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Numa conferência de imprensa em Itália, que antecedeu a rodagem de Nostalgia, o realizador russo Andrei Tarkovsky declarou que o filme era sobre a impossibilidade de “as pessoas viverem juntas sem realmente se conhecerem umas às outras […]. É muito fácil travar amizade, mas é muito difícil alcançar um conhecimento profundo das outras pessoas”. Mas o filme, explicou Tarkovsky, era também sobre “a impossibilidade de exportar ou importar cultura, de nos apropriarmos da cultura de outros povos. Nós, russos, podemos pretender conhecer Dante e Petrarca, tal como os italiano podem pretender conhecer Pushkin, mas na verdade isto não é possível – é preciso que [autor e receptor] tenham a mesma nacionalidade. A reprodução e distribuição da cultura é danosa para a sua essência e apenas difunde impressões superficiais. Não é possível ensinar a uma pessoa a cultura de outra”.

Tarkovsky terá alguma razão – é claro que a compreensão de uma obra de outra cultura requer algum conhecimento dos seus códigos e contextos – mas daí à negação da possibilidade de entendimento intercultural vai uma imensa distância. Afinal de contas, é provável que um professor de literatura italiano consiga compreender melhor Crime e castigo do que um russo sem hábitos de leitura.

A História da Rússia de Gregory L. Freeze não faz com que Pushkin e Dostoyevsky se tornem cristalinos e sem segredos aos olhos ocidentais, mas ajuda a perceber um país que o mundo ocidental continua a conhecer mal, apesar da suposta abundância de informação que caracteriza o nosso tempo.

Freeze, professor na Brandeis University e perito em História da Rússia, é o organizador desta obra colectiva e autor de três dos seus 15 capítulos. A obra foi publicada originalmente em 1997 mas a tradução portuguesa – por Pedro Elói Duarte – é feita a partir da 3.ª edição revista de 2009. O livro termina com Vladimir Putin no segundo ano do seu mandato como primeiro-ministro da Rússia, enquanto Dmitri Medvedev finge que é Presidente e o mundo sofre o impacto da explosão da bolha do subprime nos EUA. O muito que aconteceu na Rússia e no mundo nos últimos oito anos já justificaria um capítulo adicional.

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“História da Rússia”, de Gregory L. Freeze (Edições 70)

Dos primórdios a Pedro o Grande

O livro começa mal, pois Janet Martin, autora do capítulo “De Kiev à Moscóvia: Dos inícios a 1450”, parece entender a história como acumulação de nomes de reis, cidades, cercos, batalhas e coroações e o seu registo é de uma aridez e frieza dignos da estepe russa. Serve, ao menos, para desfazer a imagem heróica de Aleksandr Nevsky (1221-1263) que é transmitida pelo filme homónimo de Eisenstein: Nevsky derrotou os cavaleiros teutões, é certo, mas foi também um servidor obediente do Khan mongol (fez três viagens à corte do Khan para lhe render vassalagem), como o foram muitos dos seus antecessores e sucessores.

Aleksandr Nevsky recebe os enviados do papa: esboço de Henryk Siemiradzki para mural na Catedral de Cristo Salvador, em Moscovo, c.1870

Os planos de Boris Godunov (regente em 1585-98 e czar em 1598-1605) para tentar recuperar o atraso da Rússia face à Europa Ocidental não correram bem: “quando, pela primeira vez, a Moscóvia enviou um contingente (18 homens) para estudar em Inglaterra, França e na Alemanha, nenhum regressou”.

Pedro o Grande por Godfrey Kneller, 1698

Seria preciso esperar por Pedro I, o Grande (reinado 1682-1725), que estava consciente da “fragilidade do poder militar moscovita”, para as missões ao estrangeiro ganharem dimensão e eficácia: a Grande Embaixada enviada à Holanda e a Veneza envolveu 270 pessoas, incluindo o próprio czar, incógnito, e a sua missão durou de 9 de Março de 1697 a 25 de Agosto de 1698. “Foi a primeira fracção de cerca de 26 grupos, totalizando mais de 1000 ‘voluntários’ enviados sistematicamente para o estrangeiro em estudo e formação no período de 1697-1725”.

Junto ao Báltico, Pedro o Grande concebe o plano de erguer São Petersburgo. Quadro de Alexandre Benois, 1916

Porém, tais esforços estavam longe de ser suficientes: é significativo que a primeira universidade russa tivesse sido fundada apenas em 1755, em Moscovo, quando os países da Europa Ocidental tinham visto surgir as primeiras universidades nos séculos XI-XIV e a Europa contava em 1789 com um total de 143 universidades. Embora o livro não o mencione, São Petersburgo disputa a Moscovo a primazia cronológica nas universidades russas, pois alega que a Academia de Ciências de São Petersburgo, criada por Pedro o Grande em 1724, pode ser vista como uma proto-universidade. É uma disputa estéril e que não disfarça em nada o colossal atraso da Rússia no domínio da educação.

Catarina II por Johann Baptist Lampi, década de 1780

De Catarina a Grande a Alexandre I

O impulso iluminista durante o reinado de Catarina II, a Grande (reinado em 1762-96) esbateu-se rapidamente e a própria Catarina ordenou, em 1787, “uma rusga a todas as livrarias do império para apreender os títulos perigosos e amotinadores. No início dos anos 90, quando o anti-monarquismo violento da Revolução Francesa se tornara numa realidade perturbadora, Catarina (e mais tarde o seu sucessor Paulo) erigiu uma censura dura e repressiva, restringindo fortemente a importação de livros estrangeiros (totalmente banidos durante alguns meses de 1800) […] e encerrando a maior parte das tipografias”. No início do século XIX “o Estado e as letras constituíam duas esferas separadas cuja única ligação era a censura coerciva”.

Se durante mais de metade do século XVIII o trono russo foi ocupado por mulheres – Catarina I em 1725-27, Ana em 1730-40, Isabel em 1741-62 e Catarina II em 1762-96 – o século XIX pautou-se pela exclusão do sexo feminino da política. “A lei sucessória de Paulo de 1797 excluía especificamente as mulheres do trono até que todos os herdeiros masculinos de todas as linhas colaterais da família imperial tivessem morrido” e as mulheres da elite viram os seus papéis confinados na “criação dos filhos pequenos e na vida social familiar íntima”. A princesa Yekaterina Dashkova (1743-1810), que, durante o reinado de Catarina II (de quem fora amiga íntima) desempenhara com brio as funções de directora da Academia Russa e da Academia Imperial das Artes e Ciências e que Paulo I destituíra de todos os cargos e condenara ao exílio numa aldeia remota, queixar-se-ia mais tarde, já no reinado de Alexandre I (1801-25) “da misoginia da corte […] e da posição diminuída das mulheres na sociedade russa”.

Alexandre I, por George Dawe, 1824

Alexandre I ainda alimentou as ideias de emancipar os servos e estabelecer uma ordem constitucional mas tais impulsos nunca foram concretizados, a primeira por a nobreza ter manifestado veemente oposição, a segunda por o imperador ter tido experiências desagradáveis ao lidar com a assembleia legislativa polaca (a Polónia tinha sido repartida em 1772-73 entre a Prússia, a Áustria e a Rússia e deixara de existir como estado independente em 1795, quando da Terceira Partição). A mudança de ideias de Alexandre I foi tal que em 1821 disse “a um enviado francês que o governo constitucional poderia ser adequado para nações esclarecidas, mas não funcionaria nas sociedades menos instruídas da Europa”.

A reviravolta no pensamento de Alexandre I pode ser em boa parte atribuída ao facto de, no final das Guerras Napoleónicas, ter conhecido na Alemanha, em 1815, a baronesa de Krüdener, uma carismática proselitista religiosa. Esta operou uma conversão espiritual no imperador, que passou a reger a sua vida pessoal e a sua acção política pela variante mística do pietismo difundida pela baronesa. Entre as consequências nefastas desta conversão esteve a criação da Santa Aliança, uma coligação entre a Rússia, a Prússia e a Áustria que desempenharia um relevante papel de obstrução a ideias liberais e constitucionalistas na Europa. Outro aspecto negativo da conversão espiritual de Alexandre I foram as reformas conservadoras nas – já de si retrógradas – universidades russas, de onde foram escorraçados os curricula e os professores de inclinações liberais e se pôs ênfase no ensino religioso e nos estudos clássicos.

Nicolau I por Horace Vernet, década de 1830

De Nicolau I a Nicolau II

Os ganhos decorrentes abrandamento da repressão e da censura durante o início do reinado de Nicolau I (1825-55) dissiparam-se com a reacção conservadora às revoluções europeias de 1848. No capítulo “Reforma e contra-reforma: 1855-1890”, Gregory Freeze sintetiza assim a conjugação de factores que levou os imperadores russos a suster as reformas. “O receio de desordens sociais descontroladas, a crença inquestionável no poder e na omnisciência da burocracia, uma segurança presunçosa em relação à bravura militar da Rússia, apesar do seu sistema claramente não ocidental e do seu atraso económico – tudo isto encorajava a presunção de que a Rússia podia ser uma grande potência e manter a sua ordem social e política tradicional”.

As reformas foram suspensas e só quando a Rússia se deixou, desastradamente, arrastar para a Guerra da Crimeia (1853-56), se percebeu que o seu exército e o seu sistema de transportes se tinham tornado obsoletos face às modernas máquinas de guerra das grandes potências europeias.

Cerco de Sebastopol, durante a Guerra da Crimeia. Quadro de Franz Roubaud, 1854-55

Nem tudo era estagnação na Rússia oitocentista: a educação ia abrangendo cada vez mais sectores da população, mas dessa expansão nasceram dois efeitos adversos ao Império. Um foi o estímulo dos nacionalismos, sobretudo na Polónia, Finlândia e Ucrânia, o outro foi o desejo de participação política.

Todavia, o imperador não estava disponível para fazer concessões neste domínio e a frustração do desejo de intervenção na vida política pela repressão sistemática levou a uma clivagem entre o Estado e a elite instruída, que começou a pôr em causa “um princípio fundamental da ideologia czarista. a de que o soberano era um bom pai que cuidava dos filhos, o povo da Rússia”. Era difícil acreditar nisso quando “muitos dos filhos e filhas mais talentosos da nação eram reprimidos pelo regime e metade dos ‘filhos’ do czar, os servos camponeses, continuavam numa condição de escravidão”.

Freeze resume assim o estado do Império Russo no final do século XIX: “Enquanto procurava reconstituir o império multinacional num Estado homogéneo […], o governo estava a conseguir apenas acelerar o desenvolvimento de uma consciência nacional e sentimentos revolucionários, até entre as minorias mais leais do império”. Um russo anónimo citado pelo diplomata alemão Georg Herbert zu Münster (1820-1902) poria as coisas em termos mais sintéticos e irónicos: “Cada país tem a sua constituição; a nossa é o absolutismo moderado pelo assassinato”.

Coroação de Nicolau II (reinado 1894-1917), por Valentin Serov, 1899

Quando da sua coroação, em 1895, Nicolau II “jurou manter os poderes autocráticos e apelou aos críticos que abandonassem quaisquer sonhos inúteis’ de democratização”, como escreve Robert Service em O último dos czares: Nicolau II e a Revolução Russa (Desassossego). A mundividência de Nicolau II não se alteraria com as dramáticas mudanças na Rússia e no mundo na viragem dos séculos XIX-XX: “ao subir ao trono jurei manter intacta a forma de governo que recebi do meu pai, e entregá-la ao meu sucessor”.

Assim se explica que a Rússia tenha chegado a 1905 sem possuir um parlamento, sem “sufrágio universal (de facto, nenhum sufrágio de qualquer tipo no plano nacional), nenhum partido legal para ilegalizar, [nem] sindicatos nem outras associações livres de trabalhadores para perseguir e assediar”.

Em 1904 a Rússia entrou em guerra com o Japão, um país que vivera num estádio civilizacional medieval até 1853, quando a minúscula frota do Comodoro Matthew Perry pusera, à força, fim a séculos de isolacionismo nipónico. Tal como a Rússia de Pedro o Grande, o Japão do período Meiji (1868-1912) enviou missões ao Ocidente para obter conhecimentos que permitissem modernizar o país – a grande diferença foi que enquanto a modernização da Rússia foi lenta e teve avanços e recuos, a aprendizagem japonesa foi fulgurante, como os russos descobriram da forma mais dolorosa. A esmagadora derrota sofrida na guerra de 1904-5 abalou a Rússia e propiciou a Revolução de 1905, que impôs a Nicolau II o estabelecimento de um parlamento e a legalização dos sindicatos e do direito à greve.

17 de Outubro de 1905, por Ilya Repin, 1907, retocado em 1911

O período até 1914 foi fértil em agitação laboral, violência política, coligações partidárias instáveis e tensões entre Nicolau II, que tentava continuar a exercer o poder de forma autocrática, e o parlamento.

Infelizmente, Reginald E. Zelnik, o autor do capítulo A Rússia revolucionária: 1890-1914, é um académico pedante que escreve menos para elucidar o cidadão comum do que para impressionar os colegas historiadores, pelo que as figuras e eventos são apenas aludidos, como se todos eles estivessem presentes na mente do leitor a quem se dirige.

De Lenin a Stalin

No capítulo A Rússia na guerra e na Revolução: 1914-1921, Daniel Orlovsky chama a atenção para o facto de “o envolvimento dos funcionários administrativos [ter sido] tão importante [para o triunfo da Revolução de Outubro] quanto os movimentos de operários e camponeses celebrados no discurso oficial e na mitologia”, com “cientistas e engenheiros desejosos de mudar o mundo a partir de visões tecnocráticas a juntarem-se com entusiasmo à construção do socialismo”.

Mas, pouco a pouco, os órgãos bolcheviques marginalizaram os sovietes, em nome dos quais se fizera a revolução; também eliminaram os corpos empresariais e as organizações sociais que poderiam diminuir o poder ministerial. Desta forma, as principais instituições revolucionárias de 1917 – sovietes, comités de fábrica, sindicatos, cooperativas, associações, etc. – foram gradualmente subsumidas na nova burocracia ou completamente extintas”. A direcção do Orgburo, criado em 1919 pelo Comité Central para gerir este aparelho partidário, foi confiada a Stalin, que passou a controlar as nomeações dos cargos no aparelho e a determinar a composição dos congressos – e mais poder ganhou quando Lenin o nomeou Secretário-Geral do partido, apesar das reservas que tinha em relação a ele e que foram crescendo depois de ter sofrido um derrame cerebral e ter ficado incapacitado. Mas Stalin fez com que todos os contactos com Stalin fossem canalizados através dele mesmo e conseguiu que o “testamento” redigido por Lenin em 1923, que era francamente desfavorável a Stalin, não fosse divulgado.

Lenin e Stalin, Setembro de 1922

A história da URSS entre as duas guerras mundiais é também a história da consolidação do poder de Stalin, onde há a destacar três opções de terríveis consequências, uma no plano internacional e duas no plano interno.

Em 1928, o VI Congresso da Comintern – órgão internacional devotado à difusão global do comunismo, na prática subserviente a Stalin – concluiu que “o maior perigo vinha não dos muitos grupos fascistas emergentes na Europa, mas dos partidos moderados de esquerda” e proibiu “alianças entre os marxistas revolucionários e socialistas moderados” – uma decisão que favoreceria a ascensão de Hitler.

Capa do n.º 9 da revista da Comintern, 1920

A nível doméstico, Stalin decidiu meter na ordem os camponeses ucranianos pouco receptivos à colectivização através de uma fome artificialmente provocada, em 1932-33, que causou (consoante as estimativas) 2.4 a 12 milhões de mortos, uma catástrofe que ficou conhecida na Ucrânia como Holodomor. Lewis Siegelbaum, autor do capítulo em que este assunto é tratado, cita argumentos revisionistas recentes, questiona a natureza induzida da Holodomor e sugere que “foi precipitada por uma escassez absoluta de cereais”, não por calculismo político e malevolência da parte de Stalin. Ainda assim, Siegelbaum admite que “a população rural (não só na Ucrânia) sofreu desproporcionalmente e que esta privação se deveu a uma decisão política: as requisições desviaram a fome da cidade para a aldeia”. O número de vítimas da Holodomor citado por Siegelbaum está perto do limite inferior das estimativas: 2.9 milhões.

Nunca haverá falta de fanáticos nem de idiotas úteis: Chicago, 17 de Dezembro de 1933: manifestação de emigrantes ucranianos contra a Holodomor é atacada por comunistas americanos

A outra medida desastrosa de Stalin no plano interno foram as Grandes Purgas de 1936-38, que, entre outros efeitos nefastos, decapitaram as Forças Armadas. A purga removeu dos seus postos 35.000 a 40.000 oficiais (um terço do total) e foi particularmente devastadora nos níveis mais elevados da hierarquia: foram destituídos “três dos cinco marechais, 13 dos 15 comandantes de exército, 57 dos 87 comandantes de região militar, 110 dos 195 comandantes de divisão e todos menos um dos comandantes da marinha”. Não admira que, no Verão de 1941, o exército soviético, apesar da sua superioridade em homens e material, se tenha desmoronado como um castelo de areia perante o ímpeto da invasão nazi. Stalin vangloriava-se – e os saudosistas da URSS continuam a fazê-lo – de que fora a URSS que suportara a maior parte do esforço dos Aliados na guerra contra Hitler e pagara por isso um preço elevadíssimo em vidas humanas. É verdade, mas o que não costuma ser dito é que 56% das baixas militares sofridas pela URSS durante os 47 meses em que o país esteve envolvido na II Guerra Mundial dizem respeito aos primeiros 18 meses, sendo, portanto, imputáveis em boa medida ao enfraquecimento das Forças Armadas soviéticas causada pelas purgas de Stalin e à sua obtusa e obstinada recusa em aceitar as provas óbvias de que Hitler estava a preparar um ataque em larga escala à URSS.

Stalin, por Isaak Brodsky, 1939

Quanto ao rescaldo da II Guerra Mundial em termos de geopolítica europeia, não há melhor síntese do que a que foi enunciada pelo próprio Stalin: “quem ocupa um território também lhe impõe o seu próprio sistema social. Todos impõem os seus sistemas até ao alcance dos seus exércitos”.

De Nikita Khrushchev a Leonid Brezhnev

O fim do stalinismo, que começara com a subida ao poder de Nikita Khrushchev (Secretário-Geral do PCUS entre 1953 e 1964), teve um momento culminante no “discurso secreto” pronunciado por Khrushchev no XX Congresso do PCUS, em 1956, denunciando os desmandos e crueldade de Stalin, foi consumado no XXII Congresso do PCUS, em 1961. No seguimento de novas denúncias contra o antigo ditador pela parte de Khrushchev, foi tomada uma decisão de grande valor simbólico: por causa de “violações graves dos preceitos leninistas, do seu abuso de poder, das suas repressões em massa do honesto povo soviético e das suas outras acções durante o culto de personalidade”, o corpo de Stalin foi considerado indigno de estar ao lado do de Lenin e transladado, numa discretíssima cerimónia, para uma anódina sepultura na necrópole da muralha do Kremlin.

O livro não o menciona, mas a 24 de Julho de 1959, no Parque Sokoliniki, em Moscovo, tivera lugar um evento não menos revelador: a Exposição Nacional Americana exibia, entre outras maravilhas do capitalismo triunfante, um apartamento-modelo equipado com todos os electrodomésticos e confortos modernos acessíveis a um trabalhador médio americano. Khrushchev ficou abespinhado com a bazófia do vice-presidente americano Richard Nixon e garantiu que a URSS em breve alcançaria os EUA em todos os domínios tecnológicos – dos mísseis balísticos às máquinas de lavar louça, presume-se.

Moscovo, 1959: Nikita Khrushchev e Richard Nixon apreciam a cozinha-modelo na Exposição Nacional Americana

Fazendo eco das promessas de Khrushchev, o novo programa do PCUS apresentado no Congresso de 1961 incluía entre as suas previsões que a economia da URSS ultrapassaria a dos EUA em 1970 e que a construção do comunismo estaria concluída em 1980. Em vez disso, sob a liderança de Leonid Brezhnev (Secretário-Geral do PCUS entre 1964 e 1982), a “partidocracia ossificou-se numa gerontocracia” e a “liderança esclerosada” funcionou como um incentivo “à corrupção desenfreada e ao crime”, numa “decadência que afectou a própria família de Brezhnev, com a polícia a deter amigos próximos e associados da sua filha”.

Leonid Brezhnev e a sua impressionante colecção de medalhas

Enquanto Brezhnev acumulava condecorações, títulos e cargos, a economia vegetava, com o crescimento do PIB a tornar-se anémico no final da década de 1970. Considerações sobre produtividade e qualidade dos produtos não eram assuntos que afligissem os administradores e gestores soviéticos: “enquanto o governo providenciasse um mercado garantido e fixasse os preços, era inútil reduzir os custos ou pensar na eficácia-custo”. O que manteve “o esburacado barco soviético a flutuar” foi o aumento do preço do petróleo após a crise de 1973.

Brezhnev num congresso do Partido Comunista da RDA em Berlim Leste em 1967

De Mikhail Gorbachov a Boris Yeltsin

Se Mikhail Gorbachov (Secretário-geral do PCUS em 1985-1991) costuma ser apontado como responsável pela implosão da URSS, os revezes sofridos pela URSS durante a perestroika apagam-se perante a catastroika – o período entre 1991 e 1999, em que Boris Yeltsin foi presidente da Federação Russa (a URSS foi formalmente dissolvida a 25 de Dezembro de 1991, na sequência de um referendo a 17 de Março desse ano em que a vontade popular escolheu essa via por larga maioria).

Não há indicador mais revelador do que foi a presidência de Yeltsin do que este: entre 1991 e 1997 o PIB caiu 43%. Por comparação, a Grande Depressão nos EUA causou uma queda de 32% no PIB americano e a invasão nazi durante a II Guerra Mundial causou uma queda de 24% no PIB da URSS. Em 1980, o PIB russo equivalia a 38% do PIB dos EUA; em 1999, era apenas 4% do PIB dos EUA. O PIB per capita da Rússia em 1999 era de 4200 dólares, abaixo do da Namíbia ou do Peru.

A presidência Yeltsin foi marcada pela instabilidade governamental – só no segundo mandato, em 1996-99, houve cinco primeiros-ministros e outros tantos ministros das Finanças e chefes de Estado-Maior e sete directores do Conselho de Segurança Nacional – pela venda ao desbarato das empresas nacionais a oligarcas, pela corrupção maciça, pela promiscuidade entre a oligarquia e o governo, pelo enfraquecimento da autoridade central pela autonomização e insubordinação das 89 repúblicas e regiões étnicas da Federação Russa – seguindo o conselho dado por Yeltsin em 1990 de “agarrar o máximo de soberania que pudessem engolir” –, pela incapacidade do Estado central em cobrar impostos – as receitas do Estado caíram 45% entre 1989 e 1997 –, pela degradação dos serviços básicos prestados pelo Estado na educação, saúde e segurança, pelo declínio acentuado da esperança média de vida, pela crescente inoperacionalidade das Forças Armadas, pela violência nas repúblicas do Cáucaso, pela proliferação de actos terroristas e pelo crescente endividamento externo.

O descalabro culminou em Agosto de 1998, quando o Estado russo entrou em bancarrota e causou o colapso do mercado accionista, que perdeu 88% do seu valor, “arruinou cinco dos dez maiores bancos, eliminou 1/3 das pequenas e médias empresas e cortou em 2/3 os salários reais”.

Boris Yeltsin

De Vladimir Putin a Vladimir Putin

A popularidade de Vladimir Putin na Rússia parece inexplicável aos olhos da maioria dos ocidentais – pelo menos daquele que não apreciam “democracias musculadas” – mas é mais fácil de entender quando visto em contraponto com a pavorosa era Yeltsin. No seu primeiro dia como presidente, Putin – que foi primeiro-ministro de Yeltsin durante quatro meses de 1999 – mostrou estar consciente da dimensão do descalabro, declarando que a Rússia “enfrenta uma ameaça real de cair para o segundo ou terceiro escalão dos Estados mundiais”.

Vladimir Putin em 1998, quando era director do FSB, o serviço de segurança que sucedeu ao KGB

É indiscutível que Putin, que vai agora no seu quarto mandato – a passagem de testemunho presidencial ao seu antigo primeiro-ministro Dmitri Medvedev em 2008-12, enquanto Putin assumia o lugar de primeiro-ministro, foi um subterfúgio de secretaria –, logrou recolocar a Rússia novamente no primeiro escalão.

Conseguiu-o à custa de agir como um bully em relação aos países vizinhos, de manter uma política de favorecimento dos oligarcas coniventes com o governo (alguns deles saídos das fileiras do FSB, como Putin), da corrupção e da falta de transparência (120.º lugar entre 180 países, no ranking Doing Business, do Banco Mundial; 147.º entre 180 países no ranking da Transparência Internacional na área empresarial; aumento de cinco vezes nos subornos entre 2001 e 2005) e de instaurar um regime que, sendo formalmente uma democracia, não o é na prática, devido à escassa liberdade de expressão, à coacção, intimidação ou eliminação física de adversários políticos e à manipulação das eleições (quanto mais não seja pela declaração de inelegibilidade dos candidatos da oposição).

Vladimir Putin no cockpit de um bombardeiro Tupolev Tu-160: o presidente apresenta-se ao povo russo como “homem forte”, fazendo-se fotografar aos comandos de aviões de combate ou cavalgando de tronco nu e de carabina a tiracolo

Porém, muitos russos revêm-se nesta declaração de Dmitri Medvedev durante a campanha para as eleições de 2006 (aquelas em que trocou de lugar com Putin) e que não difere, na substância, da posição expressa por Alexandre I em 1821: “Estou profundamente convencido de que, se a Rússia se tornar numa república parlamentar deixará depressa de existir. A Rússia precisa é de uma forte autoridade presidencial. Estas terras foram reunidas ao longo de séculos e é simplesmente impossível governá-las de outra maneira”.