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O índice de transmissão R(t), que indica quantas pessoas alguém infetado com o novo coronavírus pode contagiar, pode chegar a 1 ainda esta semana e ditar o fim da diminuição diária no número de novos casos em Portugal. Mas Carlos Antunes, engenheiro da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa que acompanha a situação epidemiológica em Portugal e comunica os resultados ao Governo, diz que isso não é preocupante, desde que não se ultrapassem os 120 casos acumulados ao longo de 14 dias por 100 mil habitantes (estamos com 81,3).
O R(t), cuja média nacional é de 0,89, até já ultrapassou ligeiramente o 1 no Norte do país. Segundo os dados anunciados esta segunda-feira pela Direção-Geral da Saúde (DGS), o R(t) ronda neste momento 1,01 nesta região e os internamentos por Covid-19 estão a subir há dois dias — simbolizando um aumento, mas controlável, da pressão sobre o Serviço Nacional de Saúde (SNS). O R(t) também já está acima de 1 no Alentejo e no Algarve, mas as incidências de contágios são muito mais baixas nessas regiões, condenando aquele índice a mais oscilações.
Portugal entrou na primeira fase de reabertura do segundo confinamento há precisamente uma semana, depois de dois meses fechado para fazer frente à terceira vaga de Covid-19, que colocou o país durante várias semanas com os piores números do mundo. Era já expectável que a abertura causasse um aumento na transmissão do vírus, normalmente na ordem duas duas décimas. A vantagem é que a incidência nacional de casos estava muito baixa, por isso esta subida nacional do R(t), sendo muito pequena, não trará grandes complicações no combate à epidemia, defende Carlos Antunes.
E é assim mesmo tendo em conta que Portugal está a controlar a terceira vaga quando muitos países europeus só agora a começam a sentir. E em força. Na Áustria, que teve uma evolução epidemiológica semelhante à portuguesa, a incidência nunca diminuiu tanto como por cá — passou de 8.000 casos em outubro para 2.000, enquanto Portugal desceu de mais de 10.000 casos para uma média de apenas 466 na última semana.
Em França, um país que esteve em confinamento desde o final do ano passado e que passou o Natal sob rigorosas restrições à mobilidade, os casos diários de infeção por SARS-CoV-2 diminuiram em 80% quando, em Portugal, a diminuição foi de 95%. Na República Checa, que teve quase 18 mil casos em janeiro, a incidência ronda neste momento os cerca de 7.000 casos e a tendência é de subida.
Ainda assim, “mesmo que surja uma nova vaga, estamos em condições de a tornar pequena”, explicou Carlos Antunes ao Observador: “Partimos de um patamar de arranque para uma nova vaga bastante confortável”, classificou, acrescentando que “a aflição dos outros países resultou de não terem controlado as vagas anteriores para níveis controláveis”: “Desconfinaram antes disso, nós fomos capazes de controlar a vaga mais eficazmente”.
O aumento da testagem e a diminuição da taxa de positividade — a percentagem de testes realizados que são positivos para a presença do novo coronavírus —, que está neste momento em 1,1% (fazem-se 75 testes por cada caso positivo), são boas notícias que sustentam o otimismo de Carlos Antunes. Mas elas só continuarão sob duas condições, segundo o especialista: se não se perder o controlo dos inquéritos epidemiológicos e se a capacidade de testagem for alargada.
É que, embora esse alargamento já tenha ocorrido, a testagem está concentrada neste momento essencialmente no ambiente escolar. E era importante que a testagem chegasse a zonas de maior risco de contágio, como os transportes públicos ou a proximidades de centros comerciais, para apanhar pontos de iniciação de surtos. “Apagámos um grande incêndio, podemos ter pequenos focos. Não faz mal, desde que sejam atacados rapidamente”, compara Carlos Antunes.
Por enquanto, na opinião do especialista, não há motivos para recuar no plano de desconfinamento apresentado pelo governo a 11 de março. As atividades que reabriram na semana passada são “de menor risco” e, por isso, qualquer contributo que tenham para o aumento da incidência será muito vagaroso a expressar-se na situação nacional. E foram suficientes para reduzir o confinamento de 73% para 55% em sete dias.
São quase 20 pontos percentuais de diferença, mas os efeitos que venha a ter no aumento do R(t) e na incidência podem ser colmatadas com o reforço das medidas individuais de proteção. Ou seja, mesmo com o aumento da rede de contactos, os cidadãos não podem descurar na utilização das máscaras, no cumprimento do distanciamento físico e na desinfeção regular das mãos. No fundo, “não podemos retomar a normalidade”, diz Carlos Antunes.
Desconfinamento demasiado rápido pode trazer quarta vaga em abril
Mas nem todos são tão otimistas. Manuel Carmo Gomes, epidemiologista da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, antigo conselheiro do Governo e que participava nas reuniões no Infarmed, não está tão confiante que Portugal consiga escapar a uma quarta vaga em breve e diz mesmo que, se o confinamento avançar demasiado rápido e o país atingir o mesmo nível de relaxamento que teve em outubro, isso pode ser o suficiente para que uma nova onda se comece a formar já em abril.
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O especialista avisa que é preciso olhar para mais do que a matriz apresentada pelo governo, que relaciona o R(t) com a incidência de contágios em quatro níveis de risco (o famoso gráfico do quadrado com o X): as autoridades de saúde devem estar também atentas à taxa de positividade, ao atraso no rastreio dos casos, aos internamentos e à percentagem de casos confirmados pelos laboratórios mas não introduzidos na base de dados do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE).
Se alguma das linhas vermelhas delineadas para estes indicadores for ultrapassado, o desconfinamento deve parar ou mesmo dar um passo atrás, porque eles “têm de ser acompanhados em paralelo com o R(t) e com as incidências”, avisa Carmo Gomes. Ou seja, o calendário de desconfinamento só deve ser cumprido se não forem ultrapassadas as outras linhas vermelhas, “se não temos de certeza a quarta vaga”.
Em entrevista ao Observador, o epidemiologista explica que o Governo fez duas encomendas aos cientistas: uma para traçar as tais linhas vermelhas, uma tarefa em que Manuel Carmo Gomes participou e que se baseou em “fundamentos científicos sólidos”; e outra para desenhar o roteiro de desconfinamento, tarefa concretizada pelo matemático Óscar Felgueiras (Faculdade de Ciências da Universidade do Porto) e pela investigadora Raquel Duarte (Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto).
Acontece que esse roteiro, embora “bem fundamentado”, é mais difícil de suportar nos tais fundamentos científicos sólidos, uma vez que não se sabe o peso epidemiológico de cada uma das medidas incorporadas: “Elas são tomadas em pacote, cada país tem o seu pacote e tem realidades epidemiológicas diferentes”. É por isso que, para Manuel Carmo Gomes, o roteiro deve ser atualizado regularmente, de acordo com a distância a que se está das linhas vermelhas apresentadas nas reuniões no Infarmed. Aliás, o próprio primeiro-ministro já disse publicamente que há outros fatores a ter em causa além do Rt e da incidência, entre eles o dos internamentos, mas nenhum deles foi quantificado.
As linhas vermelhas para recuar no desconfinamento se a epidemia se descontrolar outra vez
Portugal em “fase nebulosa” para saber como está a correr o desconfinamento
De qualquer modo, com apenas sete dias de desconfinamento, é cedo para concluir se o plano governamental está ou não a correr bem, numa Europa onde a pandemia anda a várias velocidades. Os primeiros sinais do sucesso deste plano de desconfinamento só devem ser claros com os números que tivermos a meio da semana, acredita o matemático Henrique Oliveira, do Instituto Superior Técnico.
Em conversa com o Observador, o matemático explica que o país encontra-se agora numa “fase muito nebulosa”, porque “não é possível perceber ainda se o desconfinamento iniciado na segunda-feira passada já está a aparecer ou não nos números”. Uma pessoa que tenha sido infetada na segunda-feira, dia 15, só terá tido os primeiros sintomas na sexta-feira ou sábado. Ora, ao fim de semana a testagem é sempre inferior do que nos dias úteis, por isso é que só na terça ou quarta-feira se terá uma ideia mais concreta de como correu a primeira semana de desconfinamento.
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Nem mesmo o R(t) pode sinalizar o que se passa neste momento, uma vez que ele já tinha começado a aumentar ainda antes de o desconfinamento ter começado oficialmente. No entanto, Henrique Oliveira avisa que os óbitos continuam em valores mais altos do que era expectável face à incidência registada agora, o que significa que as mortes por Covid-19 que se estão a verificar são ainda de pessoas infetadas há cerca três semanas.
Por outro lado, isso também pode indiciar uma maior disponibilidade do próprio SNS no tratamento aos doentes. Quando Portugal atingiu médias de 10 mil casos diários (com picos de 16 mil) e chegou às 303 mortes registadas em 24 horas (em dois dias, 28 e 31 de janeiro), esse intervalo era inferior — cerca de duas semanas. Mas isso denunciava os problemas que se verificavam nos hospitais: sem espaço nas unidades de cuidados intensivos, muitos doentes acabavam por morrer no internamento geral, sem usufruir de tratamentos que lhes teriam prolongado a vida. Nessa altura, entre a última semana de janeiro e a primeira de fevereiro, Portugal chegou a ter quase 6.900 pessoas internadas com Covid-19, 904 em UCI. Agora está com 771 (já foram só 744) em enfermarias e 165 em cuidados intensivos.
Seja como for, esta terça-feira há nova reunião no Infarmed e os dados dos especialistas servirão para o primeiro-ministro e o Presidente tirarem dúvidas. Marcelo já antecipou que haverá estado de emergência até maio e Costa garantiu que recuará ao “primeiro sinal” de risco.
Marcelo e Costa preparados para colocar travão no desconfinamento ao “primeiro sinal” de risco