Índice
Índice
Vinícius de Moraes costumava dizer que era o branco mais preto do Brasil, frase que, aliás, está gravada na canção de reverência que é “Samba da Bênção”. Desconfiamos que, nessa linhagem, Rogê tem tudo para ser o segundo branco mais preto da pátria do Ipiranga.
Curyman representa os atabaques do candomblé, o sambalanço de Jorge Ben, o esquenta sovaco de Tim Maia, a Mama África de Chico César e a bola no pé que Rogê canta em “Meu Brasil”, canção do magnífico disco anterior gravado em formato acústico com Seu Jorge, em 2020 (Night Dreamer Direct-To-Disc Sessions). É o Brasil em toda a sua diversidade e riqueza, o que faz deste Curyman uma pérola vinda diretamente do país tropical.
Em boa verdade, não é de todo correto dizermos “diretamente”, dado que Rogê, carioca dos pés à cabeça, amante de futebol e rubro-negro de coração (como Simonal, Ben Jor, João Bosco e tantos outros que professam a religião flamenguista), mora há quatro anos em Los Angeles. “Este é um lugar que me abraçou e quanto mais me conheço, mais me sinto à vontade aqui”, declara de coração escancarado para a câmara, que nos une nesta entrevista transatlântica. “Agora, o Rio é o meu lugar.”
[ouça o álbum “Rogê” na íntegra através do Spotify:]
É-o como o é Angola, Guiné, Congo, o Reino de Daomé, o Mali e todas as nações africanas que desaguaram na Baía e em “Retumbar do Meu Tambor”, quinta canção do álbum. Como diz o próprio Rogê, “quando eu me conecto com os meus orixás, ninguém me pode vencer”. Em Curyman essa força sente-se da primeira à última faixa. Todas as divindades estão ali presentes.
Nos States foi onde o Cury se tornou mais brasileiro
É até bem irónico que as coisas se tenham passado desta forma. Com mais de 20 anos de carreira, seis álbuns de originais, outros ao vivo e em parceria, Rogê precisou de sair do Brasil para fazer o seu álbum mais brasileiro de sempre. “É quase um cliché, reconheço isso, mas às vezes temos que sair para nos enxergarmos. Eu aqui sinto a responsabilidade de representar a cultura brasileira”.
Em Los Angeles, terra onde ninguém consegue pronunciar o seu nome (ao ponto de Rogê ter tido a necessidade de ir buscar o sobrenome Cury para se apresentar – “aí ficou Curyman”), o músico conheceu o apoio que nunca antes sentira no Brasil. “Não falo com mágoa, mas eu encontrei um grupo de pessoas que realmente acreditou no meu trabalho como nunca encontrei no meu próprio país.”
A liderar o grupo estava Thomas Brenneck, músico da formação Sharon Jones & The Dap-Kings, que já colaborou com nomes como Amy Winehouse, Lady Gaga, Beyoncé e Jay-Z e que produziu os álbuns de Charles Bradley. Thomas é também o fundador da editora Diamond West, cujo primeiro trabalho a ser apresentado é precisamente Curyman. “Ele sabe muito das coisas”, reconhece Rogê, tanto que foi Thomas que o incentivou a se atirar para o disco.
Os dois conheceram-se através de um amigo comum, durante a pandemia. Rogê foi até aos estúdios de Thomas para gravar com a compositora e interprete americana Molly Lewis. “Ela queria fazer uma coisa mais brasileira e eu cheguei à sessão e meio que comandei aquilo. O Thomas ficou muito interessado e desafiou-me a fazer um disco logo no mês seguinte. Eu disse que estava pronto, mas nem sabia se estava”, conta. Vendo bem a situação, não havia outra resposta a dar: “Foi uma oportunidade que pintou”. Como muitas coisas boas que acontecem na vida, esta apareceu sem aviso. Era pegar ou largar. Ainda bem que Rogê respondeu sem pensar duas vezes, até porque o músico de 47 anos estava mais do que pronto para este desafio. Ele é do tipo de artistas que compõe diariamente e grava tudo no telemóvel. “Deixo ali e quando aparece um negócio assim, vou lá buscar essas ideias para as desenvolver”. Juntou 28 músicas, 14 das quais foram para o estúdio de Thomas Brenneck. Acabaram por ficar 10 canções, mais uma vinheta final de Dorival Caymmi: Curimã ê, Curimã lambaio, é o vento dizendo o nome de Rogê.
Da bolha branca do sul para os morros e as favelas negras do Rio
Antes de prosseguirmos na trilha do álbum, é importante regressar ao Rio de Janeiro e ao início deste artigo para perceber como é que um homem branco de classe média da zona sul do Rio se torna irmão de morro e de todo o samba negro das favelas. “Desde menino que eu já sabia que a zona sul do Rio de Janeiro era uma bolha. Eu gosto de onde eu nasci, mas para mim, a grande verdade e a grande essência da minha cultura estavam na zona norte.”
Na Lapa, começou a tocar no bar Carioca da Gema, tornando-se numa figura respeitada por todos os bambas. Mas isso só aconteceu depois de ter conhecido o sambista Arlindo Cruz, que o introduziu a um meio em que Rogê era o “branco entre todos os pretos”. “O Arlindo é meu compadre, meu amigo, meu parceiro, meu padrinho, meu irmão. Foi ele o meu carimbo de aprovação e quem me abriu, há 20 anos, as portas do samba”.
[o vídeo de “Existe uma Voz”:]
Com Arlindo Cruz, Rogê gravou o álbum Na Veia (2015), indicado em 2017 ao Grammy Latino de Melhor Álbum de Samba/Pagode, mergulhou em todas as raízes africanas do samba e da música brasileira e aprendeu a compor. “Ele ia para o estúdio gravar e fazia uma coisa a que chamava bate bola. Pegava em trinta, trinta e cinco músicas para tirar umas doze e eu pensei que era exatamente isso que eu queria para mim.”
Portanto, quando Thomas Brenneck lhe atirou a seco a proposta, “vamos fazer um disco para o mês que vem”, já Rogê tinha a escola toda feita. Só precisou de confiar no instinto e deixar-se levar. “Como dizia Wilson das Neves, outro dos meus grandes mestres, ‘Quem me ensinou sabia’”.
Um disco feito em cima do violão, onde cabe todo o mundo
Neste mergulho no escuro, como fez questão de referir em vários momentos da nossa entrevista, o violão foi a grande arma de Rogê. “Aqui, em Los Angeles, o violão é o meu grande diferencial. Este disco foi feito todo em cima do violão e os próximos vão ser assim também”, antevê o músico, que em abril deste ano já vai começar a trabalhar em material novo.
É impressionante a quantidade de gente que vive no violão de Rogê, essa caixinha de madeira onde Paulinho Nogueira disse caberem todos os bens da vida. Em Curyman moram as levadas percutidas de João Bosco, “também um grande amigo, um grande parceiro e um grande mestre”, o swing de Jorge Ben Jor, os afro-sambas de Baden Powell, Caetano e Gil na irreverência tropicalista, João Gilberto na síncope da MPB e o classicismo de Villa-Lobos, “a fonte onde todos vamos beber”. “Curyman sou eu, mas é um retrato de todos esses mestres da música brasileira. Está lá todo o mundo”.
Carregando esse legado riquíssimo nos dedos, Rogê sentou-se no estúdio e, a partir daí, deixou Thomas comandar o churrasco. “Embarquei nisto para ver até onde ia a visão de alguém de fora sobre a música brasileira. Foi extraordinário”.
A primeira decisão do produtor americano foi a de juntar os músicos todos no estúdio para gravarem tudo ao vivo, “direto na fita, como se gravava nos anos 70”. Apenas o percussionista era brasileiro, os restantes elementos da banda incluíam Molly Lewis, nos sopros, Chester Hansen, dos BadBadNotGood, no baixo ou o fundador da banda de afrobeat Antibalas, Victor Axelrod, nas teclas. As gravações duraram três dias. “Estávamos todos muito felizes. Agora só quero isto para o resto da vida”.
A “lenda” Arthur Verocai entra no jogo
Tudo estava indo certo na feitura do disco, “a energia estava linda”, mas Rogê sentiu que faltava qualquer coisa. “E que tal pormos aqui umas cordas?”, sugeriu. Thomas achou logo boa ideia, mas nunca esperou que Rogê elevasse a parada com o nome de Arthur Verocai. “Ele é tido como uma lenda aqui. Tem um reconhecimento muito maior do que no Brasil”.
Efetivamente, Arthur Verocai tornou-se num fenómeno nos Estados Unidos graças ao seu álbum homónimo de estreia, lançado em 1972. Amplamente ignorado no Brasil, o disco começou a ganhar um estatuto de culto na viragem do milénio, chegando inclusivamente a ser samplado por MF Doom, Madlib, Ludacris ou Cut Chemist. “O Thomas nem queria acreditar que eu o conhecia. Então peguei no telefone, fiz um vídeo com o Verocai e apresentei-os aos dois”.
[o vídeo de “Pra Vida”:]
Dias depois, Rogê e Thomas estavam a aterrar no Brasil para, com a ajuda da lenda – que nos anos 60 e 70 fez arranjos para Elis Regina, Tom Jobim, Gal Costa, Jorge Ben ou Marcos Valle – elevarem as canções para outro patamar. “O Verocai tem um jeito de escrever muito próprio. É, ao mesmo tempo, clássico e popular e dá uma dimensão de profundidade e de dramatização às canções. Eu quis trazer isso para o disco”.
No fundo, Rogê sabia que precisava dos arranjos de Verocai para comunicar numa linguagem universal. Não nos podemos esquecer que o músico estava a compor um disco profundamente brasileiro fora do Brasil, a ser editado por um selo americano em mercados onde não se fala português. As palavras, neste contexto, apesar de melodiosas, perdiam parte da sua força. O que as cordas de Arthur Verocai fizeram foi, precisamente, conferir uma imagem a cada canção, “quase como se estivesse a fazer músicas para filmes”.
Um álbum “pra vida”
Ninguém precisa de entender uma palavra de Rogê para perceber que “Pra Vida”, faixa luminosa de entrada do álbum, é mesmo para deixar passar a dor e celebrar cada novo nascer do sol ou que “Nação Tupi”, com a sua carga dramática, contém a frustração do índio perante a incompreensão do homem branco, que não entende que “índio é a natureza / e a natureza é o seu viver”.
“Mistério da Raça”, original de Luiz Melodia, deixa a desesperança cair ao chão quando Verocai entra com as cordas, amparando e prolongando as palavras “Luz é vida / pulsação” e “Se eu for falar de amor”, tão cheia de classe quanto um arranjo de Jobim, é uma daquelas canções que nos dão vontade de chorar, não por serem tristes, mas por existir tanto amor no peito que ele mal cabe em nós, transbordando o olhar.
“Yemanjá” tem praticamente dois minutos de orquestração, que abraçam as cachoeiras de Iguaçu, os westerns de Sergio Leone e as canções praieiras de Dorival Caymmi, antes de Rogê lançar as suas palavras à mãe de todos os Orixás. “O Vento” fecha o álbum, Dorival e Cury lado a lado, o oceano e o peixe que nele sabe nadar.
Pelo meio, Curyman ainda nos dá “Eu Gosto Dela”, Jorge Ben na cara; o funk de “Existe uma Voz”, mostrando que o caminho certo mora dentro de cada um de nós; o instrumental “Camará”, com todos os comparsas e mestres do violão reunidos à volta dos batuques do candomblé; e finalmente o pulsar de África em “Retumbar do meu tambor” e no afrobeat de “Grito da Natureza”, canções em que o sincretismo religioso se manifesta em toda a sua expressão espiritual, ritualista, cultural e musical.
“Estou muito orgulhoso do Curyman como um todo”, confessa Rogê, já no final da nossa conversa. “É uma reafirmação de que tudo está indo como tinha de ser”. O frescor e a renovação da esperança por um Brasil melhor – com “Lula”, “Bala Desejo”, “Tim Bernardes” e “toda esta nova geração” no comando, diz-nos – sente-se na voz de Rogê. Curyman é uma oferenda pra vida. E se tudo correr bem, podemos esperar vê-lo no verão, em Portugal. “Eu vou à Europa em julho e tenho uma pessoa a tentar marcar uns concertos em Portugal. Quero muito chegar aí”. Por nós, pode vir, camará.