Zenith não parece querer dar muito. Contém-se, numa atitude que terá certamente os seus adeptos, que não quer ser parcial e que é também, em certa medida, generosa. Poderá gerar bons livros futuros sobre Fernando Pessoa, escorados em informação organizada por Zenith. Não deixa, contudo, de retirar alguma força ao seu livro.
A haver alguma “tese” na biografia de Richard Zenith ela passará, timidamente, pela noção de que aquilo que faz de Pessoa uma figura literária importante é a sua fragmentação. Não propriamente o desdobramento heteronómico, porque desse podemos encontrar antecedentes literários noutros autores, como (com uma série de diferenças impossíveis de elencar aqui) Kierkegaard; a grande obra de Pessoa passaria pela tentativa de manter sempre a sua obra fragmentada, contraditória, até, numa espécie de corpus no sentido medieval do termo (uma obra em remissão constante para si própria, fazendo uso de conceitos explicados noutros lugares), embora com uma diferença fundamental: a subsidiariedade desta obra não assentaria, no fim, sobre uma tese fundamental ou sobre uma qualquer ideia de verdade. Seria a própria fragmentação, a ideia de um “eu” plural o sustento de todas as vozes.
Nisto Zenith é, realmente, diferente de alguns dos principais autores que se dedicaram à ideia de alteridade em Pessoa, como Jacinto do Prado Coelho ou Pierre Hourcade. Hourcade é especialmente engenhoso porque associa a heteronímia (ou aquilo que ele podia conhecer da heteronímia) à sucessão de movimentos — paulismo, intersecionismo, futurismo — que caracterizam o modernismo português. Isto é, o que estaria em causa para Hourcade, mais do que uma ideia de alteridade, seria uma ideia de movimento, de uma obra em evolução constante, que ilustraria por isso mesmo a ideia de movimento.
Com Zenith, contudo, aquilo que temos é um esforço de manter sempre a alteridade fora de uma corrente agregadora ou de uma ideia interpretativa principal, que unificaria a conceção artística de Pessoa. A ideia, de uma forma redutora, é a de que não há bem ideia, de que é preciso um esforço para resistir à tentação unificadora e que a personalidade e o jogo literário de Pessoa se concentram nessa resistência às prisões do sentido. Também isto, contudo, mostra como a utilidade do trabalho anterior e Zenith prejudica este trabalho biográfico. Se a fragmentação é o grande valor pessoano, a edição das suas obras é, de facto, o grande trabalho: é o único modo de as apresentar simultaneamente, sem precedências de umas sobre outras, de tal modo que se possam contradizer constantemente diante do leitor. Mas se é este, de facto, o grande valor, então a sua biografia também tem pouco interesse num mundo tão artificialmente construído, tão autoconsciente das limitações do eu, num esforço tão claro para se libertar do “empirismo organizador” que qualquer vida constitui.
Sejamos claros: é impossível um trabalho desta dimensão, de um estudioso tão conhecedor e tão arguto, não ter uma importância desmedida. É claro que tem: há uma importância social óbvia na existência de uma biografia de Pessoa deste género, por tudo o que trará para a divulgação da obra de Pessoa e da sua figura, pelo interesse que suscitará, pelos comentários e até pela projeção internacional do poeta. É também importante o trabalho organizador que uma biografia destas comporta, embora, como já o dissemos, Zenith já tivesse feito muito desse trabalho organizador. Mas se encararmos uma biografia como mais do que um apêndice ao biografado, se encararmos o trabalho também ele como “obra”, então esta completíssima biografia poderia dar um pouco mais.