Biógrafo que não escreve uma biografia há 18 anos, praticante quadrissemanal de crónica, inimigo do new journalism e da literatice e, desde março, o “imortal” que ocupa a cadeira 13 na Academia Brasileira de Letras, Ruy Castro lança um manual sobre como escrever uma biografia: A Vida por Escrito – Ciência e Arte da Biografia (Tinta-da-China).
Lidas com atenção, de lápis em riste, talvez as extraordinárias biografias que escreveu – dedicadas a Nelson Rodrigues, Garrincha e Carmen Miranda – sejam imbatíveis enquanto manuais para o jovem biógrafo. Porém, todo o trabalho invisível, da escolha do biografado às entrevistas, da investigação à montagem da estrutura narrativa, é-nos agora mostrado com abundantes detalhes e exemplos recolhidos ao longo de mais de três décadas em que, além das biografias, Ruy Castro escreveu aquilo a que chama “livros de reconstituição histórica” e experimentou o romance, sem abandonar a sua vocação de homem da imprensa, do jornalista que continua a ser.
Há uns anos disse-me que aprendeu a fazer biografias à medida que as foi fazendo. Esta é a sua dádiva aos biógrafos do futuro para que não tenham de aprender sozinhos?
Nesse sentido, sim. Porque se eu não tive quem me ensinasse e se estou em condições de passar algum ensinamento, teria obrigação de fazer isso. Mas não vejo isso em relação aos biógrafos do futuro, mas aos do presente. Dou aí sugestões de como se fazer uma boa entrevista.
Já vamos a essa parte mais técnica. Será a parte da ciência, apesar de a entrevista também ser uma arte.
O que pode ser ensinado e, supostamente, pode ser aprendido tem que ver com a ciência. É a definição da palavra. Nesse caso, a biografia é uma ciência. E também pode ser uma arte, embora não seja obrigatório, no sentido em que é um território que te permite um trânsito na criação literária desde que você não saia, nem por um milímetro, da informação. Dou um exemplo: neste livro, da morte do irmão do Nelson Rodrigues, assassinado na redação do jornal do pai deles. Eu tinha toda a informação referente ao ato da mulher que subiu as escadas e perguntou quem estava presente, pediu para falar com Mário Rodrigues ou um dos seus filhos, disseram-lhe que ele não estava, que estava o filho, passam à sala ao lado, ela tira a arma da bolsa e dispara. Eu tinha tudo. Mas eu não queria matar o rapaz depressa demais. E uma das coisas que me incentivou a escrever O Anjo Pornográfico foi a possibilidade de reconstituir a imprensa do Rio nos anos 20.
Conta aquela história da escarradeira [Ruy Castro passou bastante tempo à procura da marca da escarradeira que havia na redação dos jornais do pai de Nelson Rodrigues].
Da escarradeira, da marca de papel em que se escrevia, se havia máquinas de escrever, telefones, qual o papel em que se escrevia à mão, a pena, a tinta. E você pode dizer que isso não tem importância. Mas tudo é importante na biografia.
Costuma dizer que, para um biógrafo, não há informação irrelevante.
Não há.
Não quer dizer que acabe por pôr tudo no livro.
Nada disso. Aliás, você deve ter uma noção bem precisa da quantidade de informação que o leitor pode absorver. Não pode intoxicar o leitor. Tem de lhe dar o que ele é capaz de engolir e processar. Mas quando você descreve um ambiente, um cenário e dá alguns detalhes, não só dá maior autoridade ao que escreveu como transporta o leitor completamente para aquele cenário e aquela cena.
Esse não é um trabalho da imaginação, porque não está a inventar nada, mas é um trabalho criativo.
Você pode exercer talvez até uma espécie de escrita literária. Quando trabalha como biógrafo não vai esquecer todos os livros que leu, os filmes que assistiu, as peças a que foi. Isso faz parte da sua bagagem. De repente, há uma maneira de narrar, de contar, de escrever que está dentro da sua cabeça e que pode usar no que está fazendo, desde que não se afaste da informação. Na verdade, se você tem informação suficiente aquilo de que menos precisa é de inventar. Já está tudo aí.
O Ruy falava da bagagem pessoal que é determinante para o primeiro passo numa biografia, que é a escolha do biografado. Neste livro faz algumas sugestões que podem ajudar a essa escolha. Deve ser uma pessoa qualquer? É preciso uma ligação prévia ao biografado ou ao ambiente em que viveu?
Tudo tem de partir do biógrafo. Que espécie de livro quer fazer? Quer fazer um livro para a sua família ler ou um livro para ser disputado pelo mercado, por editoras? Tudo bem se quiser escrever um livro para a família, como é o caso em muitos cursos de biografia. Se quer aprender para escrever a biografia do avô porque é excêntrico, genial, louco. Todo o mundo tem um avô assim.
Conta neste livro a história da neta de Dorival Caymmi, que acabou por escrever mesmo a biografia do avô.
E a biografia acabou mesmo por ir para o mercado, saiu por uma editora grande. Um livro caro e que, por acaso, é muito bom. Agora tudo depende da intenção. Se quer escrever um livro para o mercado, para uma editora grande, não é qualquer pessoa que aguenta ser biografada. Até pode ser um anónimo, desde que a vida dele contenha elementos que possam ser de interesse geral. Pode encontrar um sujeito na rua e descobre que tem uma história incrível.
Então é possível partir de um anónimo e chegar a uma história interessante. E o contrário também pode acontecer? Escolher um biografado, entrar com muito entusiasmo e depois, à medida que avança na investigação, esse entusiasmo esmorecer?
Claro que é possível que aconteça. Comigo nunca aconteceu, nem jamais vai acontecer porque entre a ideia original e a decisão de trabalhar com aquele personagem podem-se até passar anos. Pelo menos dias ou semanas, durante os quais vou pensar bastante, conversar com a Heloísa [Heloísa Seixas, escritora e mulher de Ruy, que assiste à entrevista] ou com o Luís Schwarcz, da Companhia das Letras, porque quando você biografa alguém, nunca biografa alguém isoladamente. Biografa a pessoa, o círculo onde se move, até ao grande círculo em volta que é a cidade, o país e o mundo naquela época. Essas pessoas à volta têm de ser interessantes, com quem tenha prazer em trabalhar.
E se forem demasiado interessantes? Há o risco de o biógrafo encontrar outras personagens pelo caminho. Deve acompanhá-las ou deve manter-se focado no biografado?
As duas coisas: deve acompanhá-las na medida do possível, mas você nunca pode deixar o seu biografado mais do que duas páginas fora do livro. Por exemplo, no caso de O Anjo Pornográfico, o Nelson Rodrigues era evidentemente o centro da história, mas tinha um pai interessantíssimo, um irmão genial, que era o Mário Filho, o outro irmão, Roberto. Vivia cercado de pessoas interessantes ao ponto de, quando saiu o livro, me perguntaram “agora vai biografar quem? O Antônio Maria? O Sérgio Porto?” E eu dizia que não. Viviam na mesma época que o Nelson, tiveram os mesmos amigos e conhecidos, viviam na mesma cidade, trabalharam no mesmo jornal.
Teria contado, em parte, a mesma história.
Exato. Imagine o seguinte: escrevi o livro sobre a Bossa Nova e sugeriram-me escrever sobre o Tropicalismo. Todo o mundo sugere tudo. Mas eu não posso fazer um livro sobre o Tropicalismo sem falar da Bossa Nova. Vou contar a mesma história de novo? A mesma coisa em relação à decisão de como começar um livro.
Essa questão do arranque é importante porque, uma vez mais, é um bocadinho de ciência e um bocadinho de arte. Há métodos e, por assim dizer, truques, mas é preciso a sensibilidade do biógrafo para saber como começar.
É preciso bom-senso, na verdade. No sentido em que se devem fazer algumas perguntas. Ainda sobre O Anjo Pornográfico. A noite mais importante da vida do Nelson Rodrigues foi a noite da estreia da peça Vestido de Noiva, no Teatro Municipal, em 43. Então vou começar por aqui, descrever tudo o que aconteceu no palco, na plateia, nos bastidores, antes, durante e depois do espetáculo. Depois então faço um longo flashback até contar toda a vida dele. Ótimo. Mas se fizer esse flashback, vou chegar de novo à noite da estreia do Vestido de Noiva. E já contei. Vou contar de novo? Ignorar? Começar pela noite da estreia era uma falsa boa ideia. Tinha de fazer o contrário. Se eu começar pela ordem cronológica, vou ter duzentas páginas para construir o clima para que o leitor fique ansioso para que chegue a noite de estreia do Vestido de Noiva. E vi que essa era a melhor maneira de contar a história. Pela ordem. O que confirma o que sempre pensei, que a ordem cronológica, começo, meio e fim, nesta ordem, é sempre o ideal.
Mas também resiste a começar a história lá muito atrás, ainda que em O Anjo Pornográfico tenha sido necessário um enquadramento familiar.
A história do pai de Nelson Rodrigues era importantíssima. O Nelson nasceu em 1912. A história do pai dele, de 1900 até à morte do filho, em 1929, passava-se num período da história do Brasil que o Brasil não conhece, não quer conhecer e não foi ensinado a apreciar ou a interessar-se por ele, que é o da I República. Um período importantíssimo e que foi ignorado de propósito.
Então também tinha essa motivação de ao contar a história de um homem iluminar também um período que estava mais ou menos na obscuridade?
Eu não tinha essa intenção, mas precisava iluminar esse período para que se entendesse tudo o que aconteceu depois.
A essas decisões, do arranque à forma de organizar esse autêntico quebra-cabeças, só chega depois de todo o trabalho de investigação? Um trabalho que, no seu caso, é feito exclusivamente por si.
Esse trabalho de botar ordem no puzzle vai acontecendo durante a investigação.
Nunca experimenta a escrita durante esse período? É só mesmo investigação?
Escrita só depois de tudo terminado. Veja bem, essa coisa do puzzle. Você quando começa o trabalho, tem muitas informações, muito desorganizadas, talvez não saiba dar uma conformação mais linear à história e não se pode preocupar com isso. Tudo o que aprender é importante e vai aprendendo também a colocar as coisas nos seus devidos lugares. Muitas vezes têm blocos de informações que sabe que são próximos mas não tem como aglutinar. De repente, aparece uma informação que faz com que esses blocos todos se atraiam e se grudem.
É por isso que gosta de ser o Ruy a fazer a investigação?
Não posso delegar. Ninguém tem a história na cabeça como eu. Sou o responsável pelo livro. Eu é que sei o que perguntar, como avaliar a resposta. Eu é que sei como provocar o entrevistado. Além disso, a parte mais fascinante é a da investigação. Porque é que vou delegar em alguém? Ainda por cima teria de pagar a essa pessoa. Finalmente, depois da investigação, que pode demorar vários anos, é importante que não tenha dúvidas sobre aspetos relevantes. Não pode ter dúvidas sobre algum acontecimento ou o que é que aconteceu em determinada altura. Enquanto tiver esse tipo de dúvidas, não é hora de começar. É claro que enquanto toma notas, vai jogando essas informações no papel e não tem obrigação que saia um parágrafo que venha a ser utilizado no final, mas às vezes a mão escorrega e você faz uns achados interessantes.
E quando, durante a investigação, se depara com um buraco na história do seu biografado, e por muito que investigue não consegue encontrar a resposta, o que é que faz?
Esses buracos acontecem o tempo todo. Geralmente provocados por uma pessoa que você precisa encontrar para entrevistar e ninguém sabe onde ela está, se está viva ou morta. Por isso é que a biografia é um trabalho de todos os dias durante o tempo em que está a fazer. Agora, a biografia é um processo, não é um artigo de jornal ou revista. Não preciso de a entregar agora às quatro da tarde. Posso entregar daqui a um ano ou dois.
Mas há prazos.
Há prazos, mas para mim o mais importante é a satisfação com o resultado final. Se precisar de esticar o prazo, vou esticar.
O Ruy diz que, em comparação com um artigo de jornal, a biografia é como nadar no oceano. Mas aí também há o risco de se perder.
Por isso é importante guardar tudo aquilo que vai encontrando na investigação em arquivos por ano, sobre tudo o que aconteceu num ano. De vez em quando, deve regressar a esses arquivos. Aí o que é irrelevante ou secundário vai passar automaticamente para segundo plano. Mas não joga fora, deixa ali.
Essa cronologia é fundamental para o seu trabalho?
É fundamental porque como é que você vai compreender a história se não seguir a ordem da história? Oiço dizer: “Ah, fiz uma biografia acronológica, moderna!” É tão fácil fazer isso. Qualquer um faz. Se não tem de se preocupar com a ordem, põe o que lhe vem à cabeça, é fácil. “Agora vou pular trinta anos.” Qualquer um sabe fazer isso. Difícil é você seguir passo a passo a vida do biografado. É um desafio para o autor que o leitor pegue um livro de 400 páginas, comece a ler e continue a ler. Há muita coisa na vida fora do livro que seduz o leitor.
Quando se lê as biografias que escreveu, e os livros de reconstituição histórica, tem-se a impressão de que o autor é omnisciente, não no sentido de dizer o que vai na cabeça das personagens, mas de conhecer todos os factos. Como é que isso se faz?
Porque eu escrevo depois de ter aprendido tudo, de avaliar o que é importante e o que não é. É evidente que eu não sei tudo, tudo. Não sei quantas vezes a Carmen Miranda retocou o batom, entendeu? Ou foi à casa de banho. Eu não preciso de saber isso e o leitor também não. É como no cinema. Você assiste um filme e o cara nunca vai à casa de banho. Nem precisa de vê-lo.
A não ser que aconteça alguma coisa importante.
[risos] Se explode tudo, aí tudo bem.
Aquilo que distingue as suas biografias são as entrevistas. O Ruy fala longamente neste livro sobre essa ciência que é uma arte. É que não basta dizer que se falou com 300 pessoas. É muito importante a forma de conduzir a entrevista e a informação que se consegue retirar.
Porque o que é importante não é a pergunta, é a resposta. Claro que a boa resposta vai depender da boa pergunta, feita de maneira conveniente, correta. Vê-se isso na televisão o tempo todo. O repórter leva 20 segundos a fazer a pergunta. A pergunta já está feita. Cala a boca e deixa ele responder. Quando começa a enriquecer a pergunta com novos ângulos, novas informações e o entrevistado fica lá horas à espera de responder, não dá. Acontece muitas vezes que o próprio repórter já responde à pergunta e quando chega a vez do pobre entrevistado falar ele pode responder sim ou não.
Esse é um dos erros em que um biógrafo pode cair? Fazer perguntas que já contêm as respostas? Refere que é preciso ir muito bem preparado, conhecendo muitos factos, mas não impondo esses factos ao entrevistado.
Exatamente. Porque não quero que o cara responda sim ou não. Há casos em que o entrevistado responde sim ou não e isso é suficiente. Mas de modo geral não pode dar muito tempo para o entrevistado responder. Tem de fazer uma pergunta rápida e objetiva. Quem impõe o ritmo da entrevista é o entrevistador. Se ele for rápido e objetivo e não der tempo para o outro pensar, ele vai responder à mesma velocidade. Porque há sempre muitas maneiras de um entrevistado fugir às suas perguntas.
Aconteceu-lhe muitas vezes, com as centenas de pessoas que entrevistou, sentir-se frustrado por não conseguir obter a informação que queria?
Não. Esse tipo de coisas de que eu estou falando acontece normalmente com políticos profissionais ou entrevistados frequentes, que são altamente experientes e sabem como driblar o repórter, o que não é muito difícil atualmente. Mas as pessoas que fazem parte do elenco de uma biografia, que conheceram o personagem, que trabalharam com ele há trinta anos e depois nunca mais se viram, são pessoas que não têm essa experiência toda do profissional.
Ainda assim há diferenças entre entrevistados. Dá o exemplo da biografia do Garrincha em que era diferente falar com grandes figuras, como o Zagallo, e outros ex-companheiros do jogador de que já ninguém se lembrava.
Por isso é que tem de falar com os desconhecidos, os quase anónimos, primeiro. Porque eles vão te dar informações que vão permitir que você encurrale o famoso.
Essa é uma das técnicas?
Há mais. Por exemplo, se faz uma pergunta delicada ou melindrosa e tem uma resposta, daí a umas horas ou no dia seguinte deve fazer a mesma pergunta com outra formulação para ver se a resposta é a mesma.
E quando os entrevistados não querem falar de determinados assuntos?
Também já aconteceu. Principalmente no Chega de Saudade, que foi o primeiro livro, mas eu já tinha uma grande bagagem de entrevistas. A maneira que você tem de essa pessoa falar é mostrar que já sabe. Daí a necessidade de estar preparado. Ele diz que não quer falar e você fala que isso da vida dele todo o mundo já sabe e aí ele fala. Quando escrevi o Chega de Saudade, havia um medo das pessoas de falarem a respeito de vários temas sobre o João Gilberto.
Houve aquele período em que ninguém sabia o que lhe tinha acontecido.
Ninguém queria dizer. Houve até um deles que me disse: “fulano de tal me advertiu para não falar com ele sobre aquilo.” E eu perguntava se aquilo de que não podia falar era a maconha. Porque entre essas pessoas mais velhas havia ainda aquela ideia de que se você fumou maconha, você ficou isso ou aquilo. Tinham uma ideia muito romanceada da maconha. Para eles era constrangedor falar do assunto. Agora não tem problema, mas na altura em que fiz o livro, tinha. Acontece que depois de uma sucessão de livros, quase todos os entrevistados já me conhecem. E sabem que não serão traídos ou expostos.
Essa é uma questão fundamental nas suas biografias. O Ruy entrevista centenas de pessoas, mas no final, ao lermos o livro, parece que a informação saiu toda da sua cabeça. Não sabemos quem disse o quê. Isso é uma estratégia narrativa ou para proteger as pessoas que lhe deram essa informação?
E é também uma coisa prática. Há biógrafos que escrevem assim “como confidenciou fulano de tal a este biógrafo”. Que besteira é essa? Todo o livro é feito de coisas que confidenciaram ao biógrafo.
Mas há muitos biógrafos que têm esses cuidados de dizer que aquela informação foi dada por certa pessoa.
É uma coisa meio covarde, não é? O único responsável pelo que sai no livro é o biógrafo. Se diz “isso aqui foi aquele cara que falou, se houver algum problema é com ele”, isso é covarde. Quando boto a informação no livro eu tenho a certeza dela. Posso defendê-la de qualquer ataque. Para o livro do Garrincha, falei com a irmã mais velha dele que me disse que eles eram descendentes de indígenas. Isso nunca tinha sido dito no Brasil. Cruzei informação. E descubro que houve uma migração para São Paulo e que a única tribo que coincidia com aquilo era a tribo fulniô. E vendo alguns hábitos de educação, ou deseducação, que a irmã do Garrincha me falou, como dar biberão com cachaça, canela em pau e mel às crianças, percebi que era muito provável que fosse essa tribo. Você tem várias hipóteses e vai derrubando uma a uma. Se há uma que não consegue derrubar é muito provável que seja a correta. Até que aconteceu esse episódio curioso em que um amigo de São Paulo me ligou a perguntar como estava o livro e eu disse que estava meio parado e contei a história da tribo, que era uma tribo completamente remota. Aí o cara me disse: “sou amigo do filho do cacique.”
Esse é um dos acasos que o Ruy menciona, mas a verdade é que os acasos dão muito trabalho.
Esses acasos acontecem porque você trabalha, porque você vive o tempo inteiro em função desse personagem. Aí confirmei a informação toda, botei no livro e fiquei esperando ser contestado por historiadores, indígenas e ninguém contestou. Dois anos depois, um amigo jornalista me ligou que estava assistindo ao campeonato de futebol de indígenas com a tribo fulniô e diz que tem um monte de índios com a cara do Garrincha. [risos]
Uma das características comuns às suas biografias é que em todas elas falou com pessoas que conheceram os biografados. Nunca teve a tentação de fazer a biografia de uma figura do passado em que já não fosse possível falar com alguém que a tivesse conhecido?
Já. Isso seria possível. No livro Metrópole à beira-mar…
Mas aí já não é uma biografia, é um livro de reconstituição histórica. Por isso é que quis fazer essa distinção.
Mas o processo é o mesmo. É a busca da informação onde ela estiver. Se não tem mais ninguém vivo, então vai ter de se tornar aquilo que eu sempre desprezei, que é um enviado especial aos livros.
Isso já não lhe interessa tanto.
Pelo contrário. Depois do livro da Carmen, não escrevi mais nenhuma biografia.
Queria perguntar-lhe mesmo isso: agora é um biógrafo não praticante?
Não, não. Veja. O que é uma biografia? É um personagem na frente de um cenário. O que é um livro de reconstituição histórica? É um cenário na frente de várias pessoas que serão protagonistas de mini-biografias. É até um trabalho muito mais complexo do que o da biografia, porque na biografia você segue a linha da vida do sujeito e não tem problema. A reconstituição histórica é um mosaico, você não sabe exatamente o que é mais importante, vai sabendo à medida que investiga. Para mim é muito mais desafiador esse tipo de livro. O próprio Chega de Saudade, que eu não sabia que era isso quando o fiz.
Publicou a sua primeira biografia há mais de 30 anos. O que é que mudou no panorama editorial brasileiro em relação às biografias desde então?
O próprio panorama editorial brasileiro mudou muito. Todos esses livros – Chega de Saudade, O Anjo Pornográfico – entraram na lista dos 10 mais vendidos. Hoje isso não é mais possível. O mercado está completamente dominado pelos livros americanos que chegam com a divulgação já pronta. Aqueles livros que tinham uma aura mais popular agora são mais de nicho. Não que me preocupe muito. Nunca pensei em ser best-seller, sempre tive um certo desprezo por isso. Mas hoje o nível de exigência que se faz a um livro desses é menor porque nenhum tem um bom desempenho a nível das vendas.
Mas, em termos de qualidade, as suas biografias elevaram a fasquia. Tem havido muitas biografias publicadas nos últimos anos.
Acho que nós – eu e mais um ou dois – desmoralizámos completamente esse tipo de biografia mais romanceada. Essas biografias não saem mais. Agora há muitas biografias que me mandam, muitos biógrafos me ligam durante o trabalho, gosto muito de conversar com eles, de dar ideias e sugestões e vejo que há muito a ideia de seguir este modelo. Uma coisa mais em cima do facto.
Há alguma que o tenha impressionado nos últimos anos?
Várias. A do Mário Magalhães sobre Marighella, que é muito boa. Tem uma biografia para sair do Drummond, feita pelo Humberto Werneck, que também acho que está muito boa. Agora tem muitas biografias de artistas populares, de cantores. O Brasil tem uma fixação por cantores e compositores que é uma coisa impressionante. Mas esses grandes, como o Chico Buarque, nunca foram biografados.
Também ainda estão vivos e se calhar não iam gostar.
Devem ter medo, sei lá.
[Heloísa intervém] Tem a do Roberto Carlos.
Esse aí é um censor nato. Se você tiver um pesadelo com ele e ele souber, vai cair em cima de você.
Sei que tem a regra de ouro de não fazer biografias de pessoas vivas, mas conhecendo essa pulsão censória de algumas dessas figuras, nunca se sentiu tentado em ir atrás delas?
Eu teria que ter um respeito pela obra dele e não tenho o menor respeito pela obra do Roberto Carlos. Acho um cretino medíocre. Vive sendo acusado de plágio. Não tenho nenhum interesse por ele enquanto cantor. Chatérrimo. Nariz entupido. O tipo de melodia completamente invertebrada, sem balanço. Então como não tenho o menor interesse por ele como artista isso me faz não ter o menor interesse por ele como homem. Seria interessante fazer só para provocá-lo.
Um conselho fundamental para alguém que esteja a pensar fazer uma biografia.
Escreva sobre uma pessoa que lhe interesse profundamente, com uma vida que seja do interesse geral e que também ajude a explicar coisas da sua vida. Por exemplo, se hoje eu escrevesse a biografia do Nelson Rodrigues não digo que seria melhor, mas faria com mais autoridade sobre algumas coisas porque quando escrevi a biografia há trinta anos nunca tinha dado um espirro na vida e de então para cá tive uns problemas de saúde e alguns muito graves e o Nelson Rodrigues também teve. Então talvez eu teria sido capaz de entender um pouco melhor a reação do Nelson perante a doença, a adversidade.
Também experimentou o romance. Tem três romances publicados, que também são em parte reconstituições históricas. O que é que o romance lhe permite enquanto escritor, além do óbvio, que é usar a imaginação, que as biografias e as reconstituições não lhe dão?
Só escrevo romances quando há uma solicitação externa, ao contrário das biografias que são ideias da minha cabeça que eu proponho às editoras.
Isso é curioso porque, com os escritores, normalmente é ao contrário. Os romances nascem de uma motivação pessoal e os livros de não-ficção geralmente são encomendas.
É. Eu só fiz três romances porque alguém me pressionou para fazer, eu resisti e disse que não tinha capacidade para criar tramas e plots. Quem tem essa capacidade é Jorge Amado, William Faulkner, Heloísa Seixas. Eu sou preparado para descobrir coisas, não para inventar. Mas as pessoas têm uma ideia exagerada a meu respeito e acham que eu também seria capaz de fazer.
É a terceira vez que o entrevisto, mas é a primeira vez que estou perante um “imortal”.
Um imortal de fardão [nas cerimónias de tomada de posse, os “imortais” da ABL usam um traje de gala]. Mas espiritualmente continuo de calção de banho, descalço e sem camisa.
Mas para si teve um significado especial.
Claro. Quando se vê a relação de grandes intelectuais brasileiros, de grandes profissionais de todas as áreas que fizeram parte da Academia, é realmente uma honra. Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, João do Rio, grandes figuras da cultura brasileira que foram muito importantes. E são 40, não são 400 e que ficam lá uma vida inteira. Para entrar um novo, vai ter de morrer alguém.
Além de um reconhecimento pessoal, é um reconhecimento do Ruy na qualidade de biógrafo.
Na verdade, eu fiz um discurso em que, de propósito, tentei enfatizar a minha condição de jornalista. Publico livros desde 1989, 90, há 34, 35 anos, e em todo esse período não houve um dia que eu não estivesse ligado a uma publicação da imprensa, um jornal ou uma revista. Agora estou como colaborador da Folha de São Paulo, onde tenho uma coluna na página 2 já há 16 anos. Faço quatro colunas por semana.
É quase um remador de Ben-Hur.
Pois é, mas me sinto muito bem. É uma maneira de me sentir conectado com a realidade, com a obrigação de continuar acompanhando o noticiário. De alguma maneira, tentando, não só fazer parte, como interferindo, de maneira mínima e humilde, nos acontecimentos. Dou a minha opinião. Sem prejuízo do trabalho dos livros que é uma produção, em si só, quase mortífera.
Na vertente do jornalismo, o Ruy também não é grande fã do jornalismo que mistura um pouco de literatura, o new journalism.
Sou frontalmente avesso a isso porque eu não vejo que isso tenha melhorado o jornalismo e certamente não melhorou em nada a literatura. Você não vê nenhum desses grandes nomes do new journalism associado a grande literatura. Eu dispenso o Gay Talese. Na verdade, o que ele faz é um grande exercício de imaginação. Acho que é uma coisa que contraria frontalmente o nosso trabalho.
E nos romances permite-se aquele pecado que para si é um dos piores do biógrafo que é o da literatice? Ou no romance também é um pecado?
O que é a literatice? É falar sem dizer nada. O romance também exige um certo rigor. Sou completamente contra essa coisa da palavra puxa palavra, aquelas coisas da Beat Generation. Concordo com o que Truman Capote disse do Jack Kerouac: “It’s not writing. It’s typing.” [Não é escrever, é datilografar]